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Na cidade de Lviv, na Ucrânia, considerada o enclave mais patriótico do país, existe uma praça chamada Vasyl Vyshyvanyi. O lugar, no entanto, não exibe qualquer estátua que retrate esse cidadão. Reserva espaço apenas a balanços destinados à diversão das crianças. Os jovens ucranianos talvez não saibam, mas esse Vyshyvanyi foi um herói nacional: durante quatro décadas lutou na surdina pela libertação de seu povo do jugo polonês e soviético e, em plena era das revoluções, queria implantar a monarquia nessa nação do Leste Europeu. Embora tenha adotado esse nome eslavo, Vyshyvanyi era um Habsburgo, ou seja, um aristocrata descendente da Casa da Áustria, uma das dinastias mais poderosas e influentes da Europa no período entre os séculos XII e XX, que esteve à frente de dois impérios, o Sacro Império Romano Germânico e o Império Austro-Húngaro. Ele chamava-se na verdade Wilhelm Habsburgo e era um arquiduque, ou seja, um príncipe na hierarquia austríaca. Morreu em 1948, aos 53 anos, pobre e tuberculoso numa prisão de Kiev. A sua acidentada trajetória, da vida de privilégios às privações da guerra, quando se tornou um espião a serviço das potências aliadas, está sendo resgatada em uma biografia fascinante, “O Príncipe Vermelho” (Record), do historiador da Universidade de Yale Timothy Snyder, cuja especialidade são as confusas transformações sociais da chamada Europa Oriental.

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REBELDE
Habsburgo tinha uma tatuagem e usava
roupas bordadas sob o uniforme militar

O temperamento de Habsburgo lembra o de outro nobre cuja atuação política sempre foi usada para ilustrar a decadência da aristocracia no final do século XIX: Ludwig II da Baviera, conhecido como “o rei louco”. A diferença é que Ludwig foi “expropriado” de um reino perdulário tido como um obstáculo à unificação da Alemanha. Habsburgo, ao contrário, queria ser o monarca de um trono inexistente e tentava justamente restaurar a antiga ordem numa época em que a própria ideia de famílias imperiais já não fazia mais sentido. Rebelde como o monarca alemão, Habsburgo já dava ares de independência quando, na juventude, mandou fazer uma tatuagem de âncora no braço, um adereço não muito comum em sua classe. Esse ímpeto o levou a assinar, na sequência, uma espécie de “carta de infortúnios”. A mando do patriarca Stefan, sua família (que no limiar do século XX ainda dominava 20 territórios na Europa) decidiu optar pela origem polonesa diante dos movimentos nacionalistas que pipocavam na época. Habsburgo, no entanto, optou pela via “gauche”: preferiu se tornar ucraniano.

O envolvimento do arquiduque com a causa ucraniana o levou a radicalismos. Além de adotar o idioma do país em detrimento do italiano, do francês, do alemão, do inglês e do polonês que falava desde criança (foi quando verteu o seu nome para Vasyl Vyshyvanyi), ele passou a usar roupas folclóricas dos camponeses com vistosos bordados de flores e grafismos. Chegou até a escrever um livro de poesias voltado para a cultura de sua pátria de adoção. Os novos conterrâneos o retribuíam com humor, apelidando-o de Vasyl, o Bordado. A alegria, contudo, durou pouco.

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Nos anos 1930, com a ocupação e posterior divisão da Ucrânia em duas áreas de influência polonesa e soviética, ele foi para a Espanha. Na França, mergulhou na louca atmosfera boêmia, se envolvendo com artistas como a cantora e dança­rina Mistinguett, célebre na época. Podiam ser vistos junto com outro príncipe, Friedrich Wilhelm da Prússia, que, como ele, tinha berço famoso, mas uma fortuna indo pelos ralos.

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Foi um período escandaloso. Afora as aventuras homossexuais (a polícia parisiense registrou a sua presença nas chamadas “maison spéciales”, eufemismo para bordéis gays), Habsburgo foi quase preso por suspeita de participar, junto com uma amante, de um golpe em um milionário do ramo de bebidas, ligado à família Rothschild. Aos policiais, a mulher afirmou que estava “arrecadando dinheiro para a restauração dos Habsburgo”. A partir daí, a existência de Habsburgo lembra a de Zelig. Baseado em Viena, ele se aproxima dos nazistas na esperança de que eles libertem a Ucrânia, mas logo percebe as reais intenções do Reich. Passa a fornecer informações para a inteligência inglesa. Usando dos mesmos contatos da resistência camponesa, abastece o governo francês de dados sigilosos sobre a União Soviética. À espreita numa cidade dividida em quatro administrações, Habsburgo é surpreendido por policiais russos com braçadeiras vermelhas. É colocado em um carro. No dia seguinte estava sendo interrogado. Não resistiu aos 357 dias no cativeiro e às intermináveis sessões de tortura. Antes de embarcar, teria perguntado aos soldados: começou a terceira guerra?  

 

Leia um trecho do primeiro capítulo do livro:

O Sonho do Imperador

Nenhuma dinastia europeia governara por tanto tempo

quanto os Habsburgos, e nenhum Habsburgo governara por

tanto tempo quanto o imperador Fra ncisco José. No segundo dia de

dezembro de 1908 a mais alta sociedade do império reuniu-se na sua

Casa de Ópera da Corte em Viena para celebrar o 60º jubileu do seu

governo. Os nobres e os príncipes, os o/ciais e os funcionários públicos,

os bispos e os políticos vieram celebrar a durabilidade de um homem

que reinava sobre eles pela graça de Deus. O local de encontro, uma

casa de música, também era um templo da eternidade. Como os outros

grandes edifícios construídos em Viena durante o reinado de Francisco

José, a Casa de Ópera da Corte tinha o estilo histórico inspirado no

Renascimento, ao mesmo tempo que dava para as mais belas avenidas da

Europa moderna. Ela era uma das pedras preciosas da Ringstrasse — a

avenida circular construída durante o reinado de Francisco José para

delimitar o centro da cidade. Na época, tal como agora, os humildes e

os nobres podiam pegar o bonde e passear em volta (da Ringstrasse) pelo

tempo que quisessem, com uma passagem para a eternidade nas mãos.

 

A celebração do aniversário de reinado do imperador começara na

noite anterior. Os vienenses em volta da Ringstrasse e de toda a cidade

haviam acendido uma única vela em suas janelas, lançando uma pequena

luz dourada através da escuridão da noite. Esse costume tivera início em

Viena 60 anos antes — quando Francisco José foi elevado aos tronos dos

Habsburgos em meio à revolução e à guerra — e se espalhara por todo o

império durante o seu longo reinado. Não apenas em Viena, mas em Praga,

Cracóvia, Lviv, Trieste, Salzburg, Innsbruck, Ljubljana, Maribor, Brno,

Chenivtsi, Budapeste, Sarajevo e incontáveis outras cidades, municípios e

vilas através da Europa Central e Oriental, súditos leais aos Habsburgos

demonstravam seu respeito e devoção. Depois de seis décadas, Francisco

José era o único governante que a maioria dos seus milhões de súditos

— alemães, poloneses, ucranianos, judeus, tchecos, croatas, eslovenos,

eslovacos, húngaros, romenos — havia conhecido. Ainda assim, em Viena,

o brilho dourado não trazia nostalgia. No centro da cidade as milhares

de velas tremeluzentes eram ofuscadas por milhões de lâmpadas elétricas.

Todos os grandes prédios da Ringstrasse eram iluminados por milhares de

lâmpadas. Praças e cruzamentos eram decorados por estrelas elétricas gi-

gantes. O próprio palácio do imperador, o Hofburg, era coberto por luzes.

Um milhão de pessoas saiu para as ruas a /m de assistir ao espetáculo.

 

Na manhã de 2 de dezembro, no Hofburg — o palácio imperial na

Ringstrasse —, o imperador Francisco José recebeu a homenagem dos

arquiduques e arquiduquesas: príncipes e princesas cujo sangue, tal como

o dele, era o dos imperadores Habsburgos do passado. Embora a maioria

deles tivesse palácios em Viena, eles vinham do outro lado do império,

de seus vários refúgios da vida na corte, ou de suas várias mansões

suntuososas. O arquiduque Stefan, por exemplo, tinha dois palácios no

sul imperial às margens do mar Adriático e dois castelos no norte em

um vale da Galícia. Stefan e sua esposa, Maria Teresa, trouxeram seus

seis /lhos ao Hofburg naquela manhã para prestarem sua homenagem

ao imperador. O /lho mais novo, Willy, tinha 13 anos, idade su/cien-

te — de acordo com o cerimonial da corte — para participar. Willy,

criado às margens do mar azul, viu-se cercado por uma demonstração

magní/ca do poder e da longevidade de sua família. Era uma das raras

ocasiões em que ele via seu pai, Stefan, usando um traje cerimonial

completo. Em volta do pescoço ele usava o colar da Ordem do Tosão

de Ouro — a insígnia daquela que era a mais exaltada das sociedades

cavalheirescas. Willy, aparentemente, manteve uma certa distância da

opulência. Embora tenha aproveitado a oportunidade para examinar

o tesouro imperial — onde os tronos e as joias eram guardados —, ele

lembrar-se-ia do mestre de cerimônias como um galo dourado.

 

À noite, na Casa de Ópera da Corte, o imperador e o arquiduque en-

contraram-se novamente, desta vez perante uma audiência. Às 18h os

outros convidados haviam chegado e tomado seus lugares. Pouco antes

das 19h, os arquiduques e arquiduquesas — incluindo Stefan, Maria

Teresa e seus /lhos — esperavam pelo sinal. No momento adequado,

os arquiduques e arquiduquesas /zeram sua grande entrada no salão

e caminharam juntos até seus camarotes. Stefan, Willy e o restante da

família ocuparam um camarote do lado esquerdo, e permaneceram de

pé. Só então apareceu o imperador Francisco José — um homem de 78

anos de idade e seis décadas de poder, curvado, mas forte, usando cos-

teletas imponentes e com uma expressão impenetrável. Ele agradeceu os

aplausos da galeria. Ele /cou de pé por um momento. Francisco José era

conhecido por esse hábito: permanecia de pé em todos os compromissos

a /m de fazê-los durar o mínimo possível. Ele também era conhecido

pela sua resistência: sobrevivera às mortes violentas de seu irmão, sua

esposa e seu /lho único. Ele sobrevivera às pessoas, às gerações, e parecia

capaz de sobreviver até mesmo ao próprio tempo. Mas naquele momento,

precisamente às 19h, ele sentou-se, e todos os outros puderam sentar

também, e outra apresentação podia começar.