Falante, expansivo e carismático, o presidente Hugo Chávez Frías recebeu a reportagem de ISTOÉ no Palácio Miraflores (sede do governo) numa entrevista descontraída, prevista inicialmente para meia hora, mas que se estendeu por uma hora e meia, deixando o embaixador americano, Charles Shapiro, esperando sua vez. Chávez negou que a Venezuela esteja rachada ao meio e atribuiu a crise à oposição de uma poderosa minoria oligárquica que quer deter a “revolução bolivariana” feita para beneficiar os pobres. O presidente também defendeu o papel dos militares na sociedade. No final, entre um cafezinho e um bolo, demonstrou seu apreço pelo Brasil entoando a música Eu quero apenas, de Roberto Carlos.

ISTOÉ – Como o sr. vê as comparações que são feitas entre o sr., o presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente eleito do Equador, o ex-coronel Lucio Gutiérrez?
Chávez
– Creio que o triunfo de Lula não foi somente um triunfo do povo brasileiro. Sua vitória transcende o Brasil; acredito que na América Latina se está configurando um ressurgimento das forças populares. Os pobres, os excluídos, os indígenas, os negros e os sem-terra retomaram suas esperanças com líderes que são capazes de representá-los, buscando modelos alternativos. A vitória de Lula significa exatamente isso. Estamos na onda das coisas, como dizia o barão de Montesquieu. Na verdade, as diferenças que vejo entre mim e Lula estão no físico, no idioma e no futebol – eu prefiro beisebol. Mas sei que também há diferenças entre os processos políticos dos dois países. E eu não vou me aventurar a falar sobre o Brasil, porque isso cabe aos brasileiros. Mas tenho certeza que Lula conduzirá o Brasil da melhor forma possível.

ISTOÉ – A que se deve o explosivo confronto político em que a Venezuela se encontra hoje?
Chávez
– O país vive uma situação histórica decisiva. Na verdade, há duas décadas existe uma crise estrutural. Termina uma época e começa outra, esgota-se um modelo e tem início outro. Como Antonio Gramsci conceituava, as verdadeiras crises explodem quando algo está agonizando, mas ainda não morreu e outra coisa está por vir, mas ainda não nasceu. Assim está a Venezuela, em um momento de transição, de uma transformação de época. Os acontecimentos recentes – o golpe e as greves, que fracassaram – foram tentativas de desestabilizar o processo de transformações que estamos levando a cabo.

ISTOÉ – Quais foram os resultados da Comissão de Verdade, estabelecida para investigar as responsabilidades pelas mortes nas manifestações que antecederam o golpe de abril?
Chávez
– A investigação foi feita pela Assembléia Nacional. Nunca antes havia sido feito um trabalho tão árduo e tão profundo. Foram entrevistados civis, militares, prefeitos e até os usurpadores da Presidência. Eu mesmo fui entrevistado pelos congressistas. Essa comissão, formada por integrantes do governo e da oposição, fez um relatório, mas a oposição se negou a aceitar suas conclusões. Os promotores entregaram o relatório ao Tribunal Supremo. Pressionado e chantageado pela oposição, o Tribunal, em uma decisão que o manchou por toda a história, decidiu que não tinha havido golpe, que eu não tinha sido detido. E isso é a causa de tudo o que está se passando nas ruas. Sabe quem está lá em Altamira? Os militares golpistas que deveriam ter sido julgados e outros civis, como o presidente da CTV (Confederação dos Trabalhadores da Venezuela), Carlos Ortega, outro golpista. Mas como o tribunal decidiu que não houve golpe, engavetaram as decisões. Nós estamos conversando com eles, mas sabemos que escondem um punhal nas costas.

ISTOÉ – A Venezuela está rachada ao meio, entre chavistas e antichavistas?
Chávez
– Você está levando uma falsa impressão do país. É uma minoria que está contra o governo. Uma minoria golpista, fascista e até terrorista. Mas dizer que os empresários estão contra o governo é falso, muitos deles continuam trabalhando com o governo em vários setores. Os estudantes, majoritariamente, apóiam esta revolução, assim como os camponeses. Diga-me se não há confronto nos Estados Unidos, na Rússia, na Argentina ou em qualquer outro país. Acontece que na Venezuela, uma minoria desesperada, com muito poder econômico e na mídia – o que amplifica seu potencial –, decidiu tomar o caminho do golpismo. Mas a grande maioria dos venezuelanos rejeita isso. Esses grupos minoritários querem sangue porque não têm outra maneira de impor sua vontade.

ISTOÉ – O sr. foi muito criticado por utilizar militares em postos civis. Qual o papel dos militares no seu governo?
Chávez
– O papel das Forcas Armadas está claramente definido na Constituição. Elas têm duas missões fundamentais de qualquer governo, inclusive em outros regimes. Primeiro, garantem a soberania do país. Segundo, participam ativamente da sociedade. Não sei se é assim no Brasil, mas a Constituição venezuelana é claríssima quanto à participação dos militares no processo de desenvolvimento do país. Com suas equipes científicas e técnicas, agem com os civis, com os governos locais, porque as Forças Armadas são uma instituição que tem uma grande capacidade de dar respostas aos problemas da sociedade, um estilo próprio de trabalhar. Criamos um corpo de engenheiros que consertam as estradas, principalmente as dos lugares mais distantes. Agora estamos remodelando as redes hospitalares construídas na época da guerra, que servirão de hospitais móveis para a população carente. Os militares também atendem as populações que passam fome. A Marinha trabalha com os pescadores na pesca artesanal. A Força Aérea transporta os pobres de áreas remotas, na selva onde não se tem acesso.

ISTOÉ – Como o sr. responde às críticas da oposição de que dirige o país com métodos autoritários?
Chávez
– Se fosse verdade que o meu discurso tivesse tanto poder para gerar confronto ou calmaria, eu falaria assim, docemente (vai abaixando a voz). O Pedro Carmona (o empresário golpista que ocupou efemeramente o lugar de Chávez em abril) esteve sentado nesta cadeira e estivemos dialogando como estamos conversando aqui. Tomamos café juntos, jantamos e nunca houve confronto. Por que, então, de um dia para o outro, a oposição decidiu romper repentinamente o diálogo com o governo? Eles começaram o confronto. Os setores oligárquicos talvez pensassem que, se falassem comigo, eu abandonaria meus propósitos revolucionários – pacíficos, mas revolucionários. Estavam enganados. Eu não cheguei até aqui para trair os flagelados, os pobres do meu país, os camponeses e as mulheres que carregam seus filhos nas costas. Eu cheguei até aqui para ser fiel a todos eles. No ano passado, aprovamos a Lei da Terra, por exemplo. Por isso os opositores saltam como serpentes. Por conta de uma lei que coloca limites nas propriedades. Observe que há pessoas aqui que possuem 100 mil hectares contra milhões que não têm um metro quadrado. Aprovamos também a Lei de Microfinanças, para financiar os pobres, ou a Lei da Pesca, que protege os pescadores pequenos contra os pescadores que fazem pesca de arrastão, que mandamos a seis milhas da costa. A costa é para os pescadores artesanais. Antes, eles eram perseguidos e, hoje, dou-lhes concessões. Aprovei leis econômicas que frearam o neoliberalismo. A oposição também queria privatizar a Petróleos de Venezuela S/A (PDVSA) e nós lhes dissemos não. Esta é a razão pela qual essas pessoas saltam como serpentes.

ISTOÉ – Apesar das duras críticas, as relações entre Washington e Caracas não foram abaladas. A iminência de uma guerra contra o Iraque facilita as relações comerciais entre EUA e Venezuela?
Chávez
– Todos os dias sai petróleo daqui para os Estados Unidos. Tomara que não haja guerra, mas se houver, honraremos nossos compromissos comerciais.

ISTOÉ – Deixando o político de lado, como o sr. se define como ser humano?
Chávez
– Sou como um esportista. Vou treinando para as dificuldades. O libertador Simon Bolívar dizia que era um homem das dificuldades e eu digo isso ao meu povo: que estamos prontos para enfrentar as dificuldades. A primeira coisa que faço todos os dias quando acordo é me postar diante de um Cristo gigante que está na minha casa, um Cristo talhado em madeira, um presente que ganhei dos indíos peruanos, e dizer que eu o amo. Minha mãe queria que eu fosse padre e, com certeza, eu seria um padre rebelde. Adotaria a Teoria da Libertação e estaria com Frei Betto, por quem tenho muito respeito. Não fui padre, mas sou cristão. Carrego essa cruz (tira uma pequena cruz do paletó) que ganhei de um dos meus conselheiros no dia do golpe. (Beija a cruz.) Eu me lembro como se fosse hoje, quando esse funcionário me disse: leve esta cruz. E eu a agarrei. Estive a ponto de morrer. Fui a uma montanha próxima ao mar e a ordem era para que me fuzilassem. Foi um milagre a minha sobrevivência. Quando sobrevoei este lugar, estava me despedindo de tudo, mas Deus não quis assim, me deu uma nova oportunidade e aqui estou. Faço sempre uma oração, pedindo a coragem de Cristo, a quem eu chamo de comandante. E isso me dá força. Quando chegam os momentos difíceis, sempre me lembro das crianças. As crianças, para mim, são Deus na Terra. Eu queria ter um milhão de crianças. (Começa a cantar o refrão da música de Roberto Carlos: Eu quero ter um milhão de amigos…) Assim eu diria. Quando estive preso, estava tranquilo. Só chorei uma vez, quando pensei nas crianças. Pensei: meu Deus, não terminei a revolução bolivariana. Os que estavam aqui neste palácio e fizeram o juramento, sabe o que queriam? Privatizar a educação.