No dia 6 de fevereiro de 1934, quando a ascensão de Adolf Hitler ao poder em Berlim mal completara seu primeiro aniversário, grupos da extrema-direita francesa puseram suas milícias nas ruas de Paris, numa perigosa ameaça à democracia parlamentar da III República. O estopim foi o affair Stavisky, um escândalo financeiro que terminou com a misteriosa morte de Alexander Stavisky, um especulador escroque protegido por figurões do governo. A capital francesa virou uma praça de guerra, com uma turba furiosa investindo contra policiais nas cercanias do Palais Bourbon, sede da Assembléia Nacional (Parlamento), exigindo sua dissolução. Quase 20 pessoas morreram e a ordem foi restabelecida a muito custo; por pouco a República não sucumbiu a um golpe de Estado. O choque provocado por aquela balbúrdia subversiva foi tão dramático que socialistas e comunistas, que até então viviam às turras, compreenderam o perigo de o desastre da Alemanha se repetir na França se eles não unissem suas forças. Nos dias que se seguiram, forjou-se nas ruas e nas fábricas uma unidade de ação para combater o fascismo. Foi o embrião do Front Populaire, coalizão política de comunistas, socialistas e radicais que dois anos depois ganharia as eleições parlamentares e formaria o primeiro governo de esquerda da França.

Quase 70 anos depois, o susto provocado pela ida ao segundo turno das eleições presidenciais de Jean-Marie Le Pen, da ultradireitista Frente Nacional, acabou revivendo o espírito do Front Populaire, desta vez sob a forma de uma “frente republicana” contra a ameaça fascista (ou neofascista, já que Le Pen, apesar da virulência verbal, até agora respeitou as regras do jogo democrático, ao contrário de seus antecessores). Desta vez, contudo, as esquerdas não tiveram opção senão tapar o nariz e aliar-se ao candidato da direita moderada, o presidente Jacques Chirac, uma vez que o primeiro-ministro socialista, Lionel Jospin, foi eliminado da disputa por Le Pen. O temor despertado pela Frente Nacional acordou o eleitorado de esquerda, que foi às ruas protestar contra o avanço da xenofobia nas maiores manifestações desde maio de 1968 e votou maciçamente em Chirac. Assim, no domingo 5, no segundo turno das eleições presidenciais, o presidente foi reeleito com uma acachapante maioria de 82,2% dos votos, contra 17,7% de Le Pen. E a abstenção, que atingiu 28% do eleitorado no primeiro turno, caiu para 20% no segundo.

Mas o espírito de unidade nacional se desfez no mesmo momento em que se anunciavam os resultados eleitorais. Agora, os cidadãos da esquerda e da direita moderada irão às armas, mas formarão batalhões distintos, para lutar em campos adversários na próxima batalha, as eleições parlamentares de 9 e 16 de junho. A principal tarefa do novo primeiro-ministro, o senador liberal Jean-Pierre Raffarin, 53 anos, é justamente conduzir o Estado-Maior chiracquiano para a vitória nas eleições, livrando o presidente do fardo político dos últimos cinco anos, a “coabitação”, ou seja, um presidente de direita e um premiê de esquerda. Já o Partido Socialista, agora liderado por François Hollande, pretende reconstruir a coalizão com comunistas, verdes e radicais, para forçar Chirac a uma segunda coabitação. O confronto já começou e as pesquisas, apesar de pouco confiáveis na França, dão 48% aos partidos de esquerda e 41% ao campo chiracquiano.

O terremoto Le Pen trouxe de volta à França a clássica polarização esquerda x direita, nascida, aliás, com a Revolução Francesa de 1789, e tantas vezes apressadamente sepultada por teóricos de gabinete. O presidente Chirac, por exemplo, deixou claro que a segurança pública será a prioridade neste governo de transição. O principal indício disso foi a nomeação de Nicolas Sarkozy para o cargo de ministro do Interior, Segurança Interna e Liberdades Públicas. Sarkozy, que pertence ao Reunião pela República (RPR, o mesmo de Chirac), é tido como um “duro” e chegou a ser cogitado para o cargo de primeiro-ministro. Preterido pelo moderado Raffarin, Sarkozy, contudo, será o “número 2” do governo, posição informal ocupada, em tempos normais, pelo ministro da Economia. O tema da (in) segurança pública, caro aos partidos de direita, foi mote tanto de Chirac como de Le Pen na campanha eleitoral.

Volta às origens – Enquanto isso, o Partido Socialista, acusado de se deslocar tanto ao centro do espectro político que se tornou praticamente indistinguível de seus adversários conservadores, resolveu voltar às origens. O programa eleitoral do PS – “Pelo progresso, rumo à esquerda” – deixa de lado temas caros aos herdeiros de François Mitterrand, como a integração européia, e coloca ênfase na criação de empregos e na rejeição à privatização de serviços públicos. “Não é um programa mais ou menos de esquerda, ele é claramente de esquerda e visa responder às expectativas das classes populares, que têm a impressão de que a França melhorou, mas não para eles”, afirmou Martiny Aubry, ex-ministra de Assuntos Sociais. Ironicamente, o ex-premiê Lionel Jospin era um crítico da “Terceira Via”, a política de adaptação da social-democracia européia ao discurso da globalização liderada pelo britânico Tony Blair e pelo alemão Gerard Schröder. Mas acabou fazendo uma campanha morna e despolitizada, “Eu sou de esquerda, mas meu programa não é”, chegou a declarar Jospin. Enfastiados, os eleitores dos socialistas em protesto votaram na extrema-esquerda ou simplesmente não se deram ao trabalho de votar. Agora, esperam poder manter o controle do Palais Bourbon e do Matignon (sede do governo).