Uma delícia para o intelecto, uma promessa para o paladar. Assim pode ser descrito o banquete de livros envolvendo comida e história que está sendo servido ao público. A Editora do Senac São Paulo, que mantém hotéis-escola de gastronomia em Águas de São Pedro e Campos do Jordão, lançou de uma enfiada Os sabores da América – Cuba, Jamaica, Martinica e México (200 págs., R$ 35), de Rosa Belluzzo, Os sabores da Sicília (288 págs., R$ 35), de Maria Montanarini, e Sal: uma história do mundo (464 págs., R$ 60) de Mark Kurlansky. Enquanto no livro sobre o Caribe a história é lateral, surgindo das receitas apresentadas, no volume sobre a Itália essa visão se transforma em pessoal, referindo-se às origens da autora, que acrescentou o ensaio Sicília revisitada – cultura e gastronomia, da historiadora Marcia Camargos. E é na obra dedicada ao sal que a tendência se cristaliza.

De acordo com Ricardo Maranhão, professor de história da gastronomia e de sociologia da alimentação na Escola Superior de Gastronomia das Faculdades Anhembi-Morumbi, contar a evolução da civilização a partir de determinado elemento é uma tendência relativamente recente da historiografia. Na virada do século XX ensinava-se história geral, o que em dias de globalização e de bombardeio de informações se mostra superficial. Nos anos 1960, a moda eram os livros de microhistória, do tipo que cobria “determinado período, de determinado povo em determinado local, sob condições especiais”.

Maranhão concorda que o relançamento em 1995 da bíblia do gênero, A fisiologia do gosto (Companhia das Letras, 352 págs., R$ 39,50), de Gean-Anthelme Brillat-Savarin – criador do termo gastronomia, em 1825 –, serviu como alento em meio à uma bibliografia geralmente escrita por curiosos que não raro desembocavam na tese das descobertas por acaso. “Isso não existe em gastronomia, uma palavra que abarca tanto o cultivo como a preparação do alimento, ou seja, demanda tempo e reflexão”, esclarece Maranhão. No livro sobre o sal, de Kurlansky, autor de Bacalhau: a história do peixe que mudou o mundo, fica-se sabendo que o produto foi desde o início ritualizado pela religião ao ser utilizado no batismo. A razão é porque na prática ele impedia a putrefação da carne. Se isso ocorria, então é porque o sal era puro ou simbolizava a pureza no raciocínio dos sacerdotes.

Tais aspectos são abordados tanto em Comida – uma história (Record, 364 págs., R$ 52,90), do espanhol Felipe Fernández-Armesto, quanto em Seis mil anos de pão: a civilização humana através de seu principal alimento (Nova Alexandria, 592 págs., R$ 68), do alemão Heinrich Eduard Jacob. Ambos foram escritos com precisão e requinte acadêmicos, embora constituam uma leitura palatável, sem trocadilhos. O livro de Fernándes-Armesto, autor do catatau Milênio – uma história de nossos últimos mil anos, divide a história ligada à comida em oito revoluções – A invenção da arte de cozinhar; Sustento, produção, distribuição, ritual e magia; Criação de gado; Plantas; Comida como meio e indicador de diferença social; Comércio de longa distância; Ecologia, a relação civilizador-meio ambiente; e Industrialização.

Hélcio Nagamine

Segundo o professor Ricardo Maranhão, as descobertas da culinária não se deram por acaso

Citando o célebre jornalista irlandês Lord Northcliffe, o historiador espanhol lembra que os temas fundamentais e universais para a história são o crime, o amor, o dinheiro e a comida. Esta última seria a única imprescindível à vida, já que crimes são de interesse minoritário, e existem reprodução sem amor e economia sem dinheiro. Obedecendo a esse preceito, o elegante tratado sobre o pão – a edição presente mereceu até capa dura – publicado pela primeira vez em 1944, nos Estados Unidos, se revela erudito e bem escrito. Maranhão louva a forma como Jacob trata a culinária e a agricultura e a maneira como agrega lendas e mitos. Faz ainda curiosas relações entre fatos históricos, citando passagens pitorescas, como a humilhação pública a que padeiros desonestos eram submetidos na Idade Média.

Jacob só comete um pecadilho. Por algum insondável motivo, o historiador alemão se esqueceu da mandioca, tão vital para a culinária das Américas. Mas o Brasil
não foi de todo esquecido na nova historiografia. Acaba de ser relançada
A história da alimentação no Brasil
(Global, 1.320 págs., R$ 98), de Luís da
Câmara Cascudo, um intelectual pertencente à geração que tomou a si a tarefa de repensar o País, à qual pertenceram Josué de Castro, Gilberto Freyre e Anísio Teixeira. “Para começo de conversa”, afirma Maranhão, “o livro guarda o mérito de, durante anos, ter sido… o único”.

Bom apetite!