O Fundo Monetário Internacional (FMI) está goleando a Argentina. O Senado enfim aprovou, quarta-feira 15, uma nova lei de falências que segue à risca o figurino da instituição. A nova norma restaura na legislação um conceito que permite, num processo de falência, aos credores ou a um terceiro ficar com os ativos da empresa devedora se não houver um acordo para refinanciamento de suas dívidas. O FMI condicionou a ajuda financeira a essa mudança, por entender que sem isso a segurança jurídica oferecida pelo país seria afetada. Na verdade, o FMI enterrou a norma que os argentinos mantinham desde fevereiro para evitar que as empresas locais endividadas caíssem nas mãos dos credores estrangeiros. Como os argentinos foram obedientes, o FMI prorrogou por um ano o vencimento de uma dívida de US$ 130 milhões que o país deveria pagar até a próxima semana. “Isto é muito importante para descomprimir a situação no front externo”, disse o chefe do gabinete do presidente Eduardo Duhalde, Alfredo Atanasof.

Aliviou e foi considerado um “sinal positivo” pelos mais otimistas, mas não passou disso. O próprio ministro da Economia, Roberto Lavagna, já admitiu que não haverá “dinheiro fresco” para o país, mesmo que o FMI retome a ajuda financeira suspensa em novembro do ano passado. “Os Estados Unidos não estão muito interessados no futuro da Argentina”, disse Lavagna. “Eles não querem nos enterrar, mas também não ajudam. A realidade é que não ligam muito para nós.” Ou seja, a possibilidade de o FMI conceder um empréstimo de US$ 25 bilhões, como sonhava o presidente Duhalde, está absolutamente descartada.

Autoritarismo – Paul O’Neill, o insaciável secretário do Tesouro americano, concedeu que a Argentina “parece estar avançando um pouco, ainda que de maneira errática”. O que ele não diz é que errática mesmo é a maneira como uma instituição criada para ajudar países em dificuldades elimina qualquer possibilidade de recuperação por meio de uma política que tem no autoritarismo seu fio condutor. “As políticas do FMI para a Argentina, centradas na exigência de redução cada vez maior do déficit fiscal, em troca de retomar a concessão de crédito ao país, têm piorado a crise econômica”, escreveu Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em artigo publicado no jornal The Washington Post.

Uma nova missão do FMI está em Buenos Aires, chefiada por David Hoelscher, enquanto o ministro da Economia embarca para Washington para se reunir com Horst Köhler, o chefão do FMI, e com a número dois, a dama-de-ferro Anne Krueger, e discutir as possibilidades de restabelecer os desembolsos suspensos em 2001. O presidente Eduardo Duhalde seguiu para um pequeno périplo na Europa, a começar pela Espanha, em busca de investimentos estrangeiros. E a população continua com a corda no pescoço. Até os ricos estão cortando alguns de seus luxos, como a tevê a cabo, para economizar. A crise que provocou um aumento de 53% em abril (em relação a abril de 2001) nos custos industriais chegou a um nível em que nem os mortos escapam de suas consequências. Na província de Chubut, no sul do país, o ministro da Saúde determinou aos diretores de hospitais que retirem marca-passos e próteses dos pacientes mortos, para que sejam recuperados e utilizados em outros pacientes. A medida, firmada oficialmente em 28 de abril, foi justificada com base na crise que atravessa a saúde pública na província. Os trabalhadores dos hospitais repudiaram a decisão, mas o ministro não voltou atrás. Ele acha que está fazendo um ótimo negócio, já que cada marca-passo custa 11 mil pesos.

Não é uma degradação restrita à província de Chubut. O ministro da Saúde, Ginés Gonzalez, avalia que o sistema de saúde do país está nas últimas e pode parar de funcionar se não sair o acordo com o FMI. Ele diz que o gasto total, público e privado, em saúde no país caiu de mais de US$ 600 por pessoa em 1999 para menos de US$ 200 neste ano. “Estamos numa situação crítica e toda a verba do ministério está sendo utilizada para comprar remédios de primeira necessidade”, disse ele à Agência Estado.

Inflação – A taxa de inflação do ano deve alcançar 50%, segundo o vice-ministro da Economia, Enrique Devoto, e o escambo tornou-se a “atividade econômica” mais frenética do país. Chegou à city de Buenos Aires. Em frente às casas de câmbio e bancos, centenas de pessoas trocam seus pertences por produtos de limpeza, artigos escolares, roupas, alimentos. A Red Global del Trueque, criada há sete anos por 20 pessoas para trocas de objetos que não queriam mais, tem hoje mais de cinco mil pontos (que eles chamam de club) espalhados pelo país (50% na Grande Buenos Aires). Centenas de membros da Red estão na calle San Martín, onde armaram 50 postos de mercadorias disponíveis à troca.

Eles querem demonstrar que podem viver sem os bancos, instituição que provoca ira na população. Com o dinheiro curto, os argentinos foram privados de comer carne cinco ou seis vezes por semana, como faziam cinco anos atrás. O consumo de carne no país era de 60 quilos per capita ao ano, mais que o dobro do consumo americano. Alguns restaurantes famosos fecharam suas portas, como o Harry Cipriani. A queda nesse tipo de negócio foi de 35%. A cervejaria Quilmes, da qual a brasileira AmBev acaba de comprar participação de 36% por US$ 366,4 milhões, teve prejuízo no primeiro trimestre e queda de receita de 49% devido
à redução do consumo em alguns países latino-americanos, particularmente a Argentina.

Nos próximos dias, a ministra do Trabalho, Graciela Camano, irá sugerir ao presidente alternativas de aumento de salários para compensar a alta de preços dos alimentos e de outros bens considerados básicos, segundo informações do jornal La Nación. O governo está preocupado com desordens sociais que possam ocorrer com uma situação em que mais de um quinto da força de trabalho está desempregada e 50% vive sob a linha de pobreza. Não dá para segurar. No início do século 20, a Argentina era mais rica que a França e tinha mais automóveis que o Japão. Agora, só tem uma riqueza: a seleção de futebol.