Desde que pisou no Palácio do Planalto, o presidente Lula nunca havia experimentado uma unanimidade nacional. Conseguiu na terça-feira 11. Todo o País, inclusive a oposição mais sedenta, se solidarizou com o presidente numa saraivada de adjetivos contra a reportagem do jornal The New York Times, que afirmava ser uma preocupação nacional o suposto gosto de Lula por bebidas alcoólicas. Mas, em questão de horas, Lula passou de vítima a algoz, ao recorrer a um capítulo da Lei dos Estrangeiros – criado na ditadura militar – para expulsar o autor do texto, Larry Rohter. Irritadíssimo e sentindo-se ofendido, Lula teve o apoio dos ministros Luiz Gushiken (Secretaria de Comunicação) e Celso Amorim (Relações Exteriores) e do porta-voz da Presidência, André Singer. Foi a primeira vez que um governo democrático utilizou a enrugada lei para banir do País uma pessoa tida como “inconveniente”. O mundo condenou duramente o governo brasileiro e as possíveis ameaças à liberdade de imprensa. Lula teve ainda de amargar a decisão do Superior Tribunal de Justiça de manter Rohter no Brasil, na quinta-feira 13, ao dar um salvo-conduto para o repórter.

Ichiro Guerra

Gushiken e Dirceu ajudaram a espalhar a brasa, ao apoiarem expulsão de jornalista

O exagero da medida alvoroçou o País, paralisou o Congresso e levou ao stress os aliados do governo. Tudo começou no sábado 8, quando chegou às bancas a edição dominical do jornal americano com a reportagem assinada por Larry Rohter insinuando que Lula exagerava na ingestão de bebidas. O presidente nem tinha lido a reportagem. Somente na segunda-feira 10 tomou conhecimento de uma nota-resposta feita à sua revelia pelo porta-voz, André Singer, e aprovada pelo ministro Luiz Gushiken no dia anterior. Chamou a seu gabinete o assessor de imprensa, Ricardo Kotscho, Singer e Gushiken para reclamar da divulgação da nota sem que ele fosse consultado. Singer lhe mostrou o texto numa leitura dramatizada. O presidente ficou irritadíssimo e acabou achando a nota suave demais. Exigiu respostas mais enérgicas. Na terça-feira 11, Lula teve nova reunião com Gushiken, Singer e Kotscho para discutir o assunto. Mas, dessa vez, o encontro foi reforçado pelos ministros José Dirceu (Casa Civil) e Celso Amorim (Relações Exteriores), pelo advogado-geral da União, Álvaro Ribeiro e pelo secretário particular, Gilberto Carvalho, além do ministro da Justiça interino, Luis Paulo Teles Barreto. Antes, o presidente já havia disparado telefonemas a todos os presentes pedindo sugestões de providências contra a reportagem, baseada em fontes duvidosas para afirmar o suposto pendor alcoólico presidencial. Foi o chanceler Amorim quem serviu o maior cardápio de opções, entre elas a expulsão. A área jurídica do governo discordou, preferindo orientar o presidente a mover um processo judicial. “Eu não posso esperar. Quero mandar esse cara para fora do País. Quero cassar o visto”, sentenciou Lula, enfurecido. “É um tiro no pé. Ele é casado com uma brasileira e pode ter um visto permanente”, ponderou o ministro Teles Barreto. “A decisão está tomada”, reagiu Lula, batendo na mesa. Também foram contrários à expulsão o jornalista Ricardo Kotscho e Gilberto Carvalho, mas José Dirceu (banido do País na ditadura), Celso Amorim, Singer e Gushiken insuflaram a expulsão.

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em viagem à Suíça, foi apenas comunicado da decisão e não gostou. “Depois avaliamos”, respondeu Bastos ao ser informado dos fatos por seu interino. “Já apanhei muito, tenho o couro grosso como o de tatu. Mas não admito mexer com minha honra e a da minha família”, esbravejou o presidente, revelando um dos pontos mais incômodos da reportagem – a referência a supostos problemas de seu pai. “O sr. da Silva nasceu em uma família pobre em um dos Estados mais pobres do País e passou anos como líder de sindicato, um ambiente conhecido pelo uso de álcool. Seu pai Aristides, que ele pouco conheceu e que morreu em 1978, era um alcoólatra que abusava de seus filhos”, escreveu o jornalista. “Se eu recuar, perco o respeito por mim mesmo. Não me importo que falem de minhas gafes, mas com minha família não posso recuar”, desabafou Lula aos líderes do Senado que tentaram, em vão, convencê-lo a retroceder na expulsão do jornalista na manhã de quinta-feira.

Ichiro Guerra

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Martins, do STJ (à esq.), concedeu o salvo-conduto a Larry. Bastos e Mercadante foram contra a expulsão

Do grupo que ficou contra a expulsão, Márcio Thomaz Bastos foi o que mais se chamuscou por suas opiniões e conduta. Contrário à aplicação de uma lei da ditadura que caiu em desuso, Bastos fez tudo o que pôde para impedir a decisão presidencial. Ao ser informado por seu interino sobre a tomada de posição de Lula, na terça-feira à noite, chegou a tentar impedir a publicação da nota oficial que tornaria pública a expulsão. A pressão do Planalto foi maior. No dia seguinte, em dois telefonemas, o ministro insistiu em um recuo, sem êxito. Na quinta-feira, partiu para uma nova tentativa: “Presidente, se houver uma retratação, o senhor poderia reconsiderar?”, perguntou o ministro, de posse de uma carta na qual Larry Rohter ensaiava um pedido de desculpas. A resposta foi seca: “Não vou reconsiderar, mas, de qualquer maneira, mande a carta que vou avaliar”, encerrou o presidente. O ministro encaminhou o texto por fax, reforçado por uma defesa na qual o considerava suficiente para uma reconsideração. Lula achou-o insuficiente e exigiu uma retratação clara ou desculpas públicas. Além de discordar, o presidente se irritou com Bastos. “O Márcio defendeu mais o jornal que a mim”, queixou-se no encontro com os líderes. “O Márcio quase me pede para condecorar o cara”, recriminou. Na quinta-feira à noite, o Ministério da Justiça ainda esperava uma segunda carta de Rohter com pedidos explícitos de desculpas.

O que mais indignou o presidente foram as informações repassadas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) de que Rohter é o autor da expressão “Novo eixo do mal”, uma suposta trindade presidencial composta por Lula, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, e o cubano, Fidel Castro. O governo está convencido de que o jornalista americano agiu de má-fé para prejudicar o Brasil. “Ele disse ao mundo: não negociem com o presidente brasileiro porque ele é um bêbado”, avaliou um ministro. O líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante (SP), vai mais além: “Estou convencido de que ele é vinculado ao Departamento de Estado americano.” Instituições internacionais especialistas em mídia também suspeitam de Rohter. O professor Jack Lule, da Universidade da Pensilvânia, vê uma estranha coerência no trabalho do repórter, seja no Brasil, seja na América Central ou do Sul, de seguir sempre a política externa do Departamento de Estado. Segundo Jack Lule, “o temor do mundo de que a cobertura de correspondentes americanos seja vinculada à política externa dos EUA se materializa nas suas matérias”.

O fato é que Márcio Thomaz Bastos, advogado experiente, já antevia que a Justiça garantiria a permanência de Rohter no Brasil. Na decisão do ministro do STJ, Peçanha Martins, que deu o salvo-conduto ao jornalista, o governo teve de encarar uma aula de direito constitucional. “No Estado democrático de direito, não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da administração”, criticou Martins, deixando claro que, na sua opinião, Lula misturou o público com o privado ao utilizar instrumentos do governo para se defender de acusações pessoais. O Planalto discorda. Avalia que a Presidência, como instituição, foi atingida. O saldo dos erros foi um tremendo mal-estar entre o presidente e seu ministro da Justiça, que já anda pensando em pedir o boné. Só não o fará agora porque sabe que sua saída agravaria ainda mais a crise. Mas, na primeira oportunidade – possivelmente na reforma do Judiciário –, Bastos pode deixar o governo, apesar de sua amizade com o presidente.

A crise provocou um prejuízo colateral: acabou ofuscando preciosas notícias positivas registradas durante a semana. A economia finalmente começa a responder ao processo de redução dos juros e entra firme em um ritmo de recuperação. A produção industrial subiu 2,1% em março em comparação com fevereiro. Em relação a março de 2003, o aumento foi de 11%. A greve da Polícia Federal, paralisação que mais angustiava o governo, acabou. O estrago causado pelo caso Waldomiro parece ter se esgotado: a mais recente pesquisa CNT/Census mostra que o processo de queda da popularidade do presidente foi interrompido. Até o pacote de combate ao desemprego, preparado com zelo pelo governo e anunciado na quinta-feira 13, passou praticamente despercebido. Entre outras medidas, o Planalto anunciou mudanças no programa Primeiro Emprego, mais R$ 2,9 bilhões para obras municipais de saneamento e o recrutamento extra de 30 mil soldados nas Forças Armadas. Com isso, em vez de fortalecido, o governo entra debilitado em uma semana sabidamente delicada. A instabilidade no mercado internacional provocada pela expectativa de aumento dos juros americanos lançou uma sombra sobre a disposição do Comitê de Política Monetária do Banco Central, que se reúne na próxima semana, em prosseguir com a gradual redução das taxas de juros. Já no Congresso, anuncia-se uma verdadeira guerra em torno do novo valor do salário mínimo. O deputado oposicionista Rodrigo Maia (PFL-RJ), relator da medida provisória do mínimo, resolveu fixá-lo em R$ 275. O governo não abre mão dos R$ 260. O assunto, que racha até a bancada petista, vai ser discutido no plenário da Câmara. No meio do maremoto, Lula atravessa o mundo esta semana para fechar negócios na China, mas terá de manter os olhos bem abertos no Brasil.


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