Desde que o escândalo do mensalão afastou do governo os homens historicamente mais próximos de Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, ocupou o espaço de conselheiro íntimo do presidente. Atuando como exímio bombeiro do Planalto, apagou tantas chamas que acabou chamuscado. Hoje é visto com desconfiança por parte da oposição, que o acusa de extrapolar o papel de ministro e fazer valer a experiência de advogado criminalista para proteger autoridades envolvidas em falcatruas. Na terça-feira 30, Thomaz Bastos recebeu ISTOÉ em seu gabinete. Com serenidade, rebateu uma a uma as acusações e depois de quase duas horas de conversa revelou: “Já avisei ao presidente que em dezembro deixo o cargo, ainda que haja um segundo mandato.”

A decisão de deixar o governo se contrapõe ao entusiasmo com que o ministro analisa a própria gestão. Thomaz Bastos parece estar em uma tribuna quando fala do combate ao crime organizado, da reforma do Judiciário, do enfrentamento dos cartéis e de uma política de segurança pública que privilegia a ação integrada das diversas polícias do Brasil e do mundo. Aos 72 anos, o experiente advogado planeja simplesmente voltar para casa. “Tenho dois netos e quero mais contato com eles.”

ISTOÉ – Há uma pressão sobre o ministro da Justiça. A que o sr. credita isso?
Márcio Thomaz Bastos –
Tenho ciência de que contrariei muitos interesses, com a ação da Polícia Federal, da Secretaria de Assuntos Econômicos. Por outro lado, há uma disputa política muito séria. Naquela ocasião em que indiquei um advogado para o ministro Palocci, houve uma tentativa de me derrubar do cargo.

ISTOÉ – É correto um ministro da Justiça indicar advogados para outros
membros do governo acusados de diversos crimes?
Thomaz Bastos –
Indiquei e continuarei indicando. A Comissão de Ética Pública disse peremptoriamente que não houve nenhuma transgressão ética no comportamento do ministro.

ISTOÉ – Esse não é o caso da mulher de César. Ou seja, não basta ser
honesta, é preciso provar.
Thomaz Bastos –
Quando vim para cá, tomei cautelas que não sei se alguém
já tomou anteriormente. Entreguei meu patrimônio para um banco administrar.
Não interfiro em nada. Não compro, não vendo nem alugo. Por outro lado, me
desfiz das cotas que tinha em um escritório de advogacia. Queimei todas as
pontes com minha vida anterior. Não queria nada que me embaraçasse, que
me criasse conflito de interesses.

ISTOÉ – O sr. falou em interesses contrariados. Quais são?
Thomaz Bastos –
Contrariei todos os interesses possíveis, inclusive de pessoas ligadas a mim. Briguei com muita gente e muitos ficaram magoados comigo, até instituições caras como a OAB, por exemplo. Mas segui o objetivo de criar instituições confiáveis no Brasil, pela sua independência e forma republicana de agir. Acho que se conseguirmos manter essas instituições durante alguns anos livres de interferência política chegaremos a um ponto que não tem mais volta.

ISTOÉ – A PF e até o MP estão livres de interferências políticas?
Thomaz Bastos –
Embora não haja uma vinculação do MP com o Ministério da Justiça, fizemos uma aposta na independência dele. Nomeamos dois procuradores-gerais e tivemos o cuidado de escolher o mais votado pela classe. Com isso, o MP melhorou muito e passou a investigar tudo, inclusive o governo e pessoas ligadas ao governo. Assim como a PF. Hoje, pessoas que se julgavam inatingíveis são investigadas. O chamado mensalão só foi efetivamente apurado pela ação da PF. Quem descobriu a famosa lista do Banco Rural foi a Polícia Federal, depois de um trabalho de inteligência cuidadoso e eficiente. Hoje, a PF age com impessoalidade. Nos últimos três anos foram quase 300 operações e mais de três mil presos.

ISTOÉ – Não há abusos em determinadas operações?
Thomaz Bastos –
São todas operações cuidadosas, fruto de um trabalho de inteligência, articuladas com outras polícias, inclusive de outros países. Nessas operações não houve a necessidade de nenhum tiro. Agora mesmo, foi feita uma operação chamada Oceano Gêmeos, com o apoio de polícias de todo o mundo, que desmantelou uma organização que punha na cidade de São Paulo 20 toneladas de cocaína por mês. Se a PF trabalhar assim por oito, 12 anos, vai adquirir uma rotina de impessoalidade que não tem volta.

ISTOÉ – Há muito roubo nesse governo?
Thomaz Bastos –
Tudo está sendo investigado e apresentado com absoluta transparência para a sociedade.

ISTOÉ – Mas na semana passada o sr. esteve reunido com o banqueiro Daniel Dantas, um investigado pela PF que estava prestes a depor numa CPI.
Thomaz Bastos –
Estive. Tinha curiosidade em conhecer pessoalmente Daniel Dantas. Não foi um encontro escondido e disse a ele que as investigações continuariam sem nenhuma mudança de rumo.

ISTOÉ – O sr. destaca muito as ações de inteligência e a integração das
polícias. A ação do PCC em São Paulo não poderia ser evitada?
Thomaz Bastos –
Acho que sim. O ex-secretário de Assuntos Penitenciários de
São Paulo já falou sobre isso. Acho que a polícia paulista tem feito um grande trabalho. Tem erros, é claro que tem, assim como há carências. Mas não é o momento de remoer isso.

ISTOÉ – Na crise do PCC, o governo paulista
o acusou de usar o caso eleitoralmente, ao
oferecer ajuda da Guarda Nacional.
Thomaz Bastos –
É um grande risco tentar fazer dessa tragédia uma disputa política. Se perderia a oportunidade de discutir exatamente o que aconteceu para evitar que aconteça de novo. A Guarda Nacional é uma força importante, formada por policiais de todos os Estados que fazem cursos na academia de Polícia Federal e que são deslocados para ajudar. Agora mesmo estamos mandando um contingente para Mato Grosso do Sul. A formação da Guarda Nacional em parceria com os governos estaduais é um grande avanço na política de segurança pública.

ISTOÉ – Estamos vulneráveis para que atos como os praticados pelo PCC se repitam?
Thomaz Bastos –
Acredito que o setor de inteligência esteja muito mais atento e estamos enviando em regime de comodato para São Paulo um aparelho de última geração que importamos dos EUA para ajudar a prevenir essas coisas.

ISTOÉ – Um supergrampo?
Thomaz Bastos –
Prefiro chamar de aparelho de inteligência. Além disso, estamos inaugurando o primeiro presídio federal, que poderá ajudar a acabar com as organizações que agem nas cadeias. Os agentes penitenciários serão bem remunerados, estão muito bem treinados e os presos ficarão em isolamento completo, até o banho de sol será individual.

ISTOÉ – Se o plebiscito das armas tivesse um resultado diferente, coisas
como as ocorridas em São Paulo seriam evitadas?
Thomaz Bastos –
Acho que não, mas preferia que o resultado fosse outro, muito embora o estatuto de desarmamento tenha cumprido seu papel. Houve economia até no sistema de saúde, com a diminuição de feridos com armas de fogo.

ISTOÉ – O Brasil ainda é uma grande lavanderia de dinheiro ilegal?
Thomaz Bastos –
Criamos um departamento só para combater a lavagem de dinheiro, que faz um trabalho enorme, inclusive de articulação internacional. Em 1998, no Brasil houve dois inquéritos sobre lavagem de dinheiro. Hoje, temos mais de 800. Está se criando uma cultura de combate à lavagem de dinheiro. Esse é um trabalho importante, que cria condições para uma ação conjunta com vários órgãos, vários níveis de poder e vários países. Até o fim do ano esperamos ter fechado parcerias com 50 países