Amaury Ribeiro Jr. e André Dusek

Massacre: Grupo de Cinta Larga, num ritual indígena, matou 26 garimpeiros a golpes de borduna e flechadas. Eles invadiram suas terras em Rondônia para explorar as minas mais valiosas do País

O governador de Rondônia, Ivo Cassol (PSDB), mantém disparada sua metralhadora giratória desde que foi anunciado, no fim da semana passada, o massacre de pelo menos 29 garimpeiros pelos índios Cinta Larga na reserva Roosevelt, que faz divisa com os Estados de Rondônia e de Mato Grosso. Cassol responsabiliza, tanto pelo massacre quanto pelo contrabando de diamantes, o chefe da Fundação Nacional do Índio (Funai) na reserva, Walter Blós, além de outros servidores públicos. O governador, que acaba de solicitar a intervenção federal na reserva, é também autor do requerimento que resultou na megaoperação Mamoré. Desde terça-feira 20, 480 soldados do Exército, da Força Aérea Brasileira (FAB); funcionários do Ibama, da Funai e da Polícia Federal foram mobilizados para o combate ao contrabando de pedras e ao crime organizado em Rondônia.

As denúncias de Cassol não deixam de ter fundamento. Em dezembro de 2002, ISTOÉ denunciou o envolvimento de policiais federais e servidores com quadrilhas de criminosos que atuam no garimpo. Na ocasião, policiais e funcionários foram presos, entre eles José Nazareno de Mares, o então chefe da Funai na região. O governador, no entanto, se esquece que as investigações da Polícia Federal sobre a rede de corrupção no garimpo atingem em cheio o seu próprio governo. Segundo documentos obtidos por ISTOÉ, a chefe de gabinete de Cassol, que acumula o cargo de presidente da Companhia de Mineração de Rondônia (CMR), Leandra Fátima Vivan, nomeou com amplos poderes, no dia 25 de setembro de 2003, José Roberto Gonzalez como seu representante comercial no Brasil e no Exterior. Gonzales foi apontado pela PF como um dos principais contrabandistas de diamantes da reserva. Em depoimento prestado no dia 21 de outubro do ano passado, ele confirmou que trabalhava para um peixe ainda mais graúdo: o megacontrabandista internacional de pedras preciosas Marcus Glikas, preso na rodoviária de Cacoal – município próximo à reserva –, no dia 8 de março deste ano, após fechar um acordo para compra de gemas com os índios. Investigado nos EUA por crime de lavagem de dinheiro, Glikas chegou a recrutar os agentes da PF Marco Aurélio Soares e José Cadete Silva e policiais militares da região, que acabaram presos. A PF prendeu no fim do ano passado uma rede de laranjas do contrabandista com R$ 3 milhões em pedras preciosas no Aeroporto de Várgea Grande, região metropolitana de Cuiabá. As pedras foram retiradas da reserva Roosevelt.

“Fui contratado por Glikas para tentar um acordo com o governo do Estado para operar legalmente na reserva”, disse José Roberto Gonzales ao ser localizado na quarta-feira 21, em Belo Horizonte. Um mês depois de ser nomeado procurador da CMR pelo governo do Estado, Gonzales foi desmascarado pelos guerreiros Cinta Larga ao fazer um proposta indecorosa aos caciques. Embora a autorização da extração mineral em terra indígena ainda dependa do Congresso, Gonzales tentava convencer os índios a selar um acordo com à CMR, que permitiria à estatal explorar, com exclusividade, o garimpo de diamantes. Com Gonzales, os índios encontraram o crachá de funcionário público e uma pasta com vários documentos, que se tornaram uma das principais peças do processo contra ele. São vários contratos de vendas de pedra preciosas entre Gonzales e a empresa Willian Godeberg Co, sediada em Nova York, em valores que ultrapassam US$ 10 milhões. De acordo com a papelada, a J.R Diamex, empresa de Gonzales com sede em seu apartamento em Belo Horizonte, realizava negócios com a empresa Pastor Import International, com sede em Cingapura. Os papéis mostram ainda que Gonzales, que responde inquérito em liberdade, movimentava suas transações através da conta nº 02100021, no Chase Manhatan Bank. “Esses negócios foram feitos nos EUA e nada têm a ver com as pedras dos índios. Fui detido por eles quando tentava fechar um acordo com a estatal, o que acabaria com os conflitos”, afirmou Gonzales a ISTOÉ. Essa argumentação não convenceu a PF, que deverá indiciá-lo como um dos maiores compradores de diamantes das terras indígenas.

André Dusek

De crachá: Gonzales (acima), que responde na PF por contrabando e lavagem de dinheiro, foi contratado para ser procurador da estatal CMR e negociar gemas com os índios

Crime anunciado – O episódio com a CMR, uma estatal falida que pretende reerguer-se com a riqueza das terras indígenas, faz parte de uma rede de corrupção que se instalou na reserva Roosevelt, com uma área de 2,6 milhões de hectares e é considerada uma das maiores minas de diamante do mundo. Palco de conflitos que nos últimos cinco anos resultaram nas mortes – reconhecidas oficialmente – de pelo menos 60 garimpeiros, a reserva foi presenteada com um estudo sobre a qualidade do kimberlito (rocha onde são encontrados diamantes) da região. De acordo com estudo da Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais, o kimberlito da reserva é o único do País que pode gerar uma mina industrial de diamante de gema, com capacidade para produzir no mínimo um milhão de quilates de pedras preciosas por ano, uma receita anual de US$ 200 milhões.

Em dezembro de 2002, ISTOÉ publicou documentos e fotos que comprovam que grupos criminosos contrabandeavam US$ 20 milhões de diamantes por mês da Roosevelt. Em janeiro, um mês após a reportagem, o garimpo foi fechado. Mas em agosto, conforme fontes da Agência Brasileira de Informação (Abin) e da PF, pressionado pelos caciques, uma força-tarefa da Funai, chefiada por Blós, acabou consentindo uma nova política de extração dentro da reserva. Com isso, os guerreiros indígenas passaram a expulsar da aldeia todos os garimpeiros “rodados” – aqueles que entram sem autorização na reserva para garimpar de forma artesanal. Após serem detidos, os garimpeiros eram entregues aos policiais federais que ficavam num posto próximo à reserva.

O garimpo passou a ser tocado pelo próprios índios, que contrataram trabalhadores para ajudá-los. Aconselhados por servidores da Funai e do Ministério da Justiça, os caciques, que antes desfilavam com carros importados, passaram a viver reclusos dentro da reserva. Essa política acabou atraindo grupos criminosos para dentro da área. Eles desciam em aviões para comprar as pedras diretamente dos índios. A atividade criminosa foi facilitada com o desmantelamento, pelo procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, de uma força- tarefa, composta por vários procuradores. Ela fazia incursões na reserva para combater o contrabando e evitar confrontos dos índios com os garimpeiros.

“Percebemos que ali havia um foco de corrupção generalizada. Por isso, lamentamos muito quando a equipe foi desmantelada”, disse o procurador da República Guilherme Shelb, que integrava a força-tarefa. Temendo ser envolvida no esquema montado com o aval da Funai, a PF, 40 dias antes do massacre, resolveu também debandar por conta própria do posto policial.

Armas, nova mina e massacre – Ao seguir os passos de Glikas, a PF ficou impressionada com a facilidade com que os contrabandistas entravam na área indígena. A PF concluiu que somente este ano Glikas havia pousado três vezes na reserva. Em uma das ocasiões, os agentes federais por pouco não o prenderam. A PF descobriu um fato ainda mais aterrorizador: os índios receberam como parte do pagamento pela venda das pedras várias armas automáticas, também contrabandeadas. Enquanto os índios se envolviam em negociações com os contrabandistas, um grupo de garimpeiros liderados por Antônio José Soares, o Piauí, após mais de seis horas de caminhada, conseguiu descobrir, no início do ano, uma nova grota com diamantes. Por estar escondida da vigilância dos guerreiros e dos caciques Cinta Larga, os garimpeiros apelidaram o local de Grota do Sossego.

Piauí revelou que em menos de 15 dias, 200 garimpeiros se deslocaram para lá. Conhecido como um dos homens mais valentes da região, Francisco da Silva Alves Chagas, o Baiano Doido, ganhou fama ao afirmar que não tinha medo dos índios. “Ele era um cara valente e dizia que estava disposto a enfrentar os índios”, contou. A resposta veio às 11h15 do dia 11 de março. Presos numa grota por um grupo de 100 guerreiros, Zoró, Gavião e Baiano Doido foram torturados e mortos junto com dois ajudantes num ritual indígena. Os índios estavam com o rosto pintado de preto e com uma faixa branca no peito. Também detidos, 26 outros garimpeiros acabaram sendo executados. Ao chegar ao local do massacre, a PF encontrou 23 corpos colocados lado a lado, que aparentemente teriam recebido golpes de borduna. Dez metros à frente, tombaram outros dois garimpeiros a golpes de bordunas e flechadas. Cerca de 60 metros adiante, foi encontrado, com vários tiros, o corpo de outro homem que teria sido alvejado ao tentar fugir.

André Dusek / Reprodução

Corrupção: Nazareno, da Funai, observa o cacique Piu (ao telefone). Ele foi preso pela PF por negociar com criminosos como Glikas (destaque)

Com base no que dizem os sobreviventes do massacre, acredita-se que há pelo menos 100 outros mortos. Não há, no entanto, o que comprove essas suspeitas. Eles acusam a Funai de ter comandado a chacina. “Os índios chegaram atirando. Tive sorte de conseguir fugir pela mata, mas deu para ver gente com uniforme da Funai entre os índios, afirma Raimundo de Jesus Diniz. Os garimpeiros acusam também Blós de intermediar a venda de pedras dos índios para um comprador de Minas Gerais, Gilmar Campos, que foi denunciado por ISTOÉ. Sob proteção da PF, Blós se defendeu das acusações. “Os garimpeiros me odeiam porque foram expulsos da reserva, por isso estão me denunciando”, afirmou.

Fontes ligadas aos índios apresentaram outra versão para o assassinato. Revoltados com os caciques que não estariam repassando os recursos para a reserva, os guerreiros, também aborrecidos com as bravatas de Baiano Doido, teriam resolvido matar os garimpeiros para moralizar os índios. O fato é que sem a regulamentação da extração de gemas em reservas indígenas, Roosevelt, como inúmeras outras áreas, é terra de ninguém.