Ele é um impostor. Um mentiroso. Um salafrário. Não passa de um golpista!”, dizia um homem de cabelos loiros e olhos azuis. “Você não sabe do que está falando! Não sabe o que é pobreza. Não sabe o que é este país. Eu sei. Eu vim de baixo, conheci a fome. E se tiver que dar meu sangue por ele, eu darei. Eu morrerei por ele. Não quero que minha filha de oito anos viva neste mundo liderado por essa oligarquia suja, esses golpistas. Eu sou promotora, sei como essas instituições são pobres e essa elite é corrupta”, respondia aos berros uma mulher ao homem que estava a seu lado. Já eram quase 11 horas da sexta-feira 29 quando essa acalorada discussão chamou a atenção das poucos pessoas que jantavam no restaurante La Tartulia, no bairro de Candelária, em Caracas, conhecido pela boa cozinha espanhola. O homem de olhos azuis retirou-se e a mulher ficou bufando. Íbis Ibarra, advogada, contou a ISTOÉ a história de milhares de seguidores do polêmico presidente Hugo Chávez Frías, um ex-tenente-coronel golpista, eleito democraticamente em 1998 com 56% dos votos, reconfirmado no
cargo dois anos depois com 60%, vítima de um golpe frustrado em
abril deste ano, e agora alvo de pressões cada vez maiores da oposição, que o acusa de populista com métodos autoritários e exige que
renuncie aos quatro anos de mandato que lhe restam. Quem discutia
com Íbis era um amigo de seu namorado, o engenheiro Domingo Falcón, que, apesar de concordar com o amigo, respeita a opinião da amada. “Tenho opinião diferente. O país precisa de mudanças verdadeiras,
mas Chávez não está fazendo nada. Estamos tentando aprender
a conviver com as nossas diferenças”, contemporizou Falcón.

Esta cena foi apenas um prenúncio da turbulência que viria nos dias seguintes. Íbis e Falcón representam apenas a superfície dos 24 milhões de venezuelanos que estão com os nervos à flor da pele em um país convulsionado, vivendo uma espécie de esquizofrenia nacional. Para quem chega, a impressão é de que este é um conflito óbvio entre os 80% da população que vive abaixo do nível de pobreza e as classes médias e altas. Na verdade, os venezuelanos vivem em dois mundos, muito distintos, segmentados em todos os setores da sociedade. A própria capital, Caracas, que se parece com um Rio de Janeiro sem a beleza da costa, com suas favelas nos morros de onde se enxergam os bairros nobres, reflete isso.

Na segunda-feira 2, quando se deu início à quarta greve geral no ano, a maior parte do comércio estava fechado, mas os camelôs que integram os 53% do mercado informal não pararam. E os trabalhadores que não quiseram aderir à paralisação encontraram as portas fechadas. “A oposição é que está prejudicando o país com greves”, afirmou Ausmelia Benítez, que ostentava uma faixa com a bandeira do Brasil na cabeça.
Na praça Bolívar, gigantescas filas eram feitas numa espécie de sacolão promovido pelo governo. “Graças a Deus chegou o comandante. Nunca tivemos isso. Chávez é o único presidente que nos deu essa oportunidade de comprar comida tão barata”, garante José Antonio Quijano, que
ficou sete horas na fila. Uma cesta básica que vale 40 mil bolívares (cerca de US$ 30) estava sendo vendida a 16 mil (cerca de US$ 12).
No bairro Altamira, onde se concentram os militares reformados que protestam contra o governo, opositores abanavam suas bandeiras venezuelanas. “Eu votei em Chávez e me arrependi. Sou cubana e
fugi de Fidel Castro para cá em 1959. Por isso digo que aqui não queremos o comunismo, o autoritarismo, a falta de liberdade, um
sistema castrista”, afirmou Isabel Valdivieso. Às 20h, em vários
bairros de classe média, como Chacaíto, centenas de pessoas batiam
suas panelas, ecoando em uníssono o famoso panelaço, um chamado
da oposição liderada por Carlos Ortega, da Confederação dos Trabalhadores da Venezuela (CTV), e Carlos Fernández, da Fedecámaras, a central patronal venezuelana, uma espécie de Fiesp local.

O governo sustenta que para vencer o abismo social é necessário uma guinada radical, a chamada revolução bolivariana, com interferência direta do Estado em todos os setores, com reformas agrícolas como a polêmica Lei da Terra, que tenta colocar um fim nos latifúndios improdutivos. É certo que essas diferenças sociais e econômicas, a corrupção em vários níveis da sociedade, inclusive dos militares, e a descrença nos políticos não são frutos do governo de Chávez, mas herança de décadas de condomínio de uma oligarquia bipartidária (a Ação Democrática, social-democrata, e o Copei, democrata-cristão).

Em vez de aproveitar o boom petrolífero dos anos 70 e 80 para desenvolver o país, os sucessivos governos torraram dinheiro, como as monarquias do Golfo Pérsico. A ilusão da prosperidade tomou conta da Venezuela. Passar um final de semana em Miami fazendo compras, por exemplo, tornou-se uma prática comum entre as classes média e alta. A conta chegou em 1989, quando o governo do então presidente Carlos Andrés Pérez foi obrigado a adotar uma duríssima política de ajustes, abrindo uma ferida que começou com uma violenta revolta popular (o “Caracazo”), passou por duas tentativas de golpe em 1992 (a primeira, liderada por Chávez) e culminou na eleição do ex-coronel golpista, em 1998, que pôs as instituições do país de ponta-cabeça.

Neste ano, a inflação já chegou a 20% e a retração atingiu 6% no último trimestre. Porém, a dívida interna está em US$ 22 milhões, menos que 20% do PIB. O governo, que priorizou os setores agrícolas e de microempresários, sustenta que a crise política o impede de fazer maiores investimentos sociais. Apesar de condenarem o suposto estatismo de Chávez, muitos empresários ouvidos por ISTOÉ acreditam que o país se acostumou a mamar nos subsídios governamentais, mas agora está aprendendo, a duras penas, a caminhar com as próprias pernas.

Como 80% da economia venezuelana baseia-se na produção de petróleo – com 3,1 milhões de barris/dia, a Venezuela é o quinto maior produtor de petróleo do mundo e supre quase 20% das importações diárias dos EUA –, a grande frente de batalha entre governo e oposição deslocou-se para a Petróleos de Venezuela (PSDVA), holding estatal. Por isso, tropas do governo cercaram os principais portos no lago Maracaibo para impedir o colapso de produção. Mas no quarto dia de greve, alguns navios aderiram à paralisação, o que agravou a crise. “Eles estão acertando o coração da Venezuela”, disse Chávez. Não é à toa que a sede da PSDVA no bairro de Chuao, em Caracas, sempre vira palco de confronto entre governo e oposição. A praça de Chuao, na parte leste da cidade e onde se concentra a maioria oposicionista, foi o ponto de origem da gigantesca manifestação de 11 de abril, que culminou no golpe contra Chávez. Na terça-feira 3, quando Carlos Ortega, da CTV, declarou que a greve deixava de ser “passiva” para ser “ativa”, opositores seguiram para Chua e os choques começaram. A Guarda Nacional jogou gás lacrimogêneo e jornalistas foram feridos. A repercussão foi imensa. A principal autopista da cidade que dá acesso à praça Francia, no bairro de Altamira, onde estão os militares de oposição, foi fechada. Um grupo de manifestantes queimou pneus e os ânimos se acirraram.

A oposição – à qual se uniram muitos dos ex-aliados de Chávez – acusa o presidente de autoritarismo, de não respeitar os direitos humanos, a liberdade de imprensa e de militarizar o país. Um português (que não quis se identificar) disse que só abriu sua loja por medo de sofrer represália governamental. A crise atingiu também o Judiciário, envolvendo o Tribunal Superior e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), que trocam acusações de desrespeito à Constituição venezuelana, promulgada em 1999 no governo de Chávez e que é vendida aos montes nos camelôs da cidade. Pela Constituição, um referendo convocatório – que não implicaria na saída de Chávez –, poderia ser realizado em agosto de 2003, na metade do mandato. Na quinta-feira 28, o CNE anunciou a data do referendo para 2 de fevereiro, mas o Tribunal Superior não acatou a decisão. Na sede da CNE, a tensão era alta. Do lado de fora, chavistas faziam protestos. Além do referendo, a oposição está pedindo a antecipação das eleições presidenciais. O governo repele essa idéia, rotulando-a de golpista, já que Chávez foi eleito e reeleito com o apoio da maioria dos venezuelanos.

Em uma longa conversa, o diretor do Banco Central, Domingo Maza Savala, afirmou que um dos maiores problemas é que a oposição não tem um projeto e quer tirar Chávez do poder a qualquer custo. “A oposição tem que apresentar um projeto nacional, em que não haja monopólios, em que a produção do país atenda às necessidades básicas dos venezuelanos em que a renda não continue a ser concentrada; os empresários devem se comprometer a manter os serviços sociais e o bem-estar da população, com uma legislação trabalhista mais justa. Ninguém aqui está falando de socialismo, de castrismo, porque isso não existe. Estamos inseridos na economia de mercado. Como nos acusam de sermos comunistas, se negociamos com todos os países e suas multinacionais? Temos que romper esse círculo vicioso”, afirmou Savala.

Ex-golpista, Chávez teme a possibilidade de novo golpe de Estado. Ele acusa a oposição de ser liderada pelos homens da intentona de abril. Carlos Fernández era vice da Fedecámaras quando seu titular, Pedro Carmona, com apoio militar, tomou o poder por 48 horas. A ISTOÉ, Fernández negou seu envolvimento com qualquer movimento golpista, afirmando que a oposição “segue a vontade popular”. Mas deixou escapar o seguinte: “Pensamos em um governo de transição. Não queremos os militares no poder, mas, sim, uma junta. Mas, se forem eles que tiverem que fazer esta transição, então aceitaremos.”

Às 14h da quarta-feira 4 já era praticamente impossível transitar em frente ao Hotel Meliá, onde estava hospedado o secretário-geral da OEA, o ex-presidente colombiano César Gaviria, que chegou há três semanas para mediar o conflito entre governo e oposição. Milhares de opositores ao presidente caminharam da PDVSA até o hotel para entregar a Gaviria um documento que pedia eleições antecipadas. Quarenta minutos depois, sob um barulho infernal de apitos e panelas, Carlos Fernández, o presidente da Fedecámaras, entregava a Gaviria o documento. Na praça O’Leary, não muito distante do Palácio Miraflores, milhares de simpatizantes de Chávez amontoavam-se gritando seu nome e dançavam ao som de músicas chavistas, vendidas em CDs nas ruas de Caracas. A fidelidade canina dos chavistas ao comandante só se compara à intransigência hidrófoba dos opositores do presidente.

Antagonismo – O sucesso ou o fracasso das pressões contra Chávez é visto sob óticas antagônicas, dependendo de quais são as fontes. Os meios de comunicação, em sua grande maioria de oposição, ampliam com lentes este louco caleidoscópio. As maiores emissoras de televisão, ferozes opositoras a Chávez, como a TV Globovisión, repercutiam a repressão aos jornalistas afetados pelas bombas de gás lacrimogêneo em alguns pontos da cidade, com entrevistados que chamavam o presidente de “golpista, fascista e castrista”. Por dois dias, os maiores jornais, El Universal e El Nacional, aderiram à greve e deixaram de circular. O governo convocou para o domingo 8 uma grande manifestação. A Venezoelana TV, chamada de oficialista pela oposição, ignorou as gigantescas marchas e anunciava o fracasso da greve.

Se desta vez Chávez resistirá ou não às pressões, dependerá,
em grande parte, do controle do setor petrolífero. As negociações
entre governo e oposição não avançaram e ambos os lados
radicalizaram. Apesar de sustentar que estava protegendo o patrimônio venezuelano, Chávez errou a mão ao reprimir os opositores, porque inflamou ainda mais a greve. Existem poucas chances de que o mandatário aceite um referendo ou eleições antecipadas e, afinal,
ele está legitimado pelas urnas. Mas, como a velocidade dos acontecimentos na Venezuela é altíssima, tudo pode acontecer.

 

Comércio Brasil-Venezuela

O presidente venezuelano, Hugo Chávez, escolheu o Brasil como prioridade nas relações internacionais, tanto é que já veio oito
vezes ao País. O embaixador do Brasil na Venezuela, Ruy Nogueira, enumerou os grandes negócios: a linha 4 do metrô de Caracas feita pela Odebretch, no valor de US$ 220 milhões; a construção da
ponte sobre o rio Orinoco, avaliada em US$ 600 milhões. Mas a
grande jogada foi da Petrobras na compra da companhia argentina Perez Companq, que explora gás e petróleo na Venezuela. São nada menos que 110 mil barris diários de petróleo. E já está programada para a terça-feira 10 uma visita do presidente da Petrobras,
Francisco Gros, às instalações venezuelanas. O presidente Hugo Chávez também anunciou a intenção de se fazer uma “Opep latino-americana”. “Seria um instrumento de integração real ao mundo globalizado, assim como já fez o setor privado. Petrobras, PetroEcuador e Ecopetrol da Colômbia, como produtores de petróleo e de gás, poderiam se integrar”, contou o presidente. Uma concorrência para a exploração de gás também deverá ser aberta e Chávez já acenou a prioridade para o Brasil. “Que venham os brasileiros”, disse.