Que elas são lindas e maravilhosas, todos sabem. O que ninguém imaginava é que,
no Miss Mundo 2002, beldades
de variadas origens e crenças acabariam no epicentro de
uma violenta manifestação
de radicalismo religioso. Terra
da vencedora do ano passado, Agbani Darego, a Nigéria
ganhou o direito de sediar
o concurso. Mas um comentário publicado no jornal local This Day
fez explodir uma série de conflitos religiosos no País. A jornalista
Isioma Daniel, especializada em moda, aparentemente com vontade
de escrever um texto engraçadinho, acendeu o estopim da intolerância ao questionar as críticas feitas pelos muçulmanos à presença das
misses no País. “O que Maomé acharia disso? Com toda honestidade,
ele provavelmente escolheria uma delas para ser sua esposa”, escreveu
a jornalista. Foi o suficiente para que confrontos de rua entre muçulmanos e cristãos começassem em Kaduna, no norte, se espalhassem por outras cidades e resultassem em pelo menos 215 mortos. Isioma, por sua vez, virou alvo de uma fatwa, a sentença dada por líder religioso que, neste caso, ordenou sua morte. O jornal onde Isioma trabalhava informou que ela se refugiou nos Estados Unidos.

Com 115 milhões de habitantes, a Nigéria tem uma história marcada
por sucessivos golpes militares, mas, desde 1999, está sob o comando
de um governo eleito. Desde então, o presidente Olusegun Obasango enfrenta toda sorte de movimentos separatistas, étnicos e religiosos.
Um dos principais focos de tensão se deve ao fato de 12 dos 36
Estados nigerianos terem adotado a lei islâmica, conhecida como
sharia. A sentença contra Isioma partiu de Zamfara, Estado precursor
na adoção das estritas normas. Ao anunciar a pena, em cadeia de
rádio, o vice-governador Mamuda Shinkafi comparou a jornalista
ao escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie, autor do
livro Versos satânicos, que em fevereiro de 1989 recebeu fatwa
similar do então líder do Irã, o aiatolá Ruhollah Khomeini. “É obrigatório para todos os muçulmanos considerar o assassinato da autora
do artigo como um dever religioso”, afirmou Shinkafi.

Contestada pelo governo federal da Nigéria, a sentença de morte
também foi recebida com ressalvas por outras lideranças islâmicas, principalmente porque a jornalista se desculpou pelos comentários.
“A verdadeira origem do lamentável confronto não é o Miss Mundo,
mas sim antigas brigas tribais”, afirma, no Brasil, Jihad Hassan Hammadeh, vice-presidente da Assembléia Mundial da Juventude Islâmica. “Não
resta dúvida, porém, de que a jornalista desrespeitou um símbolo religioso, assim como fizeram os talibãs, ao destruir estátuas de Buda
no Afeganistão, e como fez o bispo brasileiro ao chutar a imagem
de Nossa Senhora Aparecida”, comparou Hammadeh, referindo-se
ao episódio ocorrido em outubro de 1995, envolvendo o bispo Sérgio
Von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus.

Embora tenha ressaltado que só agora começa a se informar sobre conflitos religiosos, a representante do Brasil, a catarinense Taíza Thomsen, 19 anos, também se manifestou ao desembarcar em Londres, para onde o concurso foi transferido depois do banho de sangue. “Era uma guerra que já acontecia”, contemporizou. “Eles têm uma cultura diferente, que precisamos respeitar.” Representantes de outros países, no entanto, haviam questionado a realização do Miss Mundo na Nigéria antes de a violência tomar conta das ruas. Entre elas estavam as misses da França e da Bélgica, que protestavam contra a condenação à morte por apedrejamento da nigeriana Amina Lawak, acusada de adultério.

Na tentativa de se harmonizar com
a parcela muçulmana da população,
os organizadores do concurso haviam mudado sua data em respeito ao Ramadã, o período de abstinência
e de recolhimento para os seguidores
do islamismo. A medida revelou-se inócua diante da gravidade do
problema. Em onda anterior de
violência, em fevereiro de 2000, confrontos similares já haviam provocado a morte de mais de duas
mil pessoas. Desta feita, a repercussão da barbárie foi maior pela presença
das misses e pela insistência dos organizadores do Miss Mundo 2002
em continuar a festa, transferindo-a para o Palácio Alexandra, no norte
de Londres. “Depois de desencadear aquela luta fratricida, esse
pessoal deveria cancelar o concurso”, defendeu a parlamentar britânica Glenda Jackson. Enquanto isso, na Nigéria, o presidente Olusegun Obasango enterrava as vítimas e contabilizava o prejuízo político.
Ele sabe que a Fifa deseja realizar a Copa de 2010 na África e trabalha para que o país tenha condições de abrigar a competição.

 

A bola da vez

Quando a situação começava a se normalizar na Nigéria, a violência
se espalhava do outro lado da África, no Quênia. Situado na costa leste, o Hotel Paradise, em Mombasa, foi palco de um atentado
com carro-bomba que deixou pelo menos 16 mortos na quinta-feira
28. O hotel, cujo dono é israelense, tinha 140 hóspedes. Cinco minutos antes, um ataque de mísseis foi desfechado contra um avião da Arkia, companhia israelense, que havia acabado de decolar de Mombasa, rumo a Tel Aviv. Com 261 passageiros e dez tripulantes,
o aparelho não chegou a ser atingido. Uma organização libanesa desconhecida, autodenominada Governo da Palestina Universal no Exílio, o Exército da Palestina, assumiu a autoria dos atentados. “Nossa mão vai alcançá-los”, reagiu o ministro da Defesa de Israel, Shaul Mofaz. No mesmo dia, seu próprio país lamentava um ataque
a tiros contra um diretório do partido Likud, com sete vítimas.