Emir Penna

Zélia Duncan tem dito que sua vida anda mais sortida do que nunca. Pelo menos artisticamente, suas palavras não fogem da realidade. Cantora e compositora de discos sempre surpreendentes, bem-feitos, com agradabilíssimas canções de acento pop-rock-black-brasileiro, e artista carismática de palco, responsável por alguns dos recentes shows de mais alto-astral, a fluminense quis ampliar suas frentes. Fez um disco sem nenhuma composição própria, só com músicas dos repertórios de gente como Elizeth Cardoso, Wilson Batista, Silvia Telles, Cartola e Ná Ozzetti, vozes e autores que ela decidiu homenagear por a terem empurrado para o canto. É também um álbum no qual ela exerce sua luminosa faceta de intérprete. O resultado é dos melhores e Eu me transformo em outras – que inaugura o seu selo, Duncan Discos – já se coloca entre os mais importantes álbuns brasileiros do semestre.

Na faixa de abertura, Quem canta seus males espanta, Zélia incorpora a brasilidade pop de Itamar Assumpção e, parodiando a letra, entra em transe no seu canto que vira encanto. Nova ilusão é um chorinho com atmosfera romântica de outros tempos. Renúncia, na voz da cantora tem o tom dramático da letra amenizado e, com arranjo foxtrote, repica alegria. A diversão continua no samba-choro Quando esse nego chega, cuja letra de Haroldo Barbosa hoje soa bem divertida no seu masoquismo. O machismo brasileiro da primeira metade do século XX aparece no samba Nega manhosa, de Herivelto Martins, com arranjo citando Na cadência do samba (Que bonito é) e Noites cariocas (Minhas noites sem sono). A faixa se destaca pela tamanha festa rítmica promovida pela cantora e pelos músicos Hamilton de Holanda (bandolim de dez cordas) – que está lançando seu segundo CD solo, Música das nuvens e do chão –, Marco Pereira (violão de oito cordas), Marcio Bahia (bateria e percussão) e Gabriel Grossi (gaita).

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Conhecida na voz de Nelson Gonçalves, Deusa da minha rua conserva o ritmo de seresta, mas Zélia acrescenta modernidade pela maneira de ligar e interpretar os versos, sem a portentosidade do cantor de A volta do boêmio. Requinte melódico e poético acontece em Janelas abertas, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, apesar da desnecessária e longa citação de El dia que me quieras, que nada acrescenta ao conceito da música e da letra. O núcleo das belezas raras engorda com Disfarça e chora, Linda flor (Yayá) (Ai, Yoyô) e Sábado em Copacabana. Esta é constantemente revisitada. Seria um risco gravá-la. Não para Zélia, pois ela deu novo ar à canção, revestida de discreto arranjo de violão de Marco Pereira, o ex de Gal Costa. O lado contemporâneo brota em Capitu, presente de Luiz Tatit para a grande Ná Ozzetti. A canção é muito recente para chamá-la de clássico, mas sem dúvida é uma candidata. No final, vem a faixa bônus Jura secreta. Na verdade, é uma trufa da melhor qualidade, cujo sabor Zélia Duncan redescobre com a maior suavidade.