O jornalista inglês Alex Bellos reúne em livro uma série de histórias saborosas sobre a relação entre o futebol brasileiroe a cultura popular

O jornalista inglês Alex Bellos, 32 anos, nunca foi apaixonado por futebol. Até 1998, quando desembarcou no Brasil para ser correspondente dos jornais The Guardian e The Observer, ignorava solenemente, por exemplo, a existência e os feitos do bicampeão mundial Garrincha. Por isso, ficou surpreso quando recebeu um convite da editora Bloomsbury, de seu país, para escrever um livro que mostrasse aspectos da cultura brasileira através do esporte inventado por seus conterrâneos, um ótimo produto para os mercados da Europa e dos Estados Unidos. Bellos aceitou e venceu o desafio. Futebol – the brazilian way of life é uma reportagem original sobre a importância do esporte no Brasil. Bellos é um daqueles ingleses típicos. Torce “com equilíbrio” para o pequeno Queens Par Rangers, de Londres. “Esse time era da primeira divisão, mas caiu muito. Às vezes, fica difícil explicar para um brasileiro que é possível gostar de futebol e torcer para um time pequeno ou mesmo não torcer para ninguém”, reclama. O livro, que será lançado no Brasil no segundo semestre deste ano, mostra que, muitas vezes, as surpresas brasileiras contaminaram o olhar blasé do autor. Nesta entrevista, Bellos enumera as melhores histórias
de seu livro.

ISTOÉ – Como surgiu a idéia de escrever o livro?
Bellos

Fui convidado em 1999. A Bloomsbury tinha acabado de lançar um livro relacionando o futebol total dos holandeses – aquele estilo de ocupação de todos os espaços – ao fato de grande parte do território da Holanda ficar abaixo do nível do mar. A conclusão era de que os holandeses tinham uma relação muito estranha com o espaço e isso se refletia dentro de campo. Essa discussão acadêmica estava fazendo muito sucesso na Inglaterra. Eles achavam que um livro que mostrasse parte do estilo de vida brasileiro a partir do futebol seria um sucesso ainda maior. No início, eu recusei. Não sou jornalista esportivo. Gostava de futebol, mas ignorava que o Uruguai tinha sido o campeão mundial de 1950, naquela disputa no Maracanã, e não sabia escalar o time inglês que disputou a Copa de 1966. E, na Inglaterra, as coisas são muito bem divididas nas redações. Eles me disseram: “Queremos exatamente um repórter que não entenda profundamente de futebol, para que ele mantenha a curiosidade básica e apure boas histórias.” Decidi fazer pensando em duas pessoas: uma ex-namorada que não entende nada de futebol e um amigo de Londres, que adora o esporte. A cada parágrafo, pensava: “Será que os dois se interessarão por isso? Se apenas um deles gostar, não vale.” Acho que os editores tinham razão. Acabei fazendo um livro sobre a cultura brasileira. Se fosse um sujeito muito bem informado sobre o assunto, correria o risco de ignorar coisas que as pessoas estão gostando.

ISTOÉ – Como você descobriu a história do Estádio Zerão, no Macapá?
Bellos

Na fase de pesquisas, comprei 200 exemplares de uma revista esportiva por R$ 50. Num deles, descobri uma pequena reportagem sobre o Zerão, que eu chamo de Big Zero no livro. Big Zero é muito estranho porque, se zero é o nada, como pode haver algo que seja o grande nada ou o aumentativo de coisa nenhuma? A marca divisória do campo do Zerão passa sobre a linha do Equador. Cada time joga em um hemisfério. Antes da construção do estádio, havia um campo de pelada com a mesma característica. As pessoas me contaram que muita gente costumava namorar sobre a linha central deste pequeno campo. As moças ficavam deitadas sobre a divisão dos hemisférios com uma perna para cada lado. Outra brincadeira comum entre os rapazes era urinar sobre a linha de meio campo. Ganhava a disputa quem mostrasse autonomia para fazer o maior risco de urina sobre o marco divisório. Logo depois da inauguração do Zerão, o ex-presidente Fernando Collor, políticos e alguns cartolas prometeram levar partidas importantes da Seleção Brasileira de grandes times do Sul para o estádio. Nada aconteceu. A única coisa que alterou a rotina do Zerão foi um problema com a cobertura da arquibancada. Ela simplesmente foi levada pelo vento. Outro fato curioso são os postes de refletores, que ficam
entre o público e o campo, atrapalhando a visão dos torcedores.
Isso é inacreditável.

ISTOÉ – Você deve ter encontrado personagens interessantes nessas comunidades, não?
Bellos

Fiquei espantado com a história de um ex-jogador profissional do Amapá chamado Valdez. Esse rapaz hoje é um líder comunitário de esquerda. Ele preferia jogar “no Norte”, isto é, defendendo o campo do Hemisfério Norte contra os adversários do Sul. Dessa forma, disse, fazia mais gols e jogava muito melhor. “O Hemisfério Norte é mais desenvolvido”, gritava ele. Observe que negócio espantoso: esse rapaz se diz de esquerda, é presidente de associação de moradores, mas vive elogiando os Estados Unidos e o rico Hemisfério Norte. No seu país, vive na região Norte, mas este Norte não presta porque é muito pobre. Ele tem um garoto que se chama Wallace e uma filha batizada de Jhennifer. Assim mesmo, com Jh, para ficar diferente de Jennifer, porque, segundo ele, “esse nome aí tem muito”. Veja só: um símbolo das tensões mundiais num campinho de futebol.

ISTOÉ – Você ficou espantado também com o número de times no Amapá…
Bellos

Isso me chamou muito a atenção. O Estado tem 440 mil habitantes e 12 times profissionais, um para cada 37 mil pessoas, a menor relação entre torcida e equipe do Brasil e certamente do mundo. Os que gostam de futebol e têm um pouco de dinheiro montam um time. Se fosse seguir a mesma média, o Reino Unido teria 1,5 mil clubes, o suficiente para 75 divisões com o número atual de times.

ISTOÉ – E o futelama?
Bellos

Descobri esse negócio às margens do rio Amazonas, no Macapá. O piso dos imensos campos, instalados na várzea do rio, misturam lama e um espelho de água. Os jogadores fazem de tudo para manter o equilíbrio. O jogo acaba quando a água do rio sobe até a altura das canelas ou dos joelhos, dependendo da disposição da equipe. O que me impressionou foi a organização do campeonato. São 21 equipes de futelama e dois, digamos, estádios, o Catamarã e o Surubim.
Esses nomes foram cuidadosamente escolhidos para rimarem
com Maracanã e Morumbi.

ISTOÉ – O que é o Peladão de Manaus?
Bellos

É uma disputa monstruosa que, desde 1973, envolve 522 times da região amazônica. Eles dizem que é a maior competição de futebol do mundo. Os times são representados por misses que fazem um desfile interminável. As duas competições são tão ligadas que, se um time está mal e a rainha cai no gosto do público como uma das favoritas, a equipe volta para o topo da tabela no campeonato. As rainhas desfilam de biquíni e camisa do clube amarrada sobre o busto. O nome do torneio vem desse desfile. Achei essa história maravilhosa, uma das coisas mais interessantes que vi na vida. Os torcedores têm orgulho da grande quantidade de times. Tive a sensação de que eles acham que tudo precisa ser grande como a Amazônia. Uma certa megalomania para rivalizar com a turma do Sul do Brasil.

ISTOÉ – Num trecho do livro, você diz: “Os brasileiros não amam Pelé como o Garrincha. O Pelé não simboliza a aspiração nacional. Ele representa a vitória e Garrincha, o jogar por prazer. E o Brasil não é um país de vencedores, mas um país que gosta de se divertir.” Isso não é um exagero?
Bellos

Cheguei a essa conclusão observando os amantes de futebol do Rio de Janeiro e do Nordeste. Não sei se posso dizer o mesmo sobre os paulistas. Simplesmente não tinha ouvido falar no Garrincha até vir para o Brasil. Mesmo alguns colegas especializados em futebol na Inglaterra, na mesma faixa de idade que a minha, não conheciam os feitos dele. Estudei muito esse assunto e posso dizer: Garrincha foi um gênio, talvez o mais habilidoso jogador da história do futebol, mas me parece um pouco romântico e exagerado dizer que ele foi melhor que Pelé. Os números não dizem isso. Acho que muitos torcedores acreditam nessa tese porque Garrincha, que morreu na miséria, praticamente conquistou sozinho a Copa de 1962. E Pelé jamais foi tão decisivo em uma única Copa. Na minha opinião, o Brasil é um país que gosta de se divertir na vida. O futebol talvez seja o único setor em que os brasileiros exigem o primeiro posto e consideram os vices os primeiros derrotados. Mesmo no futebol, há exemplos dessa vocação para o divertimento. O Brasil foi campeão mundial em 1994. Mas até hoje, nas rodas de conversa, a Seleção preferida é a de 1982, eliminada nas quartas-de-final. Estive em Pau Grande, distrito de Magé (RJ), onde Garrincha foi criado. Perguntei a uma de suas filhas se ela tinha lido o ótimo livro Estrela Solitária, do Ruy Castro, sobre a vida do craque. Ela respondeu: “Nunca vi esse negócio.”

ISTOÉ – Você entrevistou brasileiros em Toftir, uma vila de mil habitantes nas Ilhas Faroe, um arquipélago entre a Islândia e a Escócia. Esses jogadores fazem sucesso por lá?
Bellos

Fazem muito sucesso. Os times têm nomes curiosos como B68, B70 e B71. O frio é tanto que os torcedores que vão aos estádios ficam dentro dos carros para assistir aos jogos. Lá, conheci Marcelo Marcolino, um rapaz de uma favela carioca, e outros três brasileiros. No Brasil, esses rapazes nunca foram conhecidos. Nas Ilhas Faroe, eles são ídolos simplesmente pelo fato de serem brasileiros. O futebol daqui ainda tem muito prestígio no mundo. Há quase cinco mil jogadores brasileiros no Exterior, quatro vezes o número de diplomatas a serviço fora do País.

ISTOÉ – Você entrevistou alguns torcedores curiosos…
Bellos

O Zé do Rádio, de Recife, não vai ao campo para torcer. Seu único objetivo é se colocar atrás do banco de reservas do adversário para gritar no ouvido do técnico. Outra coisa maravilhosa no futebol brasileiro é a importância cultural dos nomes e apelidos. O Gilmar Rinaldi, que jogou no São Paulo e no Flamengo, me contou que recebeu esse nome porque seu pai era fã de Gilmar dos Santos Neves, titular da Seleção nas copas de 1958 e 1962. Na escola, os colegas de Rinaldi não o deixavam jogar na linha porque ele tinha nome de goleiro. E ele acabou campeão do mundo como goleiro profissional! Isso é inacreditável. O cinema teve Alain Delon, o futebol brasileiro tem Allann Delon. Para o mundo, Maradona e Pelé penduraram as chuteiras, mas os dois ainda jogam nas divisões inferiores brasileiras. Entre os trechos do livro mais destacados pelos jornalistas na Inglaterra e nos Estados Unidos estão as histórias de dois torcedores nordestinos que batizaram suas crianças com nomes inacreditáveis. Um deles, torcedor fanático do Flamengo, registrou os dois filhos como Zicomengo e Flamozer. A menina foi batizada de Flamena. O outro escolheu o nome Tospericagerja. São as iniciais de Tostão, Pelé, Rivelino, Carlos Alberto, Gerson e Jairzinho.

ISTOÉ – O que você acha das torcidas organizadas brasileiras?
Bellos

Há uma diferença fundamental entre as organizadas brasileiras e os hooligans ingleses. Ninguém na Inglaterra assume que é hooligan. Os caras são anônimos. Muitas vezes, a polícia se surpreende ao localizar o sujeito que barbarizou num estádio e descobrir que ele é um calmo chefe de família. Apesar de não serem pobres e carentes como os brasileiros, os hooligans também são os pobres coitados da Inglaterra. Muitos pesquisadores tentam descobrir o que leva os hooligans a serem tão violentos. Às vezes, me parece uma vontade estúpida de buscar fortes emoções regada a muito álcool. Uma caneca de cerveja européia tem quatro vezes mais álcool que um chope brasileiro. E os ingleses bebem muito. Então, os caras enchem a cara e partem para a violência. Agora, no Brasil, a coisa é espantosa. Os chefes de torcida organizada tem cartão de visitas, sede, assessor de imprensa. São entrevistados no rádio e na tevê. Expulsaram os torcedores das grandes partidas e viraram personalidades. As torcidas organizadas explodiram no Brasil a partir do final dos anos 60. Acho que isso tem alguma relação com a ditadura militar. De qualquer forma, penso que as torcidas seriam menos violentas se os dirigentes brasileiros não errassem tanto e não roubassem o clube dessa maneira.

ISTOÉ – O futebol brasileiro tem solução?
Bellos

Sim, mas a sociedade e a imprensa ainda estão muito conformadas com a situação. É preciso uma mobilização maior. Gostei das CPIs. É um bom começo.

ISTOÉ – Romário deveria ser convocado?
Bellos

Eu não o convocaria. Assisti a vários jogos do Vasco. Ele
não joga bem contra um time de peso há muito tempo. Achei boa
a lista do Felipão.

ISTOÉ – A Inglaterra vai ser campeã?
Bellos

Não, por vários motivos. E sobretudo porque os ingleses
acham que não.

ISTOÉ – E o Brasil?
Bellos

Pode ser. Apostaria na Itália, que terá um caminho teoricamente menos complicado.