Sebastião Sousa, 40 anos, dá aula de história na escolinha do acanhado município de Boqueirão do Piauí, no sertão piauiense. Por lá, reclamação é o que não falta. Nem o quadro-negro escapa. “O giz não pega”, diz ele. Não é só: as carteiras escolares estão quebradas e muitas vezes os alunos ficam sem merenda. O dinheiro que falta para resolver os problemas da escola sobra numa portentosa conta, a dos desvios de verba do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental, o Fundef. Boa parte do bilionário montante que o governo federal repassa a Estados e municípios – só no ano passado, foram R$ 32,7 bilhões – acaba indo parar em outros destinos. Muitas vezes, no bolso de políticos corruptos. Dez anos após a criação do fundo, o Ministério da Educação até hoje não tem nenhum mecanismo destinado a fiscalizar a aplicação do dinheiro.

Para fiscalizar a destinação das verbas do Fundef, a Controladoria Geral da União sorteia municípios todos os meses e manda fiscais conferirem como os prefeitos utilizam os recursos. O resultado tem sido desastroso. Ao longo de 2005, os fiscais percorreram 51 municípios. Em mais da metade, encontraram desvio das verbas do Fundef e evidências de fraudes. Em 78,4%, havia irregularidades em licitações. Por lei, o dinheiro do fundo deve ser usado para reforma de escolas, compra de materiais didáticos, transporte e merenda escolar, pagamento e formação de professores de primeira à oitava série. Na prática, a teoria é outra.

O município piauiense de Boqueirão, aquele no qual o professor Sebastião leciona em condições precárias, é um dos que figuram no mapa dos desvios. Quando era prefeito, Raimundo Nonato Soares contratou uma empresa que ele mesmo havia fundado, e que levava seu nome, para realizar obras. Tudo com verba do Fundef e sem licitação. Não satisfeito, usou dinheiro do fundo para pagar o salário dele e do vice-prefeito. Foi flagrado e acabou processado pelo Ministério Público Federal. “O recurso foi para todas as finalidades possíveis, menos para a educação”, acusou o MP. Em Regeneração, também no Piauí, a prefeitura recebeu R$ 1,7 milhão entre 1998 e 2000. Nunca prestou contas. Questionado, o ex-prefeito Eduardo Piauilino apresentou notas de despesas fictícias.

No município baiano de Muquém de São Francisco, os fiscais descobriram que R$ 37,7 mil do Fundef foram para a conta de um posto de gasolina do primo do secretário de Transportes. Cursos de capacitação para professores constavam das prestações de contas, mas nunca existiram. E notas fiscais falsificadas foram usadas para justificar saques em espécie da conta em que a prefeitura recebia a verba. Ainda na Bahia, na pequenina Piripá, de 16 mil habitantes, foram descobertas 22 escolas fantasmas. Dos casos conhecidos, alguns se tornaram folclóricos, como o da Prefeitura de São Francisco do Conde, região metropolitana de Salvador, que pagou R$ 629 mil por um carregamento de material didático que incluía 4,3 milhões de unidades de elástico de amarrar dinheiro. No histórico das roubalheiras tem até tragédia. Em 2003, no município de Satuba, Alagoas, o professor Paulo Henrique Bandeira denunciou desvio de verba do fundo e acabou assassinado.

Além dos sorteios da CGU, os escândalos são descobertos a partir de
denúncias. Mas, ainda assim, o que se conhece das fraudes é infinitamente pequeno em relação ao volume de recursos. Hoje, a responsabilidade pela fiscalização esbarra num jogo de empurra. O MEC repete que não tem atribuição
de averiguar como as prefeituras gastam o dinheiro. Sustenta que a tarefa cabe
ao Tribunal de Contas da União (TCU), que diz que a incumbência é dos tribunais
de contas municipais e estaduais.

O Ministério Público Federal tem cobrado providências do governo federal. Quer um mecanismo eficiente de controle. Quando era controlador-geral da União, o ministro Waldir Pires, hoje na Defesa, admitiu em ofício enviado ao então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, que o MEC deveria controlar a farra. “A gestão de qualquer atividade, plano ou programa compreende o exercício do controle e da fiscalização sobre sua execução”, escreveu ele, em julho de 2004. Naquele tempo, Pires informou que cobrara providências ao colega da Educação, Tarso Genro. Quase dois anos depois, o MP voltou a exortar o MEC. Acabou de receber, em ofício, a resposta de sempre: que a tarefa de fiscalizar não cabe ao Ministério. O ralo do Fundef continua, assim, engolindo verbas.

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