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Nova surpresa: a morte natural de Argaña (acima) foi usada para simular um atentado e comprometer inimigos do atual presidente Nicanor

Ao assumir a Presidência da República do Paraguai, em 15 de agosto de 2003, o advogado Nicanor Duarte Frutos imaginou que seus principais problemas estivessem ligados a uma crise econômica sem precedentes na história do país. Ele jamais cogitou da possibilidade de que uma terrível conspiração do passado pudesse vir a assombrar seu governo. Menos de um ano depois da posse, Nicanor é o mais graduado acusado de ter participado de uma armação criminosa, ocorrida na madrugada de 23 de março de 1999. Naquela manhã, o Paraguai foi surpreendido com a notícia de que o então vice-presidente Luis María Argaña havia sido assassinado, vítima de uma emboscada em uma movimentada rua de Assunção, quando se dirigia ao seu gabinete. A história que chocou o país e tumultuou o cenário político paraguaio, na verdade, não passou de uma grotesca farsa. Como revelou ISTOÉ em agosto do ano passado, Argaña já estava morto quando seu carro foi atacado por pistoleiros, num atentado simulado com o objetivo de atingir seus inimigos. As autoridades políticas e judiciárias do Paraguai insistem em fazer valer a tese do atentado, embora a farsa já esteja cientificamente desmascarada. O que restava de misterioso era saber como Argaña morrera, quem o matara e quais foram os responsáveis pela encenação macabra de março de 1999. Nessas respostas é que surge o nome do presidente paraguaio. Elas são bombásticas e foram reveladas por Luis Recasens Molinas, ex-secretário particular de Argaña.

Alan Rodrigues

A reportagem de ISTOÉ de agosto de 2003, que desmascara o atentado, e o prédio onde o vice-presidente morreu: um furo internacional

“O doutor Argaña sofreu um mal súbito quando estava no apartamento de uma amante. Para esconder isso e ao mesmo tempo atingir adversários políticos, a família e alguns aliados tramaram o atentado. Entre essas pessoas estava o presidente Nicanor Duarte Frutos”, disse Molinas a ISTOÉ na última semana. Antes de ser localizado pela reportagem, o ex-secretário de Argaña fez uma declaração no Registro de Contratos Públicos nº 425 à escrivã Carmen A. Rodríguez de Arias, na sexta-feira 2, na qual narrou toda a história com incrível riqueza de detalhes. O documento, composto por sete páginas, está registrado no livro número 116, nas folhas 45 e seguintes. No Paraguai, assim como no Brasil, qualquer pessoa pode ir a um cartório e declarar o que bem entender. O depoimento de Molinas, no entanto, está longe de parecer uma armação. Aos 33 anos, separado da mulher com quem tem uma filha de cinco anos, ele conheceu a família Argaña em 1982, quando estudava no Colégio Santa Marta, próximo à casa onde viviam o líder político, sua mulher, Marylin, e seus nove filhos. Sete anos depois, Molinas passou a trabalhar para a família. Inicialmente, fazia apenas os serviços bancários, mas logo ganhou a confiança do chefe e virou seu secretário particular. “O doutor Argaña fazia questão de tratar bem seus funcionários. Na época, o salário mínimo era de 300 mil guaranis, e eu, iniciante, comecei recebendo 350 mil”, conta.

Alan Rodrigues

“O doutor Argaña sofreu um mal súbito quando estava no apartamento de uma amante” Luis Recasens Molinas, ex-secretário particular de Argaña

No depoimento prestado em cartório, Molinas afirma que às 0h30 de 23 de março de 1999 recebeu uma chamada em seu telefone celular. Walter Dominguez, companheiro de trabalho e que fazia as vezes de segurança do vice-presidente, pedia-lhe para que o acompanhasse até o apartamento de Fabiana Casadio – uma das namoradas de Argaña –, pois o chefe teria sofrido um mal súbito. Ele conta que chegou ao apartamento por volta de 1h e encontrou Fabiana em estado de choque e o patrão estendido numa cama, vestido apenas com uma cueca branca, sem sinais vitais. Molinas e Dominguez vestiram Argaña e transportaram o corpo, usando uma cadeira, até o primeiro subsolo do edifício, onde estava uma caminhonete Nissan Patrol azul, de propriedade da Itaipu binacional. Neste carro, Molinas e Dominguez levaram o cadáver até a casa dos Argaña.

“Fabiana também era casada e nos pediu que nada disséssemos sobre sua relação com Argaña. Ela temia que seu relacionamento extraconjugal se tornasse público”, lembra o ex-secretário. O apartamento usado para os encontros amorosos do casal fica no nono andar do Edifício Liberty, localizado na calle Perú 750, no bairro Ciudad Nueva, em Assunção. Atualmente, está desocupado e à venda, sob a responsabilidade de Carlos González. “Ninguém nos viu tirar o corpo de Argaña e a cadeira que usamos para transportá-lo foi deixada na garagem”, lembra Molinas. Na última semana, ISTOÉ constatou que, de fato, durante a madrugada nenhum funcionário permanece de plantão na portaria do prédio e a garagem do apartamento do nono andar está localizada no primeiro subsolo.

Fotos: Jornal ABC Color

Armação – Bower, Nelson Argaña e Planás estariam na farsa: recompensa política

Molinas conta que, logo depois da chegada do corpo, a casa de Argaña se transformou em palco de uma tensa reunião entre políticos argañistas e familiares do vice-presidente. Segundo ele, os primeiros a chegar foram os parentes, liderados pelo filho Nelson Argaña. Depois, já com o dia clareando, vieram o senador Juan Carlos Galaverna, José Alberto Planás e Walter Bower, entre outros. Em seguida, chegaram Nicanor Duarte Frutos – à época um dos principais dirigentes do Partido Colorado – e o médico da família, José Bellassai, que viria a ser o responsável pela autópsia no corpo do vice-presidente e atestara que Argaña fora vítima dos tiros disparados no falso atentado. “Por volta das 7h, Galaverna, Bower, Planás e Nelson, em tom agressivo, solicitaram a mim e a Dominguez que entrássemos no escritório do doutor Argaña e entregássemos nossas armas”, diz o ex-secretário.

Tiros no cadáver – Os dois permaneceram trancados e, depois de aproximadamente 40 minutos, escutaram dois tiros, que teriam sido disparados no quarto onde estava o corpo do vice-presidente. Minutos depois, Nelson Argaña entrou no escritório com um saco preto levando uma míni Uzi, duas granadas e duas pistolas calibre 9 milímetros. “Ele nos mandou que acompanhássemos o capitão Hernán Ramírez até uma praça na esquina das ruas Venezuela e Sargento Gauto, bem próximo de onde se daria o atentado”, afirma Molinas. O ex-secretário lembra que, quando saiu do escritório, ele e Domingez puderam ver Planás descendo a escada com uma arma na mão.

Antes de deixarem a casa, Molinas e Dominguez foram instruídos por Nelson Argaña a deixar a Nissan Patrol azul na garagem. Deveriam usar outro carro e, na praça, impedir a passagem de uma Nissan Patrol bordô, que estaria transportando o corpo de Argaña. “Chegamos na praça por volta das 7h45. O capitão Ramírez nos deixou na rua para que cumpríssemos a ordem. Cerca de uma hora depois, porém, vimos que a Nissan Patrol com o corpo de Argaña fora interceptada por um Fiat Tempra antes que chegasse onde estávamos. Ouvimos vários tiros. Nesse momento, Dominguez correu pela rua, passou por mim, disse que fora um prazer me conhecer e fugiu. Com a arma na mão, corri para minha casa e, assustado, me escondi no banheiro, ficando trancado até a noite, quando contei tudo o que aconteceu para um amigo e vizinho chamado Rafael Eduardo Aviles Lambie”, recorda-se.

O amigo leal – Na última semana, ISTOÉ localizou em Assunção o amigo de Molinas, que confirmou a história. “É verdade. O Lolo (apelido de Molinas) me contou tudo isso na noite em que houve o atentado”, disse Lambie na terça-feira 20. “Mantive o segredo até agora porque ele poderia estar correndo risco de morte”, afirmou. Lambie tem 56 anos, é casado e pai de dois filhos. Estudou agronomia no Chile e atualmente trabalha com leilão de gado. Ele conheceu Molinas em 1981, na época em que mantinha uma empresa na mesma rua em que morava o garoto que viria a ser secretário particular do vice-presidente. “O Lolo tinha muita intimidade com a família Argaña e não costumava contar os detalhes da vida de seu patrão. No dia do atentado, ele estava tenso, disse que tudo era ficção, mas não falou sobre a amante. Isso eu só soube há cerca de 15 dias”, relata Lambie.

Depois do falso atentado e da crise política que se seguiu, todos os articuladores da farsa se deram bem (leia quadro à pág. 89). Molinas, por sua vez, teve outro destino. Inicialmente, continuou trabalhando com a família, desta vez para Luis Sola, genro de Argaña, recebendo através da Itaipu binacional. Em 2001, inesperadamente, Molinas foi acusado pelo chefe e por sua mulher, Maria Teresa Argaña – a quem conhecera desde criança –, de ter roubado documentos e jóias da residência do casal. “Só não estou na cadeia porque no dia em que eles disseram que roubei eu estava no Brasil. Tenho os recibos de pedágio e de hospedagem que comprovam o que digo”, afirma. Segundo o ex-secretário, Nelson Argaña o ameaçou dizendo-lhe que nunca mais encontraria trabalho. De fato, de lá para cá ele vinha sobrevivendo aos trancos e barrancos, com bicos de mecânica. No entanto, permanecia calado. Molinas só quebrou o silêncio para garantir a própria vida. “Temo ter o mesmo destino de Gumercindo Aguilar”, referindo-se ao homem que prestou falso testemunho e foi assassinado no ano passado antes de dar com a língua nos dentes.

Alan Rodrigues

“Mantive o segredo porque ele (Molinas) poderia estar correndo risco de morte” Rafael Lambie, empresário que ouviu o relato da farsa

Ex-alcaguete da polícia, Aguilar declarou em 27 de março de 1999 que tinha participado do planejamento do atentado na cidade de Pedro Juan Caballero, na casa de um tal Bonifácio Nara. Segundo ele, teriam participado desse encontro o general Lino César Oviedo, Conrado Pappalardo e o então governador Víctor Hugo Paniagua. Com base nesse testemunho, os argañistas então no governo – principalmente Nelson Argaña e Walter Bower – dirigiram as investigações, até que a farsa viesse à tona. Em 22 de setembro de 2003, Aguilar foi misteriosamente assassinado e seu corpo mutilado. No dia 29 de março último, a viúva de Aguilar, Ladislaa Leiva de Aguilar, declarou ao jornal ABC Color, o principal do Paraguai, que políticos argañistas, como Nelson Argaña, Juan Carlos Galaverna, o ex-presidente Luiz González Macchi e o ex-advogado de Argaña e atual procurador-geral da República, Oscar Germán Latorre, foram os responsáveis pela contratação e posterior assassinato do marido. Com cinco filhos (Santiago, 13, María Juliana, 10, Ricardo, 8, Jamila, 3, e Alfredo, 1), Ladislaa contou a ISTOÉ que os argañistas prometeram US$ 5 mil ao marido, além da troca de identidade e remoção do país. “Mas eles só enviavam 400 mil ou 500 mil guaranis (cerca de R$ 200 a R$ 250) por mês”, disse. Dois dias depois da entrevista, ao se sentir ameaçada por carros luxuosos que cercavam sua casa, Ladislaa pediu “asilo” ao ABC Color. Desde então, ela e os filhos dormem nos fundos da redação, à espera de que alguma entidade humanitária os acolha. “Apesar de tudo, espero que as coisas mudem no Paraguai e que as pessoas venham a conhecer toda a verdade”, diz. As denúncias da viúva fizeram os políticos paraguaios entrar em estado de ebulição. Até agora, porém, elas não foram suficientes para que a Justiça do Paraguai reabrisse as investigações sobre a morte de Argaña. Com certeza, as revelações do ex-secretário são bem mais explosivas e podem ser facilmente checadas. Resta saber se o governo de Nicanor Duarte Frutos terá vontade política para tanto.