Quando a televisão mostrou as imagens do prisioneiro americano Patrick Miller, gaguejando aterrorizado, tentando explicar que estava ali cumprindo ordens e respondendo que só atiraria em iraquianos se fosse antes atacado, me veio imediatamente à cabeça minha experiência de 12 anos atrás. No dia 4 de março de 1991, eu estava no sul do Iraque, em uma sala de aula no primeiro andar da Universidade de Basra, sentado em frente à mesa do professor, cuja cadeira era ocupada por um oficial da Guarda Republicana, de aparência e gestos ameaçadores. A porta era guardada por um soldado armado com um fuzil Kalashnikov AK-47 e, em pé, ao lado do intimidante oficial, outro militar graduado traduzia para o inglês as perguntas que me eram dirigidas em árabe: O que você veio fazer aqui no Iraque? Quem deu permissão para você cruzar a fronteira? Você trabalha para os americanos? Você é espião? Você é espião dos americanos? Outros três oficiais da Guarda Republicana observavam a cena e faziam comentários em árabe acompanhados de sorrisos irônicos, quando minhas respostas eram traduzidas. Da janela vinha o som ritmado de rajadas de metralhadoras e os estrondos da artilharia.

Junto com William Waack – hoje na Globo e que, no andar térreo da universidade, aguardava com outros quatro jornalistas a sua vez de ser interrogado –, eu cobria para a Agência Estado a primeira guerra do Golfo, e estava há quase dois meses na região do conflito. Naquele momento, a guerra havia recém-terminado – o cessar fogo aconteceu no dia 28 de fevereiro –, os iraquianos haviam abandonado o Kuait e Saddam Hussein enfrentava duas rebeliões. Uma, no norte do país, dos curdos. A mais sangrenta delas acontecia ali em volta da universidade: a maioria xiita do sul do Iraque atacava a Guarda Republicana em Basra, Nassíria e Al Najaf enquanto esperava uma ajuda americana que nunca viria.

William e eu tínhamos entrado no Iraque de carro, dois dias antes, e, a uns 30 quilômetros de Basra, fomos presos por soldados das tropas regulares em retirada, que haviam instalado uma barreira na estrada. Antes de nos entregarem à Guarda Republicana, nos “limparam” de tudo o que tínhamos: câmeras, dinheiro e até o carro.

Até aquele momento, havíamos passado a maior parte da guerra em Riad, capital da Arábia Saudita e sede do comando das forças aliadas. Nada nos era permitido além de participar das entrevistas coletivas – os breefings –, iguais as que acontecem hoje em Doha. Nessas entrevistas, nos era detalhado o dia-a-dia da guerra. Quantas decolagens, quantas bombas, quais alvos haviam sido atingidos e a ressalva de que aquela era uma guerra limpa, cirúrgica, sem mortes. Com a aproximação do fim do conflito, eu e William resolvemos peitar as ameaças. Nos era dito, ou melhor ameaçado, que quem fosse encontrado fora do perímetro de Riad seria ou deportado ou eventualmente atingido por fogo amigo ou inimigo. Rumamos ao norte, em direção à Cidade do Kuait e, depois de incidentes que incluíram ameaças de prisão e travessia de campos minados, chegamos ao Kuait momentos depois do abandono das tropas iraquianas. E lá havia muitos mortos. Cenário de um resultado nada cirúrgico e que confirmava nossa impressão, de que em Riad ouvíamos muita mentira. Depois do Kuait fomos aos poços de petróleo de Rumailá, que, como hoje, haviam sido incendiados pelos iraquianos em fuga. Continuando em frente, entramos no Iraque e fomos presos.

No interrogatório naquela sala de aula, conseguimos convencer a Guarda Republicana de que éramos realmente zahafi brasilii – jornalistas brasileiros – e não espiões americanos. Mas não conseguimos convencê-los a nos libertar e voltar para o Kuait. E fomos levados presos para Bagdá num comboio militar com direito a emboscada de xiitas, troca de tiros de AK-47, tanques T-72, sem água nem comida. O pesadelo durou uma semana, até que fôssemos resgatados em Bagdá, onde estávamos presos, e guardados pela Mukhabarat, a polícia secreta de Saddam Hussein. A liberdade veio no dia 9 de março, quando chegamos a Al Rwaishid, na Jordânia, pelas mãos da Cruz Vermelha Internacional.

Boa sorte para Patrick Miller e seus companheiros de infortúnio.