Fotos: Hélcio Nagamine

Uma rede de corrupção entranhada no centro geográfico do Estado de São Paulo já desviou do caixa do município de São Carlos pelo menos R$ 40 milhões, originalmente destinados à merenda escolar e à saúde. Formado por um núcleo de 30 pessoas, o grupo começou a atuar há quase uma década em São Carlos, pólo científico-tecnológico, que abriga centros de excelência da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal. De lá, estendeu seus tentáculos para as cidades vizinhas de Descalvado, Ibaté, Porto Ferreira e Ribeirão Bonito. Cruzamento de dados realizado pela Divisão de Inteligência da Polícia Federal, em Brasília, mostra que no comando dessa organização estão dois ex-prefeitos de São Carlos: Dagnone de Melo (1997-2000) e Rubens Massucio Rubinho (1993-1996). Embora neguem as acusações, ambos têm contra si rastros tão comprometedores que, na Justiça, terão de responder por formação de quadrilha, falsidade ideológica, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e peculato, como é chamado o crime de apropriação de dinheiro público. Uma avassaladora combinação de empresas-fantasmas, licitações fraudulentas e contratos superfaturados culminou num rombo sem precedentes na região, uma das mais ricas do País. Há ainda a suspeita de conexão com o roubo de carga, investigada por promotores do Grupo de Atuação Especial Regional para Repressão ao Crime Organizado (Gaerco).

De acordo com análise feita pelo Tribunal de Contas do Estado na contabilidade da merenda escolar de São Carlos, 80% das empresas “selecionadas” para fornecer os gêneros alimentícios em 1999 e 2000 eram irregulares. Algumas não passavam de fantasmas. É o caso da Comércio de Gêneros Alimentícios Recanto Ltda., que, entre outros produtos, teria abastecido escolas e creches com 800 quilos de caldo de carne, no dia 26 de janeiro de 1999, conforme a nota fiscal número 7261. Além da quantidade do produto comercializado, há outros detalhes estranhos no documento. O endereço da empresa registrado na nota fiscal corresponde ao de uma singela pracinha da Vila Mariana, na capital paulista. Os dados fiscais – CNPJ e inscrição estadual – foram clonados de outra firma, o Supermercado Yoshimi, que fica no extremo leste da cidade, na divisa com Itaquaquecetuba. Dona do estabelecimento há 14 anos, Elena Yoshimi não se conforma de ter sido envolvida no imbróglio. “A soma de caldo de carne que vendemos nesses anos todos não chega a 50 quilos”, calcula. Para completar, até a gráfica que teria imprimido o talonário da Recanto é fictícia. O prédio onde deveria estar instalada, no bairro paulistano do Limão, encontra-se desocupado. Antes, abrigou uma indústria de autopeças.

Fotos: Hélcio Nagamine

Na mira da lei: candidato nas próximas eleições, o ex-prefeito Dagnone de Melo
(à esq.) é acusado de ser um dos líderes de grupo organizado para fraudar cofres públicos, em especial os recursos destinados à merenda escolar, usando uma rede com empresas-fantasmas, incluindo algumas, coordenadas pelo comerciante Ivan Ciarlo (centro.). O esquema teria começado a se instalar na Prefeitura de São Carlos, durante a gestão do também ex-prefeito Massucio Rubinho (à dir.), que ainda responde por desvio de verbas da saúde, mas todos negam as acusações

Assuntos ilícitos – Outro singular fornecedor da prefeitura nas gestões Massucio Rubinho e Dagnone de Melo foi o Miranda & Muno Ltda., cujo nome fantasia é Casa de Carnes Continental 5. No período investigado, o açougue recebeu 59% dos recursos repassados às empresas irregulares, que totalizavam R$ 4,9 milhões, em valores atualizados pelo IPCA de abril. Apesar de existir, a casa de carnes não está registrada em nome do dono, o comerciante Ivan Ciarlo. “Como não podia ter empresa, por causa de uma falência, fui abrindo no nome de outros”, admite Ciarlo. O problema é que essas empresas eram fictícias. Uma delas, a Fernan Mercado, foi registrada em nome de Fernando Luís Salomão de Oliveira, um rapaz com notórios problemas mentais. Em outra, uma cabeleireira apareceu, involuntariamente, como negociante de parafusos. Apesar dessas falcatruas, Ciarlo reclama do prejuízo que teria levado no final de 2000, na gestão Dagnone de Melo, que acabara de ser derrotado nas urnas por Newton Lima (PT), ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos. “Eu tinha uns R$ 300 mil para receber, mas aceitei uma troca, porque diziam que quando o PT entrasse não iria pagar mesmo”, conta. “Para cada R$ 80 mil que eu assinava como recebido, tinha um abatimento de R$ 10 mil no que devia em imposto.”

O simples ato de manusear os processos de licitação da época revela episódios grotescos de fraude. “Há propostas sem nenhuma dobra, nenhuma marca, que não caberiam sequer dentro dos envelopes dos quais elas supostamente teriam sido retiradas”, lembra o procurador regional da República Osvaldo Capelari Júnior, que investigou o caso. Todo esse esquema foi descoberto por causa da Amarribo, organização não-governamental fundada em 1999 por um grupo de amigos da pequena Ribeirão Bonito, a 35 quilômetros de São Carlos. Profissionais bem-sucedidos, morando na cidade de São Paulo desde a juventude, eles resolveram investir na revitalização cultural do lugar onde nasceram (leia quadro à pág. 30). Mal começaram a restaurar a capela da cidade quando chegaram denúncias de corrupção contra o então prefeito, Antônio Sérgio Mello Buzzá (PMDB). Na contabilidade municipal, constataram a existência de um escandaloso desvio do dinheiro da merenda escolar e o pagamento por obras jamais realizadas. Havia problemas em todos os setores da administração. A quantidade de combustível quitada pelo caixa só poderia ser consumida se os 34 veículos da frota rodassem sem parar, durante as oito horas do expediente, o ano inteiro.

Fotos: Hélcio Nagamine

Alta tensão: a radialista Baby Soares e o prefeito Newton Lima (à dir., ao centro) com autores da sindicância que denunciou o rombo

Quando o cerco se apertou, em abril de 2002, o prefeito Buzzá renunciou ao mandato e sumiu do mapa. Quatro meses depois, foi localizado e preso na cidade de Chupinguaia, em Rondônia, trabalhando como médico, sua profissão original. Transferido para São Paulo, cumpriu a pena decretada pela Justiça, de dez meses. Junto com o escândalo, veio à tona o nome de um funcionário da Prefeitura de São Carlos, Wilton Moshida. Ele havia se tornado uma espécie de assessor para assuntos ilícitos do prefeito Buzzá desde o começo de 2001, ocasião em que fora afastado da chefia da divisão de compras pelo atual prefeito, o mesmo que liquidara nas urnas os planos de reeleição de Dagnone de Melo. Para o procurador Capelari Júnior, o procedimento foi transparente. “Quando perdeu a Prefeitura de São Carlos, a organização criminosa passou a exportar sua tecnologia delinquente para outros municípios”, afirma. A Polícia Federal em Araraquara, responsável por dois inquéritos sobre a atuação da rede, já comprovou que as mesmas empresas-fantasmas que assombraram São Carlos e Ribeirão Bonito também aparecem na contabilidade das prefeituras de Descalvado, Ibaté e Porto Ferreira.

Pasta preta – Outra modalidade de fraude popularizada pelo grupo foram as compras fictícias. Em 1996, a gestão Massucio Rubinho em São Carlos pagou
por 310 toneladas de carne. Não chegou a comprar 39 toneladas. Na área da
saúde, a simulação de compra de medicamentos era respaldada pela apresentação de notas fiscais de farmácias da cidade. Através desse mecanismo, durante dois anos da administração do mesmo Massucio Rubinho, sumiram dos cofres municipais R$ 22,7 milhões, em valores de hoje, de acordo com a Procuradoria
da República. À época, a quantia representava 85% dos recursos movimentados pelo Fundo Municipal da Saúde. Um funcionário da prefeitura confessou à Polícia Federal que, pelo menos duas vezes por mês, se dirigia a uma agência do Banespa para descontar cheques previamente endossados pelos donos de farmácias envolvidos na roubalheira. Nessas ocasiões, acondicionava o dinheiro em uma pasta preta, tipo “007”, adquirida para esse fim exclusivo. Em seguida, entregava a pasta diretamente ao então prefeito Massucio Rubinho ou a dois de seus auxiliares. Nesse período, a Prefeitura de São Carlos, cidade com 200 mil moradores, desembolsou em compras de remédios o mesmo valor que Belo Horizonte (MG), que tem 2,3 milhões de habitantes.

Por causa do desvio dos R$ 22,7 milhões, parte deles vinda do cofre da União,
o ex-prefeito e outras 13 pessoas foram denunciados à Justiça Federal por quatro procuradores da República. O juiz federal Márcio Satalino Mesquita decidiu processar, por sonegação fiscal, apenas os farmacêuticos que emitiram as notas fiscais. Quanto ao resto, entendeu não ser de sua competência. No ano passado, remeteu a denúncia para a Justiça Estadual, que acaba de instaurar processo contra todo o grupo. Procurado por ISTOÉ, o ex-prefeito Massucio Rubinho afirmou estar sendo vítima de perseguição política. “Pela pesquisa Datafolha, fui o prefeito mais popular do Brasil entre 1993 e 1994, com 86% de aprovação”, ressaltou. “Não faço parte de nenhuma quadrilha, mesmo porque o Dagnone de Melo é meu adversário político.” Candidato do PFL à prefeitura nas próximas eleições, Dagnone de Melo seguiu linha similar. “Se ocorreu alguma irregularidade, foi no âmbito dos empresários e de funcionários subalternos”, disse. Na defesa, preferiu criticar o atual prefeito, Newton Lima, que concorre à reeleição. “Junto com neófitos em administração pública, ele armou uma sindicância para me perseguir”, acusou. Dagnone de Melo estava se referindo à exaustiva sindicância sobre a merenda escolar realizada pelo procurador da prefeitura, Igor Tamasauskas, e pelo atual secretário da Fazenda, Gilberto Perre.

Bala de revólver – O atual prefeito afirma que, em abril de 2002, ao saber do envolvimento de um funcionário municipal no escândalo de Ribeirão Bonito, tratou, de fato, de nomear uma comissão para auditar as contas de São Carlos. “Na verdade, minha inesperada eleição interrompeu um ciclo de anos e anos de corrupção”, comenta Newton Lima. “Mas, como eles dominam a maior parte da mídia da cidade, tentam desacreditar a sindicância e nos difamar.” Nos meios políticos, o clima é de alta tensão. A radialista Baby Soares, que costuma debater as denúncias de irregularidade em seu programa diário, conta que vive sob constante ameaça. Numa das vezes, um envelope sem remetente foi enviado a ela. Dentro, tinha uma bala de revólver calibre 38. “Só faço a minha obrigação, mas trabalhar em São Carlos está ficando insustentável”, reclama. Nem na Justiça existe plena confiança. Presidente do conselho da Amarribo, o executivo Josmar Verillo acompanha atentamente os desdobramentos do processo de purificação administrativa começado em sua cidade natal. Ele estranha o fato de o juiz federal responsável pelo caso ser professor em uma faculdade particular, cujo diretor é o advogado de um dos principais acusados das fraudes. “Se estivesse no lugar dele, eu me declararia impedido de julgar o caso, já que, na faculdade, o defensor do réu seria meu superior hierárquico”, comenta Verillo. A preocupação do presidente da Amarribo coincide com um debate que vem se intensificando no Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde que o ministro Ari Pargendler se manifestou contra o exercício do magistério por juízes federais em instituições particulares. No caso do ministro do STJ, o desassossego é apenas com a possibilidade de o juiz dedicar muito tempo às aulas, em detrimento da magistratura.