Professor critica a proliferação de faculdades de medicina e diz que muitos dos recém-formados não têm condições de tratar mais do que uma gripe

A cada dia que passa, o clínico geral Antônio Carlos Lopes, 54 anos, fica mais surpreso com a qualidade de muitos dos estudantes de medicina que conhece. Ele é presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica – entidade que congrega os especialistas da área e ajuda a difundir o conhecimento, mantendo o nível de qualidade dos profissionais. É também professor-titular da disciplina de clínica médica da Universidade Federal de São Paulo. Entre outras atribuições, Lopes tem a função de orientar alunos de residência médica (etapa posterior à graduação, importante para a obtenção de título de especialista). E é com terrível perplexidade que o especialista se depara com jovens médicos que nem sequer conhecem a exata localização do coração nem sabem dizer quantas são as válvulas cardíacas. De acordo com o médico, eles são os produtos finais da fábrica de faculdades médicas de péssima qualidade montada no País, nos últimos anos. São médicos sem noções básicas de anatomia, incapazes de realizar um bom exame ou de apresentar um raciocínio clínico que leve a um diagnóstico correto. Ou seja, não estão preparados para exercer a profissão.

Segundo Lopes, dos cerca de dez mil novos médicos formados a cada ano no Brasil, 90% não estão treinados o suficiente para oferecer um bom atendimento e deveriam voltar para os bancos da universidade. “No máximo eles conseguem tratar problemas como uma diarréia. Nada de casos complexos”, afirma. Em sua opinião, quem sai perdendo, obviamente, são os paciente. “Eles estão correndo riscos”, alerta. Ex-presidente do American College of Physicians – maior entidade de clínicos gerais do mundo –, Lopes defende que não seja permitida a abertura de mais nenhuma faculdade médica no Brasil e se realize uma avaliação dos cursos existentes. Ele sugere que aqueles que não apresentarem um nível satisfatório de qualidade sejam fechados. “Muitas faculdades surgiram porque o reitor imaginava que deveria ter um curso de medicina para que sua instituição tivesse mais força. Montava-se um programa pedagógico sem compromisso ético com o ensino e com a comunidade, sem estruturas adequadas e sem hospital universitário”, observa.

O clínico geral também critica a existência dos cursinhos preparatórios para a residência médica, uma invenção brasileira criada para treinar os estudantes para que eles passem nos exames de admissão para esses cursos. “Os alunos do quinto e sexto ano estão sacrificando a graduação no momento em que teriam de aprender raciocínio clínico. Sacrificam esse período para decorar respostas”, diz. Segundo ele, esses cursos provam, com sua existência, que as faculdades não oferecem um ensino de qualidade. Se oferecessem, os cursos não precisariam existir. Formado há 31 anos e pai de três filhos – um médico formado e dois estudantes de medicina –, Lopes diz nesta entrevista a ISTOÉ que se nada for feito a qualidade do atendimento médico prestado no Brasil piora ainda mais.

ISTOÉ – O sr. tem uma visão crítica em relação à formação médica atual. Como era a graduação na sua época e como ela está hoje?
Antônio Carlos Lopes

Naquela época, tínhamos modelos no ensino médico. Éramos preparados por professores que, além de
serem bons mestres, eram excelentes profissionais. Valorizavam o ensino à beira do leito, a relação médico-paciente, o aspecto humanístico da medicina, a ética no ensino. Eles montavam um currículo que tinha um compromisso com a comunidade. Não era simplesmente para preencher espaço, horário.

ISTOÉ – E o que aconteceu?
Antônio Carlos Lopes

Nas escolas tradicionais, federais, estaduais e algumas particulares, esse perfil ainda existe, embora em menor escala.
Por que em menor escala? Porque esses mestres que traziam a experiência da vida profissional para o ensino – muito importante
porque na medicina só pode ensinar quem faz – foram desaparecendo.
E não houve a possibilidade de seus discípulos darem continuidade àquilo que aprenderam em razão dos problemas de saúde do Brasil
e do avanço da tecnologia. Nesse sentido, passou-se a dar mais atenção aos aspectos tecnológicos do que ao paciente, tratando-se mais a doença do que o doente. Hoje, há uma preocupação com a última ressonância magnética, por exemplo, quando na realidade
70% da medicina se resolve à beira do leito, desde que se converse
com o doente, que se saiba examiná-lo. E há outro aspecto importante. Concomitantemente, foram surgindo escolas médicas criadas sem
nenhum compromisso ético com a comunidade.

ISTOÉ – O sr. diz isso baseado em quê?
Antônio Carlos Lopes

Baseado no fato de ter participado da Comissão Interinstitucional do Ensino Médico (Cinaem) de 1991 a 1994. Trata-se de um órgão consultivo independente. Não é ligado ao Ministério da Educação. Mas avalia escolas médicas. A comissão foi criada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, com apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Médica Brasileira (AMB).

ISTOÉ – Em função dessa experiência, qual a sua opinião a respeito do ensino médico hoje?
Antônio Carlos Lopes

É a mesma das entidades associativas e lideranças médicas do País. As escolas médicas foram criadas numa avalanche. São mais de 100 atualmente. Elas surgiram muito mais por interesse econômico do que por qualquer outro. Essas escolas começaram a aparecer porque a faculdade de medicina passa a ser o carro-chefe de qualquer instituição. Muitas surgiram simplesmente porque o reitor imaginava que deveria ter uma porque, assim, sua instituição teria mais força. Aí, montava-se um programa pedagógico sem nenhum compromisso ético com o ensino e com a comunidade, sem estrutura acadêmica e metodologia adequadas e sem hospital universitário. Os professores eram médicos indicados, raríssimos com titulação (mestrado e doutorado). Na medicina, a titulação é muito importante. Não porque isso garanta que o médico seja um bom profissional. Mas a titulação pressupõe que o indivíduo tenha tido um treinamento e tenha sido avaliado pelos seus pares durante a carreira. Em última análise, o que caracteriza essas escolas médicas é a ausência de um corpo docente adequado e a inexistência de recursos materiais apropriados. Há casos em que as aulas de anatomia são dadas com slides, em vez de ser com cadáver. O ensino é fragmentado. Exemplo: a faculdade usa um hospital para que os alunos possam treinar. Quem dá a conduta de um paciente é o staff do hospital, e o professor vai lá e dá uma aula, sem concordar com o que foi feito. Não há vínculo direto com os hospitais em muitas dessas escolas.

ISTOÉ – Diante disso, que médico é esse que está saindo das escolas?
Antônio Carlos Lopes

Além de tudo que já expliquei, nessas escolas falta o compromisso ético com os alunos. Não se prestigia o estudante, não se abrem portas para ele, não se estimula a iniciação científica, nem se criam condições para o aprendizado. Não se valoriza também a relação do aluno com o doente. Então, o médico que sai dessas escolas não tem condições de exercer a medicina. Pior, não tem condições de aprender a medicina depois de formado.

ISTOÉ – O sr. acompanha a residência de médicos oriundos de faculdades consideradas fracas. O que mais chama sua atenção?
Antônio Carlos Lopes

Não dá para entender como é que depois de seis anos eles estão num nível tão ruim.

ISTOÉ – Isso significa o quê? Que eles não prescrevem remédios adequados, não conhecem interações medicamentosas?
Antônio Carlos Lopes

Não sabem nada disso. É quase pedir demais. Eles não conhecem coisas elementares. Por exemplo, eles não sabem que
dois terços do coração ficam do lado esquerdo e um terço do lado direito. Se perguntamos quais são as válvulas do coração, eles não
têm a resposta. E quando vão examinar o paciente durante a visita, percebe-se que não têm idéia de como fazê-lo. Não sabem fazer o
exame clínico. Hoje, os alunos não estão preocupados em buscar informação, examinar um ambiente e desenvolver o raciocínio clínico.
E também já encontrei alguns estudantes que no quinto ano me disseram: “Lamentavelmente, não sei nada.”

ISTOÉ – Na sua opinião, do total de médicos que saem das faculdades todos os anos, quantos são mal preparados?
Antônio Carlos Lopes

O porcentual de médicos mal preparados é da ordem de 90% ou mais. Existem cerca de 100 escolas. Cada uma tem uma média de 100 alunos. Quem forma um bom médico? Podemos contar umas dez faculdades, como USP, Unifesp, Santa Casa/SP, a Faculdade do ABC/SP, USP/Ribeirão Preto, Unesp/Botucatu, Unicamp, UFRJ, UFMG…

ISTOÉ – Há, portanto, um risco para os pacientes?
Antônio Carlos Lopes

Sim. Essas faculdades lançam no mercado milhares de alunos que muitas vezes mal sabem escrever uma cartilha. É uma enorme quantidade de pessoas. Delas, muitas não conseguem nem entrar na residência. E aí há outro problema. A residência médica é a melhor forma de treinamento e aprendizado após a graduação. Mas, na grande maioria das vezes, ela representa uma mão-de-obra barata. Não há supervisão, modelo pedagógico, estrutura acadêmica. A grande maioria dessas escolas tem residência sem supervisão. Isso mostra que falta uma avaliação adequada dos programas de residência médica.

ISTOÉ – A supervisão não é obrigatória?
Antônio Carlos Lopes

É obrigatória. Mas recebo informações frequentes a respeito de casos em que o paciente teve complicações sérias porque o residente precisou tomar atitudes sozinho, sem supervisão.

ISTOÉ – Que tipo de riscos corre o paciente atendido por um desses profissionais despreparados?
Antônio Carlos Lopes

O médico não devidamente formado, que não encontra residência médica para se aprimorar, é um profissional que não tem a menor condição de tratar nada mais além de gripe, diarréia, ânsia de vômito. Isso se o caso não complicar. Para problemas mais complexos, eles não têm condições. Por isso, digo que essas escolas não estão preocupadas em formar os alunos.

ISTOÉ – Qual o mercado de trabalho desses profissionais recém-formados?
Antônio Carlos Lopes

A alternativa atual é ir para os programas de médicos de família. É outro erro grave. O médico de família tem de ser um clínico muito bem formado, com bons conhecimentos de pediatria, ginecologia, obstetrícia, cirurgia, etc. Tem de ser um profissional que tenha por opção exercer essa área da medicina. Ou seja, o estímulo para ser médico de família não deve ser apenas o salário e um emprego garantido. Mas, na prática, é isso o que está acontecendo.

ISTOÉ – Como o paciente pode se precaver de eventuais danos causados por esses profissionais?
Antônio Carlos Lopes

Antes de dizer como o doente pode se precaver, acho que o jovem que procura a medicina deve fazer uma análise crítica da faculdade que pretende cursar. Dependendo da faculdade, é melhor seguir outras opções na vida, e não ser médico. Ele tenta o vestibular uma, duas, três vezes. Se entrou num lugar X, é melhor verificar como é o corpo docente, qual o modelo da faculdade, quais são os recursos materiais, o que ela representa no contexto médico, para que ele possa optar pelo curso ou não. Deve fazer isso para que não seja um frustrado mais tarde, para que não se veja fazendo uma medicina muito longe da que idealizou. Em relação ao paciente, chamo a atenção para a possibilidade de se pedir uma segunda opinião se a doença não é simples. Em vista de tudo isso, a segunda opinião passou a ser muito importante, principalmente para o paciente que não conhece o médico.

ISTOÉ – O que pode ser feito para evitar a criação de escolas médicas despreparadas?
Antônio Carlos Lopes

O CFM e a AMB se opõem à abertura de mais faculdades médicas – há atualmente três candidatas em São Paulo. Essas entidades se opuseram à criação das que vieram nos últimos dez anos. Mas nunca foram ouvidas. O que estranhamos é que algumas escolas são reconhecidas pelo Conselho Nacional de Educação após análise feita por pessoas que não têm a menor condição de aprovar coisa nenhuma. Mas seguramente essa nova administração, pelas pessoas que estão lá, irá impor um ritmo sério no que diz respeito à abertura de novas escolas. Acho também que deveria ser feita uma avaliação das escolas médicas por gente competente – e temos muita gente boa para isso. Não havendo condições de ensinar adequadamente, que fossem fechadas, doesse a quem doesse. E os alunos, remanejados.

ISTOÉ – Há outros problemas em relação ao ensino?
Antônio Carlos Lopes

Sim. O curso de graduação vai sofrer um prejuízo muito grande por causa dos cursinhos preparatórios para residência. Existem três ou quatro em São Paulo. Eles treinam os alunos exclusivamente para responder testes, baseados em provas anteriores. Isso bloqueia
o raciocínio do aluno porque dá chavões a esses estudantes. Os alunos do quinto e sexto ano estão sacrificando a graduação no momento
em que teriam de aprender raciocínio clínico, mecanismos de doenças, entre outros temas. Sacrificam esse período para decorar respostas
e assim passar na residência. Isso é testemunho do curso mal dado. Esses cursinhos, que surgiram há três anos, estão lotados porque
a graduação em si está ruim. No momento em que teriam de começar
a agir como profissionais, eles ficam decorando testes dia e noite, permanecem o menos possível na faculdade e vão embora para
poder passar na residência. Muitos alunos da Escola Paulista de
Medicina, que têm raciocínio clínico, não entraram na residência, perdendo para alunos que fizeram o cursinho. Isso porque os
testes habituais de residência não avaliam conhecimento.

ISTOÉ – O sr. acha que é preciso extinguir também os cursinhos preparatórios para residência?
Antônio Carlos Lopes

Eles deveriam ser proibidos. O cursinho preparatório é prejudicial às escolas médicas. Não ensinam absolutamente nada, a não ser como passar no exame para residência.