Quem foi rei não perde a majestade? A resposta os italianos vão dar em dezembro, quando está previsto o retorno de Vittorio Emanuele di Savoia, 65 anos, e de seu herdeiro natural Emanuele Filiberto, 30, à Itália. Os dois são respectivamente filho e neto do rei italiano deposto, Umberto II, morto em 18 de abril de 1983, em Cascais, no Estoril (Portugal). O exílio, apenas dos membros masculinos da família, vivido entre Portugal e Suíça, já dura 56 anos e está prestes a terminar. Eles pretendem desembarcar em grande estilo na cidade de Nápoles e querem ser recebidos pelo papa em Roma. A decisão de autorizar a volta dos herdeiros do trono italiano foi tomada pelo Parlamento no dia 15 de julho de 2002. Ninguém acredita que os herdeiros da Casa Savoia sejam uma ameaça à atual República italiana.

A expulsão da família real foi determinada no plebiscito de 2 de junho de 1946, quando os italianos foram às urnas escolher o regime de governo. O pleito aboliu a monarquia e elegeu a República. A realeza foi mandada para o exílio e os bens, como terras, palácios e parte das obras de arte, confiscados pelo Estado. O que tinha acontecido? A facção moderada do Partido Fascista afastou em julho de 1943 o ditador Benito Mussolini, depois de perceber que a malfadada idéia do Duce era entrar na Segunda Guerra Mundial alinhado à Alemanha nazista, o que iria levar o país ao abismo. O rei Vittorio Emanuele III mandou prender Mussolini e, um mês mais tarde, um comando nazista resgatou o ex-ditador. O “Duce” ainda fundaria a República Social da Itália em Salò, que duraria pouco mais de um ano. No entanto, em setembro do mesmo ano de 1943, o novo governo nomeado pelo rei assinou um armistício com os aliados. Aterrorizados pela fúria manifestada por Hitler quando soube da “reviravolta” do novo governo italiano, no dia seguinte, seu filho Umberto II e os membros da corte fugiram de Roma, ocupada pelos alemães. Todos foram buscar abrigo no colo dos aliados, em Brindisi, menos de dois meses depois do desembarque aliado na Sicília. Antes da fuga, “pelas dúvidas” o rei mandou guardar as jóias da coroa, avaliadas hoje em US$ 2 milhões, em mãos suíças.

Abandonada à própria sorte e órfã de governo, a população sentiu na pele a mudança de humor dos homens de Hitler, que, de defensores da península itálica, assumiram o papel de invasores. Começou assim a guerra civil na Itália, aquela parte da Segunda Guerra Mundial em que os italianos conviveram com a morte lado a lado. Os homens com idades entre os 16 e os 50 anos deviam se alistar nas novas “milícias fascistas” da República de Salò. Os antifascistas se alistaram com os “partigiani”, iniciando a guerra de guerrilha desde as montanhas. Por um ano e meio, o sangue correu solto. Em 28 de abril de 1945, Mussolini acabou preso e fuzilado pelos “partigiani”. “Meu irmão mais velho, Guy, era um “partigiano” e morreu em junho de 1944. Eu era pequeno, tinha oito anos e ficava escondido nos vilarejos. Mais tarde soube que, enquanto meu irmão morria pelo país, nosso rei fugia”, contou o engenheiro Giorgio Costa a ISTOÉ. Por ocasião do plebiscito, todas as vítimas italianas dos nazistas foram debitadas na conta do rei Vittorio Emanuele III. Seu filho, Umberto II, reinou poucos dias.

A traição de Vittorio Emanuele III causou vergonha à biografia de um monarca que sentou no trono antes da hora. Seu pai, Umberto I, foi assassinado por um anarquista em 1900. O novo soberano logo enfrentou graves crises políticas geradas por revoltas dos liberais, em meio a um grande desenvolvimento industrial. Mais tarde, o rei se viu envolvido em sérios problemas econômicos decorrentes do fim da Primeira Guerra Mundial. O terreno estava fértil para a ascensão do fascismo, com seus ideais nacionalistas. Sonhando com uma Itália colonialista, o rei Vittorio Emanuele III virou um fantoche de Mussolini, primeiro designado presidente do Conselho, depois senhor absoluto do Executivo. Na ocasião, o apoio ao líder fascista lhe rendeu popularidade local e os reinos da Etiópia e da Albânia, territórios conquistados pelas tropas fascistas em 1936 e 1939. Pouco antes de a guerra explodir, o rei deixou de vetar e assinou um conjunto de leis raciais. O gesto foi responsável pela deportação de 40 mil judeus italianos para os campos de extermínio nazistas. O pedido de desculpas “reais” aos judeus, por parte dos herdeiros ao trono, só chegou no mês passado.

A atitude do rei manchou o nome da dinastia Savoia, que unificou a Itália no século XIX. E depois da guerra, a família real passou maus e bons bocados. Mas a riqueza acumulada ao longo de mil anos lhe proporcionou uma “dolce vita” no exílio. As mulheres da família, ao contrário dos homens, nunca foram impedidas de viver na Itália. Elas são figurinhas fáceis nos desfiles dos estilistas mais badalados, nos matrimônios e nos funerais dos ricos e marcam presença nos chás beneficentes da sociedade européia. Os homens no exílio são hábeis nos negócios de armas, mas sofrem de “banzo”. Mesmo longe da bancarrota, a família tem fama de mesquinha. O brasileiro Fábio Arrais trabalhou por dois anos na Villa Hermance, de propriedade dos Savoia, em Genebra, na Suíça. Ele era empregado doméstico de Iris Doria, mãe de Marina di Savoia, e sogra de Vittorio Emanuele. Fabio Arrais, clandestino no país, ganhou na Justiça o direito de receber as horas extras trabalhadas no valor de 13 mil euros. Golpe e contra-golpe – Vittorio Emanuele tem no seu currículo a imperdoável mancha de ter se casado sem a autorização do rei. Fato grave, segundo os estatutos da monarquia. Tentando se antecipar a um possível veto dos membros da Consulta do Reino (órgão de 40 notáveis, fundado em 1955 pelo rei Umberto II, que rege os destinos e os princípios da Casa Savoia), o herdeiro dissolveu o colegiado há um ano. No dia 1º de outubro, como resposta a esse ato, os “senadores” sacaram da cartola o príncipe azul Amedeo d’Aosta, 59 anos, designando-o novo herdeiro dos Savoia. “Ele é descendente de Umberto Mãos Brancas, o primeiro Savoia, lá do ano 1000. E, mais do que o direito, ele tem o dever de continuar com a tradição da dinastia. Amedeo d’Aosta, casado com Claudia da França, pai de três filhos, fala cinco idiomas, é vinicultor e viajou muito, principalmente para a África, sendo o homem preparado para receber o cetro e a coroa italiana. No futuro, a Itália, assim como a Espanha, pode passar de República Parlamentarista para a Monarquia Parlamentarista. O que Vittorio Emanuele fez foi uma atitude arbitrária e contrária ao Código Civil italiano”, disse a ISTOÉ o presidente da União Monárquica Italiana, Gian Nicola Amoretti. A pinimba tem ingredientes para terminar numa suculenta pizza napolitana.

Vittorio Emanuele já corria atrás da majestade perdida. E de seu carro nas areias do deserto no Egito, onde disputava um rally, enviou esta mensagem divulgada pelo seu porta-voz: “Vittorio Emanuele e o filho voltam para a Itália como cidadãos comuns. Esperamos mais golpes. Os rebeldes são alguns velhotes, talvez dez no máximo. Se o bom Amedeo, cunhado em oitavo grau, quer tirar esta questão à prova, o faça logo. Mas esta é uma história antiga e sem nenhuma legitimidade.” A resposta veio a galope: o carro capotou nas dunas e o herdeiro, com fratura nas vértebras, está de cama na mansão de Genebra. A notícia também pegou de surpresa a mulher, Marina di Savoia, em meio às comprinhas. Ela já tinha encomendado ao estilista Gai Mattiolo um guarda-roupa de 40 peças novas, com 20% de desconto, para sua nova vida na Itália.