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Larry há cinco anos no Brasil: erros primários

O barulho internacional em torno da polêmica decisão do presidente Lula de cancelar o visto do correspondente Larry Rohter praticamente inverteu a corrente uníssona de indignação contra a reportagem intitulada “Hábito de beber de líder brasileiro vira preocupação nacional”, publicada no The New York Times. Os erros primários cometidos pelo repórter agridem todos os manuais de ética e de técnicas de redação. A começar pela desconsideração de dois princípios sagrados do jornalismo no mundo todo: a veracidade das informações e a credibilidade das fontes. Larry cometeu descuidos surpreendentes para um correspondente de um jornal da estatura do NYT, o maior dos Estados Unidos. Agravado pelo fato de que não é iniciante em Brasil, onde está há cinco anos. Tem 54 anos e é casado com uma brasileira há 20, com quem tem dois filhos.

As agressões começam no título, que traduz o espírito de um texto com muito mais
suposições do que fatos. Não há um único depoimento sustentando que o País estaria preocupado com o suposto vício do presidente. Larry afirma que Lula se distancia do público nos momentos de crise para, em seguida, confabular consigo mesmo: “Essa atitude tem levantado especulação sobre se o seu aparente desengajamento e passividade podem de alguma forma estar relacionados a seu apetite por álcool.” Um estudante de comunicação dificilmente produziria algo menos consistente.

O jornalista demonstra desprezo pela verdade em vários momentos de seu rosário de ilações. O primeiro, quando tenta convencer o leitor de que a suposta bebedeira de Lula “tem se infiltrado na consciência pública e se tornado alvo de piadas.” O leitor se espanta ainda mais com a frase: “Com um misto de compaixão e simpatia, os brasileiros têm assistido a seus esforços (de Lula) para não fumar em público, a seus flertes com atrizes em eventos públicos e à sua batalha contínua para evitar comidas gordurosas.” Seria patético se não fosse, antes, um texto ruim mesmo.

Outro princípio básico do jornalismo que se pretende decente e que o trabalho
de Larry ignorou é o da credibilidade. Toda notícia deve se basear em fontes confiáveis de informação. Nenhuma pessoa afirma ter visto o presidente se embriagando. A primeira fonte na qual Larry bebeu – para combinar com sua semântica etílica – foi o ex-governador Leonel Brizola, que disse ter aconselhado Lula, em 1998, a evitar bebidas destiladas. O americano deveria saber, já que é correspondente no maior país da América do Sul, que Brizola é hoje o algoz mais impiedoso de Lula, contra o qual dirige todo tipo de impropérios. O texto diz que Brizola é um simples “crítico do governo”, termo no mínimo tímido para definir a gana do ex-governador contra o sapo barbudo.

Na segunda fonte à qual recorreu, Larry usou um recurso maldoso do jornalismo: a omissão. Ele cita piadinhas do colunista Cláudio Humberto, escondendo se tratar do ex-porta-voz de Fernando Collor, que travou uma luta de morte com Lula em 1989. São piadas de gosto duvidoso, como a de que o avião presidencial deveria se chamar “Pirassununga 51” em comparação com o “Força Aérea Um”, e estão longe de embasar uma reportagem com teor tão explosivo. A última fonte citada foi o também colunista Diogo Mainardi. Apresentado pelo próprio Larry como “crítico mordaz”, a coluna da qual o americano extrai suas informações valiosas é exclusivamente opinativa.

A preguiça talvez tenha sido a maior responsável pela má qualidade da
reportagem do NYT. Larry acusou o presidente da República de ser alcoólatra
sem se dar ao trabalho de ouvir qualquer pessoa com legitimidade para sustentar
a afirmação. Limitou-se a montar um quebra-cabeças com recortes de jornais,
peças de uma mente criativa e demonstrações de preconceito explícito, outro
pecado mortal no jornalismo. Larry diz que Lula liderava “sindicatos de
trabalhadores, um ambiente famoso pelo alto consumo de álcool”. Insinua que o vício do presidente pode ter sido herdado do pai, “um alcoólatra que maltratava
suas crianças”. Sugere que todas as gafes ou indiscrições de Lula são atribuídas pelos brasileiros ao seu hábito de beber.

Embaralhar informações históricas é outra prática pouco tolerada na imprensa. Ao forçar uma comparação de Lula com Jânio Quadros, dá a entender que o álcool contribuiu para a renúncia do ex-presidente. O fato, segundo ele, “iniciou um período de instabilidade política que levou a um golpe de Estado”. O leitor desprevenido fica com a impressão de que o gosto de Jânio pela bebida influenciou mais a turbulência dos anos 60 do que fenômenos como a atuação da CIA e o apoio dos Estados Unidos aos golpistas que derrubaram João Goulart.

A briga entre Lula e o NYT mostrou que Larry snão é o único a desconhecer a história. Ao tentar expulsar um jornalista do País, o presidente e os assessores que não tentaram demovê-lo da idéia provavelmente não levaram em conta que o último correspondente mandado de volta para casa foi em 1970. Foi quando a ditadura militar expatriou François Pelou, da agência France Press, por divulgar um manifesto e a relação dos 70 presos políticos exigidos em troca da libertação do embaixador suíço Geovanni Enrico Bucher. Entrar nessa história não foi um bom negócio para o presidente Lula. De um dia para o outro, ele passou de herói a vilão e conseguiu transformar em mártir o autor de uma reportagem simplesmente ruim.