O jornal The New York Times, em
sua edição de domingo 9, publicou reportagem de seu correspondente
no Brasil, Larry Rohter, que causou profunda indignação no País. Sob o
título “Hábito de beber de líder brasileiro vira preocupação nacional”, a matéria
foi elaborada usando informações inconsistentes e traçou um perfil humilhante do presidente da República. As manifestações de repúdio foram imediatas e vieram de todos os lados. Até o senador Artur Virgílio, líder do PSDB e ferrenho opositor do governo, ocupou a
tribuna e considerou a reportagem uma “grosseria” e “ofensiva à dignidade do
País”. O vice-presidente José de Alencar considerou-a uma “infâmia” e o ministro José Dirceu disse que respeita a liberdade de imprensa, mas considera a
matéria ofensiva ao País.

A indignação foi irrestrita, e o governo num primeiro momento considerou a
hipótese de entrar na Justiça e exigir retratação. Antes o tivesse feito. Os ânimos
se acirraram e o presidente acabou tomando a drástica e desastrada decisão de
não renovar o visto do jornalista. O último caso similar aconteceu em 1970, em
plena ditadura, quando François Pelou, da Agência France Press, foi expatriado
por ter divulgado uma relação de presos políticos pedidos em troca da libertação
de um embaixador sequestrado. A decisão de Lula causou mais barulho e revolta
do que a reportagem do The New York Times e acabou redirecionando a
enxurrada de críticas contra o governo.

Na quinta-feira 13, dois dias depois de tomar a malfadada decisão, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva recebeu pela manhã, no Palácio do Planalto, os líderes da base do governo no Congresso. Articulado pelo senador petista Aloizio Mercadante,
o grupo de parlamentares tinha a difícil missão de convencer Lula a recuar depois
da repercussão negativa no Brasil e no Exterior. Segundo um dos presentes, o
líder do PSB, senador João Capiberibe (AP), o que eles conseguiram foi que o presidente admitisse recuar da decisão só se o jornal se retratasse. Capiberibe também disse que saiu convencido de que a atitude tinha sido certa. “A matéria
se refere até ao pai do presidente, diz que ele era alcoólatra”, afirmou o senador. Nesse mesmo dia, o presidente recebeu ISTOÉ e falou sobre as dificuldades da economia, a eleição em São Paulo e desabafou sobre o caso do The New York Times. Leia a seguir a entrevista do presidente.

Ichiro Guerra

“ Se eu não me defender, ninguém vai me defender. Este foi o gesto da minha indignação ”

Ichiro Guerra

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" Não sei o que os companheiros do PT paulista estão pensando, mas uma aliança com o PMDB é importante"

ISTOÉ – A expulsão do jornalista americano pôs querosene numa fogueira
que já estava em extinção, além de fazer lembrar dos tempos em que o senhor
era perseguido pela ditadura. O sr. não piorou as coisas? Não abriu um
precedente preocupante?
Luiz Inácio Lula da Silva –
Primeiro que não tem precedente nem tem nada que atinja a liberdade de imprensa. O jornal pode tirar este cidadão e mandar 350 jornalistas pra cá para fazerem 350 matérias criticando o governo que não tem problema. Não estamos expulsando do Brasil este cidadão, que eu nem conheço.
É um direito do Estado conceder ou não o visto. É engraçado: os EUA não concedem visto ao deputado Fernando Gabeira, que sequestrou o embaixador em 1968. O embaixador já morreu de velho e ainda hoje o Gabeira não consegue entrar lá. Primeiro, eu não tomei nenhuma atitude precipitada. Fiquei sabendo da matéria
no sábado. Li, reli, reli mais uma vez e fiquei tentando saber o fundamento. Por
que um cidadão faria uma matéria daquela? Ele poderia dizer que o governo é incompetente, que o governo não está conseguindo fazer nada. Poderia dizer
que eu bebo. Que gosto de tomar uísque, de tomar uma cerveja, de fumar um charuto. É a pura verdade.

ISTOÉ – Então onde é que pegou?
Lula –
Primeiro, eu não sou o Lula, sou o presidente da República. Que é uma instituição. Segundo, esse cidadão nunca esteve comigo, nunca viu o meu cotidiano. Não poderia passar para fora que o Brasil é governado por um alcoólatra. Eu duvido que qualquer companheiro tenha me visto bêbado alguma vez. Faço este desafio para a imprensa nacional. Ele poderia ter dito tudo o que quisesse: o presidente Lula vai nos coquetéis e bebe, vai nos almoços e toma um uísque. Poderia até me acompanhar marcando a quantidade que eu tomo. Tomou dois, tomou um, tomou um copo de vinho. Poderia até fazer um cálculo para o IBGE. Mas não. Baseado em notícias de um tal de Mainardi, que eu não sei aonde fica, baseado numa figura como o Cláudio Humberto e baseado no Brizola – que deve ter muita experiência de alcoolismo mesmo –, ele afirma que o Brasil corre risco porque o presidente Lula é um bêbado e o povo está preocupado com isso. Esse é o problema. Nenhum político neste país já bebeu com o povo como eu bebi. E você lembra. Eu tomava meu aperitivo, e às vezes era na porta de fábrica. Nunca escondi de ninguém, nunca fingi, nunca impedi que tirassem uma fotografia minha. Agora, veja a situação. Quando eu chegar na África do Sul, em Angola, quando eu for falar com o sheik da Arábia Saudita, ele vai dizer: “Pô, será que esse cara está bêbado? Ele é um alcoólatra.” Fiquei indefeso. O Brasil não é governado por um alcoólatra. Qual era o único instrumento que eu tinha? Bom, esse cidadão não tem direito de estar aqui, é uma concessão do Estado brasileiro permitir que ele fique aqui. Essa pessoa é uma persona non grata no Brasil. Está vencendo o contrato dele e não vamos renovar. O NYT que mande outro para cá. Fiz isto com a maior consciência, sabendo, inclusive, dos antecedentes deste cara.
 

ISTOÉ – O que aconteceu para o jornal publicar
essa reportagem?
Lula –
Eu aprendi desde pequeno, acho que por razões da minha família, a me respeitar, sabe? Aprendi a ter auto-estima. Se eu não me defender, ninguém vai me defender. Este foi o gesto da minha indignação. O cidadão não fez uma crítica política, uma crítica ao governo, ele atacou, da forma mais difamatória possível, a instituição Presidência da República. Não foi uma coisa qualquer que ele fez.

ISTOÉ – Não há como o senhor recuar?
Lula –
Estou tranquilo com o que fiz, posso perder
no Judiciário. A única possibilidade de eu mudar de posição – e você sabe que eu sou uma figura generosa – era se o NYT tivesse reconhecido a besteira que fez. Pelo contrário. O embaixador brasileiro foi lá e a porta-voz reiterou a matéria.

ISTOÉ – O governo está sendo acusado de paralisia. No caso Waldomiro,
na MP do Bingo….
Lula –
O governo não poderia fazer mais do que fez.

ISTOÉ – Não poderia ter tirado o caso Waldomiro de dentro do Palácio?
Lula –
Eu fiquei sabendo do caso às 10h45. Ao meio-dia, o Waldomiro estava exonerado e a Polícia Federal já tinha aberto o inquérito. Este é o papel do
Executivo. Mais do que isso, o que eu poderia fazer? Não tenho o direito de
investigar, de prender e de punir. Tomei a decisão administrativa que era pertinente ao presidente da República. Temos de ter em conta que estamos num embate político e toda a oposição fica sempre na expectativa de que você cometa um
deslize qualquer. Isto é normal. Nesses casos, precisamos ter paciência. Não podemos sequer chorar, porque já fizemos muito isso com os outros. Faz parte
do jogo, não tem por que reclamar.

ISTOÉ – O que inviabiliza uma aproximação do PT com o PSDB?
Lula –
O PSDB nasce com força junto a setores intelectuais em que o PT também tem certa influência. Há uma disputa quase natural dos dois partidos sobre qual deles tem hegemonia nesses setores. Isso dificulta uma aliança política. O PT, por exemplo, disputou com Mário Covas duas vezes e não teve nenhuma vacilação em apoiá-lo no segundo turno. Entendíamos que era a melhor solução para São Paulo. Já o PSDB não tem essa mesma facilidade em relação ao PT. Devemos ter paciência. Mas acredito que, quando começarmos a discutir reforma política, o País caminhe para ter menos e maiores partidos, com representação mais consolidada na sociedade. Vários setores confluirão para determinadas organizações políticas.

ISTOÉ – Mas uma convergência entre o PSDB e o PT daria ao senhor menos trabalho para governar.
Lula –
Não é bem assim. Na época em que o Sarney era presidente, foram 23 governadores, 306 constituintes e, ainda assim, ele teve muita dificuldade. Nem sempre todo mundo no mesmo partido é sinônimo de facilidade. Se você tiver uma maioria consolidada no Congresso, há mais articulação. Vamos ser francos: até agora não tivemos problemas. O que as pessoas querem é ser contatadas, respeitadas e participar do processo desde o início. Foi assim que conseguimos aprovar as reformas da Previdência, Tributária e a regulamentação do setor energético brasileiro. Na verdade, não tivermos dificuldade para aprovar as coisas.

ISTOÉ – Mas o salário mínimo, por exemplo, está com problemas.
Lula –
Na história deste país sempre tivemos problemas com a votação do mínimo. Ele sempre será menor do que as pessoas merecem e precisam. O Estado, como indutor da economia, está ficando empobrecido. Quando nós falamos do mínimo, é importante ter em mente que na iniciativa privada tem cada vez menos gente ganhando salário mínimo. Hoje, cerca de seis milhões de pessoas recebem o mínimo e nas chamadas categorias organizadas, ganha-se acima deste piso.

ISTOÉ – A eleição para a Prefeitura de São Paulo está se tornando plebiscitária. Com a candidatura de José Serra (PSDB) e a prefeita Marta não tendo um vice do PMDB, qual é a sua estratégia?
Lula –
Todos têm a clareza da importância da eleição em São Paulo. Eu ainda não sei quais e quantos serão os candidatos. Mas estou certo de que dificilmente a Marta perderá as eleições.


ISTOÉ – O senhor acha que ela deve mudar o candidato a vice?
Lula –
Não sei o que os companheiros do PT de São Paulo estão pensando,
mas uma aliança com o PMDB é importante. Não apenas do ponto de vista da disputa eleitoral, da televisão, da eleição de uma grande maioria de vereadores.
O PT de São Paulo tem maturidade para isso, é um partido muito estruturado.
Vamos ver se é confirmada a indicação do ministro José Serra. (A candidatura foi confirmada no final da tarde) Dependendo do número de candidatos, acredito
que o PT terá que fazer uma inflexão.

ISTOÉ – O sr. acredita que a prefeita está disposta a isto?
Lula –
A Marta é muito inteligente. Vai analisar o quadro político. Eu conversei com o PMDB e o partido tem interesse em fazer aliança com o PT, mas quer discutir a composição da chapa, entre outras coisas. Se quisermos fazer uma coisa pra valer, o José Genoino (presidente do PT) e o Michel Temer (presidente do PMDB e candidato) têm que conversar com a prefeita. Como Marta tem muitas possibilidades de ganhar as eleições pelo trabalho que ela está fazendo – e não é só porque ela é uma mulher inteligente, bonita e que gosta de aparecer na tevê –, dificilmente terá um candidato em condições de derrotá-la.

ISTOÉ – Como o senhor está vendo
este imbróglio da reeleição das mesas da Câmara e do Senado?
Lula –
Eu disse aos presidentes da Câmara, João Paulo (PT-SP), e ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), que não é bom que o Executivo tenha qualquer intromissão nessa primeira etapa da discussão. Depois que isto for decidido, aí sim mostraremos nossa disposição política de articular. O João Paulo é excepcional. Poucas vezes a Câmara teve um presidente com tal facilidade de interação com os deputados. O Sarney demonstrou muita solidez, uma postura de alguém que já foi presidente da República, sabe o que é sentar na cadeira e tem agido com toda prudência política para evitar qualquer transtorno. Os dois me dão tranquilidade. Agora, esse é um problema que eles terão que resolver.

ISTOÉ – No início, o senhor adotou a ortodoxia econômica e a responsabilidade fiscal. Agora, não seria a hora de corrigir a rota?
Lula –
No primeiro ano, exercemos a única opção que tínhamos. E o fizemos com muita seriedade e celeridade. Enfrentamos problemas internos no nosso partido, entre os aliados, mas tínhamos consciência de que era preciso fazer o que foi feito.

ISTOÉ – Mas estes problemas foram previstos?
Lula –
Antes de tomar uma decisão, sempre discuto os problemas que terei
depois dela. Nós chegamos a dizer que, no momento de consolidação da imagem do Brasil no Exterior, da credibilidade da política externa, da qualidade do controle
da dívida pública, teríamos uma dosagem razoável no investimento em política social. Foram R$ 3,7 bilhões contra R$ 2 bilhões nos anos anteriores. E entramos em 2004 com a consciência tranquila de que a economia estava se preparando
para crescer. Todos nós estaremos vivos nestes próximos meses para ver que a economia crescerá de forma sustentável, sem sobressaltos. Fizemos as coisas mais lentas do que deveríamos e gostaríamos. Era a forma necessária para que
não fôssemos pegos de surpresa por algum vendaval. Tivemos o problema da
taxa de juros no começo do ano. Mas não foi apenas a ausência de sinais da redução de juros em janeiro e fevereiro que contrariou o otimismo da sociedade, sobretudo dos empresários. Depois, tivemos o episódio Waldomiro, que causou
um certo tumulto na política interna e dentro do governo. O que conversávamos sempre, sobretudo eu, Zé Dirceu (ministro da Casa Civil) e (Antônio) Palocci (Fazenda), era no sentido de separar a economia do problema político. Temos
que fazer com que a economia continue andando de forma sólida, ainda que
lenta, para não termos um retrocesso. Os dados já começam a mostrar que
agimos corretamente. O crescimento industrial está melhorando. Não vou nem
falar do agronegócio, que se expande de forma extraordinária. O mesmo ocorre
com as nossas exportações, as vendas de equipamentos agrícolas. Criamos a política industrial, o emprego formal está crescendo – não na medida em que eu gostaria –, mas está crescendo. Temos um saldo positivo no primeiro semestre
de 347 mil novos empregos com carteira assinada.

ISTOÉ – As exportações e os bancos vão bem, mas o mercado interno sofre. Quando isto muda?
Lula –
Este é o nosso grande desafio. O crescimento do mercado interno pressupõe mais crescimento nas indústrias, nas economias de bens de consumo popular. É preciso mais crédito e, sobretudo, a juros mais baratos. Estamos tomando várias medidas para colocar mais dinheiro em circulação. O Brasil teve momentos em que o Estado tinha capacidade de investimento, dinheiro. Na medida em que não se tem a capacidade de fazer a indução necessária, a iniciativa privada se retrai, se retrai a entrada de investimento externo. Constatamos o óbvio: há anos o Estado brasileiro perdeu a capacidade de indução, que começou com o Collor.

ISTOÉ – Qual a saída?
Lula –
Mandamos para o Congresso o PPP (Parcerias Público-Privadas) e a lei
que desbloqueia a possibilidade de investimento do sistema financeiro na construção civil, criando condições que facilitam a vida do vendedor e do
comprador. O PPP permitirá a possibilidade de pactuar com a iniciativa privada a idéia da construção de determinadas obras que o Estado não tem dinheiro para construir. Estou convencido de que, quando o projeto for aprovado, faremos ótimas parcerias. Estamos criando as condições para que as mudanças estruturais permitam que a iniciativa privada faça estes investimentos diante da fragilidade do Estado. Feito isto, a economia estará preparada para crescer mais do que os 3,5% que temos convicção de que crescerá neste ano.

ISTOÉ – Fazer comparações com o antecessor, como se viu no programa de tevê do PT, não seria levantar a bola do adversário?
Lula –
Não. Quando alguém escreve um artigo dizendo que o governo está paralisado, sou obrigado a mostrar a comparação porque é o único instrumento
que tenho para provar que não é verdade. Só para você ter idéia: os R$ 2,9 bilhões
de investimentos em saneamento básico que anunciei hoje é mais do que foi feito em sete anos pelo governo passado. Não existe nenhuma paralisia. Pegamos este país com as estradas totalmente destroçadas. A última grande restauração foi no governo Sarney, que recuperou cinco mil quilômetros. A partir de junho, começaremos a restaurar 7,8 mil quilômetros. O dinheiro já está liberado. O País está em movimento. Somemos alguns gastos com políticas sociais do governo
FHC. No ano em que ele gastou mais, foram R$ 2,7 bilhões. Neste ano, estamos gastando R$ 5,4 bilhões. Saímos de uma média per capita familiar de R$ 22 para
R$ 73. As pessoas estão recebendo praticamente o triplo. Vamos chegar em dezembro com seis milhões de famílias atendidas e no final do mandato com 11 milhões. As coisas estão acontecendo, não com a rapidez que eu desejo, mas
estão acontecendo. E não mediremos esforços para implantar as políticas sociais. Veja a questão da reforma agrária. O meu desafio, e assumimos o compromisso
de atendermos 430 mil famílias, é fazer um novo tipo de reforma agrária. Dar a cada assentamento as condições de produtividade que precisam para que justifique o investimento público feito.

ISTOÉ – Mas as invasões continuam.
Lula –
Isso é outra coisa. Houve uma invasão no Incra, por exemplo, a respeito da qual o MST declarou não ter responsabilidade. É uma dissidência deles. As ocupações acontecem porque as pessoas querem se fazer enxergar, querem dizer: “Eu existo, lembrem de mim.” Temos que tratar com carinho. A reforma agrária é
uma necessidade. Mas tão necessário quanto fazermos a reforma agrária é garantirmos o sucesso da política agrícola para a agricultura familiar. O desafio é fazermos as coisas diferentes do que se vinha fazendo.


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