A mais de 11 mil quilômetros do Iraque, o Brasil também amarga a sua guerra e enfrenta com dificuldade os furiosos ataques inimigos em seus 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Aqui, não houve uma invasão de tropas estrangeiras. Mas, mesmo assim, diariamente caem por terra civis, inclusive crianças, e soldados que estão no front da batalha. Os adversários, que contam com armas cada vez mais sofisticadas, não formam um único exército, mas são poderosos e assustadores: são os grupos do crime organizado, entrincheirados em todos os Estados. Tão organizado que há anos vêm infiltrando seus agentes nas instituições do Estado: nas polícias e nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O País não havia acordado para o perigo. Lentamente, e ainda com passos trôpegos, as autoridades passaram a reforçar suas tropas. O Estado começou a se organizar para enfrentar o crime organizado. O Brasil sente o impacto do contra-ataque das forças inimigas.

Os primeiros disparos, na direção do Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, do Comando Vermelho, no Rio, e dos grupos que comandam negócios ilícitos e a indústria da morte no Espírito Santo, provocaram reações furiosas: promoveram rebeliões em massa em presídios, explodiram bombas nas portas do Judiciário, deram tiros de metralhadoras nas fachadas de sedes do Executivo. Passaram ainda a aterrorizar a população, queimando ônibus, impedindo comerciantes de abrir suas portas. A última ação foi executar, num intervalo de apenas dez dias, dois juízes, um em São Paulo e outro no Espírito Santo. Os dois tinham algo em comum: se destacavam pela firmeza com que aplicavam a lei, desafiando as regras da bandidagem. O cenário lembra a Itália de dez anos atrás. A famosa Operação Mãos Limpas começava a desmantelar as máfias que fizeram a fama do país nas telas de Hollywood. Ao perceberem que o Estado italiano acertava na estratégia de combate, os mafiosos agiram furiosamente. Mas, em 1992, atiraram no próprio pé. Explodiram, literalmente, dois juízes que se transformaram em mártires: Giovanni Falcone e Paolo Borselino. Entrou em cena a sociedade indignada, que passou a exigir o fim da impunidade e, assim, reforçou a atuação das autoridades. Algumas das armas mais poderosas utilizadas pelos italianos podem servir de exemplo, como a adoção de leis que confisquem os bens de mafiosos e ofereçam vantagens aos criminosos arrependidos que resolvam colaborar com a polícia.

Encomenda – O Brasil ainda chorava o assassinato do juiz-corregedor de Presidente Bernardes (SP) Antônio José Machado Dias, morto com três tiros, na sexta-feira 14, quando soube da execução de um segundo representante judiciário: o juiz da 5ª Vara de Execuções Penais do Espírito Santo Alexandre Martins de Castro Filho, 32 anos, também morto com três disparos. As investigações não indicam ligação de um crime com outro. Mas, ao atingir o Judiciário, os criminosos estão dispostos a eliminar quem atrapalhar seus negócios. Na quinta-feira 27, a polícia de São Paulo anunciou que já tem provas de que o crime do juiz Machado foi encomendado por um dos chefes do PCC, Marcos Camacho, o Marcola.

Dois dias antes de sua morte, Alexandre concedeu sua última entrevista, publicada no domingo no jornal A Tribuna, na qual comentava a morte de Machado. “Não vamos nos intimidar. Ao contrário. Vamos trabalhar ainda mais em homenagem ao nosso colega”, afirmou durante a entrevista, que concedeu em pé, em frente a uma loja de gravatas, sob a proteção de um segurança. O juiz demonstrou preocupação, observando a todo momento as pessoas que circulavam pela rua durante sua conversa com o jornalista Maurício Xavier. “Há um risco real, sério. O governador Paulo Hartung nos chamou e disse que fazia questão que ficássemos com segurança. Nós achávamos que não era necessário, mas ele insistiu e disse que se sente mais tranquilo assim”, comentara Alexandre. Na noite de domingo, o juiz dispensou o segurança e pediu a ele para aparecer na sua casa às 11h do dia seguinte.

Ameaçado desde dezembro de 2001, junto com seu inseparável colega de trabalho Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, Alexandre, um carioca que atuava no Espírito Santo há quase cinco anos, trazia no corpo a marca de sua obsessão: nas costas havia mandado tatuar a imagem da deusa grega Astréia, o símbolo da Justiça. O juiz era um obstáculo aos representantes de todos os tipos de organizações criminosas que há anos dominam as instituições do Estado: jogo do bicho, casas de bingo, grupos de extermínio, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, corrupção. Alexandre e Carlos Eduardo atuavam com a força-tarefa do governo federal que há sete meses trabalha para desarticular o crime organizado capixaba. Conseguiram prender três chefões: o ex-deputado e ex-presidente da Assembléia Legislativa José Carlos Gratz, acusado de ser o braço político; o empresário Carlos Guilherme Lima, o tentáculo financeiro; e o coronel da reserva da PM Walter Gomes Ferreira, tido como o braço militar.

O suspeito número 1 do assassinato é este último, segundo o secretário de Segurança Rodney Rocha Miranda. Alexandre comandou pessoalmente o processo de transferência do temido coronel Ferreira para o presídio de segurança máxima do Acre, em dezembro passado. Assim como o traficante Fernandinho Beira-Mar – que na quinta-feira 27 foi transferido de Presidente Bernardes para a sede da Polícia Federal, em Maceió, e depois seguirá para o Piauí, onde uma prisão local será transformada em presídio federal – o coronel Ferreira continua com força, mesmo dentro da cadeia, dando ordens a seus comandados por telefone. Depois de saber que o secretário Rodney havia citado seu nome como suspeito, o coronel ligou de um orelhão para um parente e desafiou o secretário a provar sua participação no crime. Em meio às investigações há tentativas de integrantes da banda podre de lançar factóides para tirar Ferreira do centro das atenções. Mas existem pelo menos três fortes indícios que apontam para o ex-PM. Dois destes indícios estão ligados a um operador do coronel que foi preso após o assassinato de Alexandre: o sargento da PM Hélber Valêncio. Há duas semanas, Alexandre recebeu um fax anônimo avisando para tomar cuidado com Valêncio. No meio das investigações descobriu-se um contrato de aluguel de uma casa, em nome de Valêncio, nas proximidades da residência e da academia de ginástica diante da qual Alexandre foi executado. Para completar, o sargento foi visto no dia do crime por uma testemunha na rua onde Alexandre foi morto. Outra possibilidade levantada pelos investigadores é de que o coronel Ferreira possa ter agido não só em causa própria, mas a mando de alguém.

Jogo do bicho – Vários tubarões ficaram incomodados com a atuação de Alexandre. Ele combateu duramente o jogo do bicho e investigava as ligações da contravenção com os políticos locais. É a chamada Operação Águia, que começou em janeiro, e da qual Alexandre participou junto com policiais do Departamento de Repressão ao Crime Organizado. Em fevereiro foi fechado o escritório central de uma das maiores bancas do jogo do bicho no Estado. Também estouraram 84 pontos da contravenção, apreendendo armas, computadores, dinheiro, documentos, máquinas de videopôquer e material de propaganda eleitoral de Gratz. “Ele deve estar muito mordido porque está mofando numa cela da carceragem da Polícia Federal, onde não tem nem ventilador nem televisão”, comentou um dos policiais. O juiz assassinado expediu em meados de fevereiro mandado de prisão preventiva de um braço direito de Gratz: André Nogueira, ex-diretor-geral da Assembléia. Na quarta-feira 26, dois dias depois da execução de Alexandre, Nogueira conseguiu uma vitória: o Tribunal de Justiça concedeu seu habeas-corpus. O braço direito de Gratz saiu da prisão com um sorriso no rosto e vestindo uma camiseta preta estampada com a palavra fé.

Mas Alexandre não era o único ameaçado. Há uma lista de autoridades marcadas para morrer. Alexandre foi executado às 8 horas da segunda-feira 24, quando ia para a academia de ginástica. Quarenta minutos antes, quando corria no calçadão da praia, o secretário de Segurança Rodney Miranda foi seguido por um dos matadores do juiz, que sorria de forma irônica e ameaçadora. Preso na delegacia no dia seguinte, o homem não conseguiu encarar o secretário. “Por que agora você não está feliz? Você só sorri quando vê o secretário correndo na praia?”, perguntaram a ele. O criminoso abaixou a cabeça. Rodney – um experiente policial federal da área de investigação trazido pelo governador Paulo Hartung (PSB) do Distrito Federal – tornou-se amigo do juiz. “O assassinato de Alexandre foi uma tentativa de intimidar. Mas eles não vão conseguir. As ações vão ser intensificadas. O crime é organizado. Por isso, nós temos que nos organizar, integrando os trabalhos das polícias, do Ministério Público, do Judiciário, da Receita Federal”, afirmou Rodney.

A vida no Espírito Santo – um Estado que amarga a cultura da pistolagem – vale pouco. Segundo o próprio secretário, uma morte por encomenda pode custar apenas R$ 300. O assassinato de Alexandre causou a maior comoção popular já vista em Vitória. Seis mil pessoas compareceram a seu velório. Carreatas, buzinaços de protesto e várias manifestações foram organizadas, reunindo milhares de pessoas. A sociedade capixaba parece ter chegado ao ponto de saturação dos italianos há dez anos. Durante o velório, o governador Hartung, o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e o secretário nacional de Direitos Humanos Nilmário Miranda, acompanharam uma reunião de juízes e testemunharam a reação de revolta da categoria. O crime, ao invés de intimidar, deu gás a todos. Muito emocionado, o juiz Carlos Eduardo Lemos garantiu na reunião que não vai abandonar sua função. “Espero que os juízes não sejam um monte de covardes. Se tirar um, tem outro para colocar no lugar e assim por diante”, apelou, sob aplausos dos colegas. Vários juízes se prontificaram a ocupar a vaga de Alexandre na Vara de Execuções Penais, que conta ainda com o juiz Rubem José da Cruz.

No dia do crime, o governador reuniu-se com Márcio Thomaz Bastos, Nilmário Miranda e o diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda. O presidente Lula reagiu imediatamente: “Eu não sei quem matou o juiz, mas podem ter a certeza de que se a morte desse e do outro juiz de Presidente Prudente forem ações do crime organizado e do narcotráfico nós vamos ganhar a guerra contra eles.” Na quarta-feira 26, Hartung recebeu a visita de seu colega de Minas, Aécio Neves (PSDB), que propôs a união dos estados do Sudeste no combate ao crime organizado, tendo como foco a troca de informações entre as polícias. A idéia é acabar com as competições entre as instituições e a fogueira de vaidades. A organização e a união das tropas são fundamentais. Outras guerras, como a que os Estados Unidos promovem no Iraque, têm mostrado que o uso da força pura e simples pode ser desastrosa. Muito mais eficaz é o poder de fogo da inteligência. Se a Itália conseguiu o que há dez anos parecia impossível, por que o Brasil não poderá fazer o mesmo?

“ Eu sou um sobrevivente ”
   
Aos 69 anos, o desembargador Antônio José Miguel Feu Rosa, um dos mais respeitados integrantes do Poder Judiciário do Espirito Santo, sofreu na carne a violência do crime organizado. Há 12 anos, seu irmão José Maria Feu Rosa, então prefeito da cidade de Serra, foi executado por pistoleiros. Os mandantes ficaram irritados com a recusa de José Maria de deixar que saqueassem a máquina da prefeitura. No rastro da execução de seu irmão, morreram mais 15 pessoas, todas envolvidas direta ou indiretamente no assassinato. Os mandantes ficaram impunes até dois anos atrás, quando uma juíza pegou o caso e determinou a prisão de dois envolvidos. Apesar da tristeza com a morte do colega de 32 anos, Feu Rosa acredita
que o assassinato não vai intimidar o Judiciário. “O Alexandre era
um camarada muito destemido, corajoso”, conta. E opina: “Vejo
pela primeira vez luz no fim do túnel porque acho que o governador Paulo Hartung e o governo federal estão determinados em acabar
com essa situação. O Espírito Santo é uma caldeira de pressão.
Quem trabalha na área da Justiça vive sobressaltado, olhando
para todos os lados, com medo.”

O desembargador lembra que há 50 anos um outro juiz, Atauapa Lessa, da Comarca do município de Afonso Cláudio, foi assassinado no Estado, em plena sessão do júri. “As pessoas sabem que podem matar, que não vai ter inquérito. São acobertadas por elementos da lei, mas a sociedade já está cansada. Acho que as coisas vão mudar. Estou otimista. A situação vai melhorar, aos poucos, mas vai”, disse. Ele recorda que a pistolagem cresceu muito depois do surgimento da extinta União Democrática Ruralista (UDR), formada por fazendeiros que pagavam pistoleiros para matar invasores de terras: “Os pistoleiros eram acobertados pelos ricos e passaram a influenciar na política também. E essa situação continuou mesmo com o fim da UDR.” Feu Rosa diz que não tem medo e invoca Santo Agostinho: “Ele dizia que o homem só é feliz depois que morre. Se a pessoa está viva, tem instantes de felicidade, que é quando está dormindo.”

Florência Costa

 

Um cheiro de colômbia no ar

Não é nada fácil a vida das autoridades, policiais e outros integrantes dos poderes constituídos que resistem aos tentáculos do crime organizado no Espírito Santo: um monstro que há anos se infiltrou nas estruturas de todas as instituições e ameaça os corajosos que ousam enfrentá-lo. O clima de tensão entre os que ocupam postos-chave e optaram pelo combate aos grupos criminosos sempre foi intenso num Estado que amarga a violência dos pistoleiros, contratados pelos donos dos mais variados negócios ilícitos para chutar todas as pedras que estejam em seu caminho. Uma delas era o juiz Alexandre Martins de Castro Filho, que pagou com a vida a ousadia de cumprir sua missão. Depois de sua execução, a vida pessoal de muita gente praticamente acabou. Quem está na linha de frente dessa batalha – sob o risco de constar das listas dos marcados para morrer – não pode andar sem segurança, não combina encontros por telefone ou então usa códigos, não tem um minuto de paz quando está na rua, sempre observando quem passa ao lado. “Eu já não saía mais para barzinhos, restaurantes, como os cidadãos comuns daqui. Agora, depois que pegaram o Alexandre, o cuidado tem que ser redobrado. Minha vida está muito mais limitada. Espero que a gente consiga dar a volta por cima e acabar com esse clima”, observou uma pessoa que se sente ameaçada. Outro que está no front aceita conversar rapidamente com a equipe da ISTOÉ na rua mesmo, sob a proteção de dois seguranças fortemente armados, com pistolas e carabina.

Toda vez que uma pessoa se aproxima, os dois levam a mão à cintura, preparados para uma reação rápida. Um ambiente muito parecido com a Colômbia, país que visitei durante duas semanas no ano 2000. Lá, é comum políticos, integrantes de movimentos sociais, do Judiciário e do Executivo andarem de carros blindados e cercados por seguranças. Qualquer cochilo pode significar a morte. Mas os colombianos têm uma longa experiência, de quase 40 anos nesse quesito: amargam a violência política, com a existência de grupos paramilitares e guerrilheiros, hoje envolvidos com narcotraficantes. A extensão dos grupos criminosos nas estruturas dos poderes capixabas me fez lembrar também outro país, bem mais distante que a Colômbia: a Rússia, onde vivi entre 1991 e 1995, no momento em que a então URSS desmoronava e os grupos mafiosos russos ganhavam corpo invadindo boa parte das instituições. Mas nem tudo é só negativo. Pelo menos em Vitória, não se sente o clima de intranquilidade e insegurança total em que o morador de São Paulo e do Rio de Janeiro vivem, ameaçados cada vez mais pelas balas perdidas e tendo que andar com os vidros dos carros sempre fechados.

Florência Costa

“Vamos atacar a lavagem de dinheiro”
   
O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, considera que o governo começa a incomodar o crime organizado. O isolamento de Fernandinho Beira-Mar, o envio de tropas do Exército ao Rio de Janeiro, a adoção de novas regras para os presos perigosos e o reaparelhamento da Polícia Federal, que teve seu contingente aumentado em 70%, mostram uma nova postura do governo no combate ao crime, segundo o ministro.

ISTOÉ – A execução de dois juízes chocou a sociedade. O que o governo está fazendo contra o crime organizado?
Márcio Thomaz Bastos – Vejo essas trágicas mortes como uma tentativa de reação do crime organizado à escalada que o governo vem fazendo. O modo de evitar que tragédias como essas se repitam é prosseguir com uma política firme, como o combate à lavagem de dinheiro sujo, que é a causa final do crime. O caso do Espírito Santo está praticamente desvendado. A presença de um ex-coronel da PM como mandante mostra que havia mesmo no Estado uma infiltração em todos os setores da sociedade, que está sendo combatida com vigor.

ISTOÉ – O governo pretende ampliar o trabalho conjunto de segurança com os Estados?
Bastos – Nosso objetivo é implantar em todo o País um sistema único de segurança, com metas específicas a serem atingidas, como padronização do treinamento policial, valorização da carreira e reforço e reaparelhamento das polícias. Em 18 Estados, já estamos atuando de maneira praticamente conjunta.

ISTOÉ – O projeto que cria o regime disciplinar diferenciado
para os presos perigosos já é fruto da cooperação entre o governo e o Congresso?
Bastos – O texto final, que será aprovado nesta próxima semana, é resultado de amplas negociações e debates e atende ao que o País precisa. Ele tem duas mãos, beneficiando os presos de bom comportamento, que passam a ter progressão automática das suas penas, e punindo os criminosos perigosos. A verdade é que o criminoso rico, o traficante, o chefe de quadrilha, prefere ficar preso, pois da cadeia comandam seus negócios. Para esses o regime será de 360 dias em cela individual, com apenas duas horas por dia fora da cela. A idéia é isolar os cabeças do crime.

ISTOÉ – E a lavagem de dinheiro?
Bastos – Vamos criar o Departamento para Recuperação de Ativos Ilícitos, que será uma espécie de braço executivo do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O presidente Lula nos deu carta branca para que esse departamento faça um amplo trabalho na busca do dinheiro sujo, aqui e no exterior. Atacando a lavagem, chega-se no âmago do crime organizado, em seu estágio final.

Eduardo Hollanda