Pai dos medalhistas Esquiva e Yamaguchi Falcão, ex-lutador de vale-tudo quer abrir uma academia e treinar boxeadores para 2016

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MESTRE
Touro Moreno foi o primeiro treinador dos filhos

Conhecido como Touro Moreno, o ex-lutador de vale-tudo Adegard Câmara Florentino, 75 anos, bateu e apanhou muito na vida. Saiu de casa ainda criança e se tornou um folclórico pugilista cuja luta mais memorável foi um empate. Abandonou, em parte, a boemia para se casar e realizar um sonho: criar filhos que fossem campeões. Passou fome, morou na rua, improvisou um ringue no quintal de casa, mas nunca desistiu. Tamanha perseverança deu resultado. Dois dos seus 18 rebentos, Esquiva e Yamaguchi Falcão, foram, respectivamente, prata e bronze nos Jogos Olímpicos de Londres. Em entrevista à ISTOÉ, nos estúdios da Rede Record, em São Paulo, onde assistiu à final que valeu a prata para Esquiva, Touro Moreno conta que o próximo objetivo é ter uma academia para formar campeões para a Rio-2016.
 

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"Yamaguchi (à esq.), ultimamente, não está
respeitando mais minhas opiniões, mas
Esquiva ainda me ouve, é mais obediente"

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"No UFC eles não estão brigando nem três
minutos e a luta já acabou. Anderson Silva
mesmo está com um rosto limpinho"

Fotos: Fábio Vicentini; pedro dias / ag. istoé; Alexandre Cassiano / Agência O Globo

ISTOÉ

Quais são seus planos para o futuro, agora, com dois filhos medalhistas olímpicos? 

Touro Moreno

Tenho certeza que agora vou poder fazer um barraquinho melhor. E eu queria uma academia, para provar que sou treinador, para formar outros atletas que não sejam meus filhos. Eu sou treinador de boxe. Sei olhar para um menino e saber se ele leva jeito ou não. Queria ter academia para colocar uns quatro ou cinco boxeadores na Olimpíada do Rio de Janeiro. Os meus filhos já estão encaminhados. Não é para tirar menino de rua, que isso é papel do governo. Eu quero é formar campeões. Pode ter certeza que vocês verão mais filhos de Touro Moreno na Olimpíada do Rio. 

ISTOÉ

O que o sr. acha da possibilidade de Yamaguchi e Esquiva disputarem o UFC? 

Touro Moreno

Eu acho que eles vão para o UFC. Já temos um mais novo, o Thomas Edison, que está treinando o UFC. Agora, sobre os dois meninos mais velhos, a gente vai ver a proposta, o que vão oferecer para eles. E eu quero treiná-los para essa mudança. 

ISTOÉ

O sr. conversou com eles durante a Olimpíada? 

Touro Moreno

Eu só conversei com eles uma vez durante os Jogos. Na minha casa não tem telefone, nós usamos o orelhão que fica em frente. Mas antes de viajar, Esquiva veio me visitar e mostrou os vídeos das lutas dos adversários. Nós passamos a noite vendo os vídeos e eu dando dicas para ele. Yamaguchi, ultimamente, não está respeitando mais minhas opiniões, mas Esquiva ainda me ouve, é mais obediente. 

ISTOÉ

Mas não foi o sr. que pediu ao Yamaguchi para subir de categoria (de 75 kg para 81 kg)? 

Touro Moreno

Foi. Eu fiquei triste quando vi os dois lutando um contra o outro numa competição. Conversei com Yamaguchi, que é mais velho, mais experiente. Era mais fácil para ele se adaptar à subida de peso. O grande responsável por essas duas medalhas é Yamaguchi, que para não prejudicar o irmão aceitou subir de peso. 

ISTOÉ

E a Federação Brasileira de Boxe ajudou? 

Touro Moreno

Eles ajudaram muito. Os treinadores cubanos, todo mundo. Tem mais de 14 anos que os cubanos mandam no boxe brasileiro. O boxe brasileiro é mais cubano do que brasileiro. 

ISTOÉ

O sr. planejou fazer de seus filhos lutadores como o sr.? 

Touro Moreno

Eu não tinha condições de ensinar nada a eles. Sou de Resplendor, interior de Minas Gerais, não estudei. Eu teria que deixar os outros ensinar meus filhos. A única coisa que poderia passar para eles era o meu esporte, o que eu sempre soube fazer. Conheci a mãe deles quando ela trabalhava em um barzinho. Ela tinha 15 anos, coitadinha. De menor ainda. Mandei ela largar o trabalho e casar comigo para me dar dez filhos. Ela me deu onze. Eu escolhi ela para ser mãe dos meus lutadores, para fazer esses meninos campeões. Eu era muito brigão e boêmio. Os meninos me assentaram na vida. Eu me dediquei a eles. Yamaguchi e Esquiva são minha lavoura na vida. Eu sou analfabeto, eu não vou para a roça capinar. O que eu sei é lutar. E agora eles trouxeram essas medalhas para o Brasil. Não foi à toa. Olhe, até o nome dos meninos, eu já tinha planejado na minha cabeça.  

ISTOÉ

Por que o nome Yamaguchi? 

Touro Moreno

Era o nome de um amigo meu, professor de judô, que foi assassinado. Essa é uma ferida em que eu não gosto de mexer. A morte do Yamaguchi foi a mesma coisa que perder a perna direita e não ter uma muleta. Ele era meu melhor amigo, era a pessoa mais honesta que conheci. E eu falei para minha mulher: vamos ter um filho homem, que vai se chamar Yamaguchi. No ano seguinte meu filho nasceu e eu tomei seis litros de uísque para comemorar, sozinho. E ele não tomava banho com água normal. Eu dava banho nele com água de coco.  

ISTOÉ

E por que Esquiva? 

Touro Moreno

Para ele aprender a se esquivar dos golpes dos adversários. A esquiva é um movimento muito importante no boxe. Quando ele nasceu disseram que parecia com o Mike Tyson. E tem o Estivan, que é em homenagem ao campeão cubano Teófilo Stevenson. 

ISTOÉ

Os irmãos Falcão passaram dificuldade quando pequenos?  

Touro Moreno

Houve um momento em que nós fomos despejados de nossa casa em Vitória e tivemos de morar na rua. Eu estava desempregado, não lutava mais porque já estava ficando velho. Ninguém dava casa para morar, os parentes não ajudavam. Apareceu um juiz de direito. Ele me ajudou, pagando meu aluguel e alimentação durante um ano. O juiz me levou para Serra, deu um lote, onde todos nós estamos morando agora.  

ISTOÉ

Como eram os treinamentos que o sr. fazia com eles na infância? 

Touro Moreno

Eu fiz um ringue com bloco de cimento, e, como não tinha saco, eles batiam na bananeira. Eu fiz halteres de concreto. A alimentação era feijão, arroz, qualquer tipo de verdura e o angu, que eu não dispenso.  

ISTOÉ

Quando não apareciam adversários, como o sr. fazia para sustentar a família? 

Touro Moreno

Eu fiz de tudo, né? Até roubar eu roubei: mas só comida para dar na boca dos meus filhos. Pegava feijão, arroz, açúcar no supermercado. Eu e a mãe deles deixamos de comer várias vezes para nossos filhos terem alguma coisa que comer nos pratos. 

ISTOÉ

O Esquiva admite que, no período em que desistiu da carreira, chegou a vender drogas. Como foi lidar com essa situação? 

Touro Moreno

Não! Ele nunca mexeu com isso. Ele era amigo de quem mexia com isso. Eu o tirei dessas más companhias. No nosso bairro tem muita gente que mexe com isso. Eu o convenci a sair dessa vida e voltar a treinar no Rio de Janeiro. Filho meu nunca mexeu com essas coisas não. 

ISTOÉ

O sr. passou por muita dificuldade na infância? 

Touro Moreno

Tive pai e mãe, mas não fui criado por eles. Fui criado por madrinha e tia no Espírito Santo. Saí de casa com 8 anos, caí no mundo. Dos 8 aos 12, comprava marmitas para p… no puteiro, buscava a marmita e elas me davam o troco. Foi uma escola de vida para mim. Eu passei por tudo de ruim, o que prestou eu tirei como lição para a vida e passei para meus filhos. O que não prestou, eu reciclei. Até que me casei com 18 anos, fui para o Exército, no Rio de Janeiro, e tive o primeiro contato com o mundo das lutas. 

ISTOÉ

Como o sr. começou a treinar? 

Touro Moreno

Um tal de tenente Nunes me orientou. No interior, a gente amarrava um pano na mão para lutar como os boxeadores. Pedi para lutar, me deram as luvas, mas a primeira luta foi contra um peso-pesado, que me deu uma cacetada na testa, caí sentado. O treinador me disse que eu não servia para o boxe, mas me indicou para treinar com o pessoal do vale-tudo. Na Gávea tinha um programa de vale-tudo, telecatch. Daquela época, eu me lembro de ter apanhado de um professor do judô dos Gracie, Nilo Gutierrez. Ele me deu uma coça. Seis rounds de cinco. Mas empatei com ele, na primeira luta minha. Ele era uma fera. 

ISTOÉ

Qual foi a luta mais importante da sua carreira? 

Touro Moreno

Nos anos 60 lutei com um baiano, Valdemar Santana, que ganhou do Hélio Gracie. Essa luta foi empate, aconteceu em Vitória (ES). Foi ela que trouxe a fama que eu tenho. Foram três rounds de dez minutos cada. Naquela época, eu era muito mais pesado, mas, em compensação, Valdemar tinha 20 quilos a mais. Só ele bateu. Mas eu só perderia se houvesse desistência. O público é que não gostou muito, vaiou bastante, porque eu apanhava e não batia. No começo, havia mil pessoas e no final acabaram ficando umas duzentas. Eu fiquei ali igual galo de briga. Fiquei mais de 20 dias no hospital. Estraguei tudo, olho inchado, perdi dente.  

ISTOÉ

O vale-tudo de sua época era muito mais violento que o atual UFC? 

Touro Moreno

Você está brincando, né? Muito mais. Rapaz, podia cotovelada, chute na cara. Em pé, você podia chutar adversário no chão. Depois eu fui para o telecatch, que pagava mais, não apanhava, era só show. Hoje em dia eles não estão brigando nem três minutos e a luta já acabou. Anderson Silva mesmo está com um rosto limpinho. A gente lutava sem protetor de boca, sem coquilha, sem protetor nos pés. Nessa época, eu não tinha uma família. Morei 12 anos no táxi. 

ISTOÉ

O sr. não tinha casa? 

Touro Moreno

Eu só vivia em hotel e no táxi, para cima e para baixo. A minha mala na parte de trás. Eu vivia em boate, boate, boate (ri). Eu curtia muito a vida. Vou curtir muito mais agora, com os meninos, uma vida honesta e mais pura.  

ISTOÉ

Por que o sr. insiste em lutar aos 75 anos? 

Touro Moreno

Não luto para aparecer. Até desafiei o Éder Jofre, mas ele não quis. Quando me preparo para lutar eu estou cuidando de minha saúde. São três meses em que eu me alimento, tomo meus suplementos, levanto cedo para correr. Eu faço dez quilômetros por dia. Agora é difícil arranjar adversário para mim. Nocauteei, no ano passado, um quarentão. Ele caiu com um minuto e 40 segundos de luta. Eu bato muito duro ainda.