As imagens de soldados e armamentos parados na lama dos territórios ao sul de Bagdá, na semana passada, demonstravam de modo concreto as dificuldades das tropas americanas. Serviam também como simbolismo exemplar para os rumos da guerra movida pelo governo George W. Bush e seus aliados britânicos. Calculou-se, antes dos primeiros tiros, que a derrubada do regime de Saddam Hussein viria como resultado de uma corrida desenfreada de três divisões – com apoio aéreo e naval – rumo à capital do país. Passariam ao largo de cidades em júbilo, agradecidas pela democracia e prosperidade deixadas no rastro de tanques M-1A1 Abrams. Uma parada militar que teria em seu final uma difícil, mas gloriosa, batalha em frente aos palácios do ditador. Um roteiro hollywoodiano, filmado por centenas de câmeras de tevê. Marcaria também o crepúsculo de uma estratégia de guerra denominada “Doutrina Powell”, em homenagem ao general e secretário de Estado Colin Powell, que ajudou a escrevê-la, e promoveria a implantação definitiva de outro modus bélico a ser seguido pelos guerreiros americanos nestes tempos de potência única. Seria a consagração da “Doutrina Rumsfeld”, uma arte militar capaz de extrair a vitória com apenas um reduzido número de supergladiadores, munidos de alta tecnologia e de apoio aéreo que nem mesmo o deus Júpiter poderia igualar. “A mean lean machine” (uma máquina enxuta e má), no jargão em inglês. O problema é que os inimigos não concordaram com a idéia.

A guerra completava apenas seis dias, e entrou areia – ao pé da letra –
na máquina má. O primeiro objetivo conquistado deveria ser a cidade portuária de Umm Qasr. A tarefa caberia aos britânicos da brigada blindada. Mas não ocorreu o passeio na praia que se antecipava. Umm Qasar somente cairia no quarto dia de combates, com o porto – vital para o desembarque de suprimentos para sua população e a da cidade de Basra, mais ao norte – saturado de minas submersas. Foram até convocados golfinhos adestrados para o trabalho de limpeza. Em Basra,
a situação foi mais crítica. Depois de limpar o caminho para a Primeira Força Expedicionária de Marines, os britânicos da brigada de assalto aéreo tiveram de se contentar em sitiar esta cidade, sem conseguir entrar em definitivo pelo resto da semana. Ali, um milhão e duzentas  mil pessoas ficaram sem água, luz, mantimentos ou medicamentos, em meio ao fogo cruzado entre forças da coalizão e de paramilitares fiéis ao regime de Saddam. A população xiita era reconfortada a todo momento pelos alto-falantes da propaganda britânica informando que havia fartura de comida e bebida fora do cerco, e o repasto seria
servido assim que os milicianos fedayin (tropa irregular de elite iraquiana) saíssem daquelas freguesias. Esperava-se que o povo famélico se rebelasse contras seus algozes. O premiê britânico, Tony Blair, foi à Câmara dos Comuns, em Londres, garantir que a revolta civil havia começado. No que foi prontamente desmentido pela tevê Al-Jazira e pelo líder xiita no exílio iraniano. “Não tenho dúvida de que os americanos não previam a resistência que enfrentam no sul do Iraque, onde a população é xiita”, disse a ISTOÉ o coronel Timóteo Pereira Lima, analista e subcomandante do Centro de Estudos Estratégicos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).

Mais a noroeste, em Al Nassíria, as tropas de marines americanos foram pregadas ao solo pela força de tempestades, tanto de água, quanto de areia. Num clima bíblico, com visibilidade de menos de cinco metros, americanos, britânicos, iraquianos e qualquer outro que estivesse na região foram casatigados com a pior tormenta vista em mais de uma década. Nassíria, diga-se, é chamada hoje de “corredor da emboscada”, dado o número de ataques que os iraquianos promovem no local. A poderosa 3ª Divisão de Infantaria Mecanizada do Exército americano, que tinha chegado a 100 quilômetros de Bagdá em meros quatro dias, parou de repente. Em meio aos jatos de areia impelidos por ventos de até 100 quilômetros por hora, a 3ª Divisão tinha pela frente um rival portentoso: a Divisão Medina, considerada uma das melhores da guarda republicana de Saddam. Na retaguarda, comandos fedayin atacavam comboios de suprimento. Em sua correria espetacular, aqueles guerreiros haviam esquecido da limpeza por onde passavam e de manter alguém guardando o caminho de volta. “As resistências deixadas para trás pelos anglo-americanos ainda ameaçam as linhas de suprimento de combustível, munição, materiais de reposição, alimentos e a retirada de feridos”,
diz o coronel Pereira Lima.

A guerra, para Washington e Londres, estava longe de ser perdida, mas a vitória também não estava tão à mão quanto se pensara. O presidente George W. Bush e, depois, o premiê Tony Blair, em declaração conjunta depois de encontro em Camp David, reconheceram que a coisa vai longe. “A guerra durará o tempo que levarmos para vencer, não importa quão longo”, disse Bush. Mas Blair não conseguiu convencer Bush de que o Iraque pós-Saddam deva ser administrado pela ONU.
     
Imediatamente os generais de pijama que foram convocados para palpitar nas emissoras de televisão investiram contras a nova doutrina de Rumsfeld. O general Barry McCaffrey, ex-czar das drogas no governo Bill Clinton, ex-chefe do Comando Sul dos EUA, ex-comandante da 24ª Divisão Mecanizada de Infantaria na primeira guerra do Golfo, veterano de todos os conflitos envolvendo seu país desde a guerra do Vietnã, partiu para o ataque contra a estratégia atual do Departamento de Defesa. “Eu sou um medroso. Quando entro numa luta quero ter apólices de seguro, quero garantias de vitória. Não quero que a guerra seja equilibrada: quero esmagar o inimigo”, diz o general. Ele expressa de modo claro o que pregava a doutrina Powell, que exigia o emprego maciço de homens e armas, em quantidades muito superiores às reservas do inimigo, queria garantia de vitória, clareza de objetivos e estratégia segura para uma retirada. “Na primeira guerra do Golfo, nós entramos na briga com seis divisões, além de poderio aéreo e naval. Hoje, nós estamos com apenas três divisões”, disse o general, que foi imediatamente fuzilado pelo secretário Rumsfeld e seus generais. McCaffrey não se intimidou. “Acho que esta guerra foi planejada em cima de muitas suposições. Supunha-se que, por causa do caráter brutal do regime de Saddam, iríamos ser recebidos de braços abertos pela população. Supunha-se que não encontraríamos resistências até chegar a Bagdá. Supunha-se que os iraquianos iriam se entregar assim que vissem qualquer uniforme estrangeiro. Supunha-se que a liderança iraquiana fosse desmilinguir-se em pouco tempo e que o país ficaria sem comando. Só que nada disso aconteceu”, disse.

Os fatos mostram que ele está certo. Os iraquianos estão defendendo não o regime de Saddam Hussein, mas seu país invadido. Nunca se considerou com seriedade a tenacidade dos soldados iraquianos.
Os fedayin apareceram como se fossem uma surpresa para o alto comando. Estão fazendo guerrilha em toda parte, inclusive engajando as tropas em combates urbanos, antes mesmo do grand finale em
Bagdá. O regime parece manter-se no comando. Pelo menos é o que
se vê na televisão iraquiana, que os aliados não conseguiram tirar
do ar, permitindo que o restante do mundo visse a teimosia dos donos
da casa em manter o poder.

Donald Rumsfeld não dá o braço a torcer publicamente, ao ver sua doutrina afundar na areia movediça do Iraque. Mas a prova de que ele já admite o erro é que a 4ª Divisão de Infantaria Mecanizada, a
mais hi-tech dos EUA, com mais de 30 mil soldados, está se preparando para pousar no aeroporto tomado por outro grupo de reforços, os mil pára-quedistas da 173ª brigada. Da Louisiana, Texas e Carolina do
Norte estão seguindo novas hordas, que devem compor, pelo menos,
mais uma divisão. Só que vai demorar no mínimo mais um mês para
que os primeiros a chegar tenham condições de entrar em combate.
Até lá, os fedayin vão continuar seguindo a máxima do conde Von
Moltke (chefe do Estado-Maior prussiano): “Se o inimigo tem apenas
duas alternativas, ele optará pela terceira.”


Bioterrorismo

As forças aliadas não encontraram nenhum arsenal de armas
químicas e biológicas no Iraque, mas para o microbiologista
alemão Wolfgang Klietmann, consultor do Departamento de
Defesa dos EUA, todos os países deveriam se preparar para
eventuais ataques. “Basta um ataque nos EUA para que a varíola chegue no Brasil em 11 horas de avião”, diz.

ISTOÉ – Os EUA estão preparados para atentados bioterroristas?
Wolfgang Klietmann – Os principais agentes biológicos usados
hoje em ataques bioterroristas são varíola, antraz e tularemia,
nessa ordem. Os EUA continuaram produzindo vacinas contra varíola, só que em pequenas quantidades. O problema é que essa vacina causa efeitos colaterais, como doenças neurológicas, encefalite e polineurite. Devido a esses efeitos, Washington enfrentou resistência popular contra a vacinação. Hoje é praticamente impossível um controle total desses ataques.

Liana Melo

Paranóia

O governo americano lançou um manual de sobrevivência contra
o terrorismo em seu site oficial (www.ready.gov). “Não fique com medo, se prepare. A ameaça de ataque é bastante provável”, diz o manual. “Se houver uma explosão e você estiver em local de trabalho, entre embaixo da mesa. Se o seu corpo começar a pegar fogo, não corra. Pare, se jogue no chão e saia rolando”, continua.
O governo ensina ainda como agir em situações de ataque com
armas químicas, biológicas e em casos de explosão comum ou
nuclear. “Não volte para um prédio pegando fogo. Se houver tempo, saia com sua mala de primeiros socorros”, recomenda. Outro lembrete curioso: “Tenha sempre moedas à mão, você pode precisar ligar para o número de emergência.”

Marcos Pernambuco