Alex Wong/ Courtesy of meet the press/reuters

Livro-bomba: o jornalista do caso Watergate, Bob Woodward (acima), revela os embates entre Bush e seu secretário de Estado, Colin Powell

A crença irredutível em fantasias – nos fatos sem base na realidade. O messianismo daqueles que se julgam condutores especiais das vontades divinas. Estas são algumas das características do fundamentalismo. E, pelo que se vê no livro Plan of attack (Plano de ataque – Ed. Simon & Schuster), do jornalista americano Bob Woodward, lançado na terça-feira 20, os fundamentalistas tomaram o poder nos Estados Unidos. A obra reconta com precisão invejável os meses que antecederam a declaração de guerra ao Iraque, no ano passado, além dos motivos e ações do presidente George W. Bush, dos membros de seu Ministério e de alguns aliados da coalizão de países que derrubou o ditador Saddam Hussein. Woodward, 61 anos, é diretor-assistente do diário The Washington Post e considerado um dos melhores repórteres do país, desde que, 30 anos atrás, investigou – junto com o colega Carl Bernstein – o caso Watergate, que levou à renúncia do então presidente Richard Nixon. Em seu novo best-seller, ele volta à carga com um trabalho de fôlego que contou com acesso inédito a 75 pessoas-chave do governo e farta documentação colocada à sua disposição. O resultado é um painel do modus operandi do atual Poder Executivo dos Estados Unidos, suas intrigas palacianas e a paranóia coletiva com relação ao Iraque.

Peguem-se as fantasias e fatos desvinculados da realidade como ponto de partida. A CIA nunca havia afirmado de modo categórico que o Iraque possuía estoques de armas de destruição em massa. O máximo que os analistas da central de espionagem americana conseguiram foi levantar suspeitas sobre esse provável arsenal. Bush queria um relatório com provas irrefutáveis para poder apresentar à opinião pública. No dia 21 de dezembro de 2002, o diretor da CIA, George Tenet, acompanhou seu subdiretor John McLaughlin ao Salão Oval, para expor o “caso das armas” ao presidente e às autoridades do alto escalão. Estavam presentes, além da conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, e o vice-presidente Dick Cheney, o chefe da Casa Civil, Andrew Card Jr. Woodward relata que McLaughlin fez uma apresentação “com fanfarras”, gráficos e fotos. Quando terminou, o presidente disparou: “Mas o que é isso?”, e, depois de um momento de silêncio pesado, completou: “Boa tentativa. Mas não acho que isso seja suficiente – não é algo que o zé-povinho possa entender ou confiar muito.” A exposição havia sido um fracasso.

Shawn Thew/EFE

Rumsfeld apresentou à realeza saudita o plano de guerra. Bush fez acordo para não subir o preço do petróleo antes das eleições americanas

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O presidente Bush virou-se para o diretor Tenet e disse: “Falaram-me de todas essas informações de inteligência, sobre armas de destruição em massa, e isso é o que de melhor podemos apresentar?” Woodward diz que Tenet se levantou do sofá onde estava, jogou as mãos para cima e, como é grande fã de basquete, usou uma gíria do esporte para assegurar ao presidente: “It’s a slam-dunk!” (traduzindo: é uma cesta enterrada – o que significa que a coisa é certeira). Bush ainda perguntou: “George, o quanto você está seguro disso?” (referindo-se às armas de destruição em massa). E o diretor da CIA repetiu: “It’s a slam-dunk.” “Não se preocupe.” Isso tudo num momento em que o Congresso dos Estados Unidos já havia dado a autorização para a guerra – na crença da ameaça do suposto arsenal de Saddam. O tempo iria provar que a “cesta” de Tenet não tinha sido enterrada, e nunca seria. As informações da CIA sobre as armas químicas, biológicas e nucleares estavam erradas.

Como já havia sido relatado nos livros do ex-secretário do Tesouro Paul O’Neil – The price of loyalty – e por Richard Clark, ex-chefe de contraterrorismo da Casa Branca – Against all enemies –, antes mesmo dos ataques terroristas de 11 de setembro, o presidente George W. Bush já considerava a derrubada de Saddam Hussein uma prioridade de seu governo. Setenta e dois dias depois dos atentados, o presidente pediu a seu secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, que preparasse planos de invasão do Iraque. O vice-presidente Dick Cheney, na opinião do secretário de Estado, Colin Powell, “parecia acometido de uma febre” com relação ao Iraque. Mais moderado, Powell não reconhecia seu velho companheiro da primeira guerra contra Saddam, conduzida por Bush-pai. A obsessão do vice-presidente acabou por tomar conta da política do governo atual e, como o secretário de Estado era muito cauteloso quanto a uma nova invasão, foi colocado de escanteio: longe do núcleo de decisões do poder.

O presidente comunicou a Powell sua decisão irrevogável de ir à guerra, numa reunião a dois que durou escassos 12 minutos, em 13 de janeiro de 2003. Nesse encontro, o secretário de Estado falou sobre sua ressalva quanto à guerra. “O senhor tem certeza do que vai fazer?”, perguntou. “O senhor sabe que vai acabar proprietário deste país?” Em agosto do ano anterior, Powell havia dito ao presidente que a idéia de uma invasão do Iraque seria equivalente a assumir as esperanças, aspirações e problemas do lugar. Lembrara uma velha máxima de lojas de decoração: “Você quebrou, você é o dono” – o tal “quebrou, pagou”. Mas no início de 2003 Bush já tinha a guerra como certa e só queria testar a lealdade de seu secretário de Estado. O ex-general Powell, velho soldado, seguindo os princípios militares de lealdade máxima ao chefe, sucumbiu e disse que estava com o presidente para o que desse e viesse. Bush então conclamou: “Está na hora de você vestir a farda.” Powell, considerado pomba da paz, teria de virar falcão de guerra na marra.

Bob Woodward conta que o embaixador da Arábia Saudita em Washington, o príncipe Bandar Bin Sultan, foi avisado dos planos da invasão dois meses antes de Colin Powell. Numa reunião com o secretário de Defesa Rumsfeld, o vice-presidente Dick Cheney e o general Richard Myers, chefe do Estado-Maior, o saudita viu o mapa com detalhes precisos dos planos de ataque americano. Nem mesmo outras altas figuras do governo tinham acesso àquele esquema estratégico. Bandar foi autorizado a copiar as informações, para repassar ao líder de seu país, o príncipe Abdula al-Saud. O embaixador ainda perguntou se desta vez – ao contrário do que ocorrera em 1991 – os americanos iriam garantir a queda de Saddam Hussein. A esta dúvida o vice-presidente Cheney respondeu: “Príncipe Bandar, uma vez que nós começarmos tudo, Saddam será torrado.” E o secretário Rumsfeld também teria dito: “Você pode depositar no banco (esta informação)” – numa expressão de garantia de que a guerra iria mesmo ocorrer.

Além da garantida queda de Saddam, o jornalista Bob Woodward afirma que teria sido acertado entre Bush e o príncipe Abdula al-Saud que os preços do barril de petróleo “permaneçam entre US$ 22 e US$ 28”, para não prejudicar a economia americana às vésperas da tentativa de reeleição do republicano. O candidato democrata John Kerry afirmou ser “inaceitável” atrelar o preço do petróleo às eleições presidenciais americanas. “Se é verdade que os suprimentos de gás e os preços nos EUA estão atrelados às eleições por um acordo secreto da Casa Branca, isso é inaceitável ao povo americano.” O assessor do príncipe saudita negou o acerto. “Nós não usamos petróleo com objetivos políticos. É um produto muito importante, e seu impacto na economia global é enorme”, afirmou Adel al-Jubeir.

Bob Woodward, em resposta a ISTOÉ via internet, disse que não sentiu nenhum messianismo religioso nas conversas com o presidente. “O presidente falou em religião apenas duas vezes durante nossas entrevistas. Na primeira vez, ele mencionou que sentia e pedia forças para o ‘Pai Superior’. E contou que, no dia em que deu a ordem para a guerra, rezou pedindo para ser um bom mensageiro da vontade divina. Acho que isso não é exagero de fervor messiânico, mas o normal da religião cristã”, disse o repórter-autor. Pode ser, mas o fato de George W. Bush se considerar um mensageiro de Deus o coloca par a par com os aiatolás islâmicos que ele combate. Osama Bin Laden também declarou guerra em nome de Deus.


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