As histórias de furto de crianças por mulheres cheias de cobiça são tão antigas quanto a humanidade. Aparecem dos relatos gregos aos livros sagrados de judeus e cristãos. No Antigo Testamento, a solução de uma disputa entre duas mulheres por um menino recém-nascido é símbolo da justiça do rei Salomão, considerado o pai da sabedoria. Segundo a narrativa, em uma mesma casa duas prostitutas deram à luz seus filhos com apenas três dias de diferença. Mas a última a ter o bebê o matou, por descuido, durante o sono, e, ao acordar, pegou a criança viva para si deixando a morta no berço da outra. A mãe da criança subtraída recorreu ao rei para que lhe devolvesse o filho. Diante dos argumentos das duas que afirmavam ser mães do menino, Salomão decidiu parti-lo ao meio e dar a metade a cada uma. A mulher que roubara a criança concordou com a decisão, já a mãe preferiu deixar o filho vivo, mesmo que longe dela. Salomão entendeu esse desprendimento como a verdadeira prova de amor. Foi o suficiente para que entregasse o menino à mãe verdadeira. Se aplicarmos a justiça de Salomão no caso do menino roubado em Brasília, em 1986, do colo da mãe, Maria Auxiliadora Braule Pinto, a Lia, o filho deveria lhe ser devolvido. No entanto, com toda humildade, Lia aceita deixar seu rebento com Vilma Martins Costa, a suposta raptora que o criou. A mãe biológica quer apenas o direito de ver o filho. Mas Vilma não está colaborando. Jayro Tapajós, o pai biológico, acusa Vilma de manipular o jovem. Ela alega fragilidade de saúde para evitar afastar-se dele.

Nem Salomão resolveria com tanta rapidez esse caso. Afinal, quem
seria entregue a Lia: seu filho Pedro Rosalino Braule Pinto, o Pedrinho,
ou Osvaldo Martins Borges Júnior, o Junão, criado pelo homem de
quem ele herdou o nome e pela mulher que lhe deu amor de mãe?
Quase 17 anos depois do desaparecimento de Pedrinho, uma terceira vontade entrou no jogo. O “incapaz” – como é classificada a criança
na primeira infância – se transformou em um rapagão cheio de vida
e capacidade de escolha. Quando a notícia de que era filho de Jayro
e Lia lhe foi dada, Osvaldo Jr. comemorou: teria um pai para substitui
r o que havia morrido recentemente e ganharia mais uma família. Mas
com o desenrolar do drama começa a perceber que viveu até agora
uma grande farsa. Quando fala no assunto, deixa claro o dilema
interno: “Não tô com cabeça pra pensar nesse trem agora não.”

Em casa, as três irmãs de criação de Osvaldo Jr. cuidam de reforçar
os laços e mantê-lo distante da polêmica. Afirmam que o irmão não
vai ter dúvidas em escolher com quem ficar. “O Júnior é cabeça feita, sabe que nós somos a verdadeira família dele”, assegura Patrícia, a terceira das quatro filhas de Vilma. Os amigos reforçam o discurso
de que está tudo bem. Rodrigo, companheiro desde a infância, diz
que o ex-vizinho só se preocupa com a saúde de Vilma, que tem
pressão alta. Como se não bastasse, os motivos para preocupação
de Osvaldo Jr. podem aumentar. Ele corre o risco de perder o nome,
uma vez que o registro feito por Vilma é falso. Esse é, aliás, o único
crime do qual ela é formalmente acusada pela polícia de Brasília.

Identidade – Ao encerrar o inquérito na quarta-feira 20, o delegado Hertz Andrade, coordenador da investigação concluiu que o crime de “subtração de incapaz” (art. 242 do Código Penal), prescreveu, resta apenas o crime de “registro falso” (art. 148). Mas o Ministério Público trabalha com a possibilidade de acusar Vilma de sequestro. A professora de psicologia da PUC-SP, Miriam Debieux Rosa, ressaltou que o rapaz
está sendo invadido por uma série de questões e precisará de tempo
para se reconstruir. “O nome é a maior referência de identidade que
se tem. Foi como ele se constituiu desde os primeiros meses de vida. Depois vem o pai e a mãe. De repente, todas as referências simbólicas foram perdidas.” A psicóloga ressalta ainda que a tendência é que
ele se apegue “às seguranças que ele tem com a mãe que o criou.
A relação com a família biológica ainda está por ser construída”.

E o constrangimento de Osvaldo Jr. pode ser maior ainda. A polícia
de Goiás começou a investigar a possibilidade de sua mãe adotiva
ter conseguido uma outra filha também por meios ilícitos. A denúncia
foi feita por Guiomar Costa, irmã de Vilma. A polícia já descobriu
que Roberta Jamilly, 21 anos, a mais nova, só foi registrada em
1997 em Goiânia, embora Vilma afirme que ela nasceu em 1981, na
cidade de Itaguari (GO). O padrasto de Vilma, Antônio da Silva, que sempre morou em Itaguari, garante que nunca viu a enteada grávida.
O paradeiro de Pedrinho só foi desvendado por causa de uma denúncia anônima, feita ao SOS criança de Brasília. A identidade da jovem que ajudou a encerrar a busca de Jayro e Lia apareceu depois; é neta de Osvaldo Borges, o pai adotivo de Pedrinho. Trata-se de Gabriela Azeredo Borges. Ela conta que a família sempre desconfiou que Júnior não era
filho de seu avô. “Ele não tem nenhum traço da nossa família”, afirma.

Mas a decisão de levar o caso à polícia só foi tomada depois que ouviu Vilma comentar com uma irmã que havia feito laqueadura de trompas há mais de 20 anos.
A curiosidade levou-a a buscar sites de desaparecidos, como a ONG Missing Kids.
“Dei de cara com a foto do pai do Júnior quando ele tinha 12 anos. Eles são iguais, têm até o mesmo defeito na orelha.”
Gabriela ajudou a encerrar um drama, mas abriu outro. A jovem, no entanto, não se arrepende. “Faria tudo outra vez.”

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