Ex-ministro das Finanças, José Ángel Gurría defende união com o Brasil e diz que a receita para o caos social é simples: basta de crises

O país está às vésperas de uma eleição. A inflação está controlada a doses cavalares de juros altos. A moeda, desvalorizada recentemente, tenta encontrar seu patamar ideal. “Exportar ou morrer” é o bordão corrente. Um oposicionista está prestes a assumir o comando da nação. O vaivém político causa arrepios na comunidade financeira internacional. Um cenário do Brasil atual? Ou do México de dois anos e pouco atrás? De ambos, diria o ex-ministro das Finanças mexicano (entre 1998 e 2000), José Ángel Gurría. “O Brasil vive hoje nossa agenda de dois anos atrás”, afirma o economista, que antes de assumir o timão da economia mexicana foi titular das pastas de Relações Exteriores e de Comércio, sempre no governo de Ernesto Zedillo (1994-2000).

Entusiasta dos acordos de livre comércio, Gurría defende uma união comercial Mercosul-México. “Ficaríamos mais fortes”, diz, com a experiência de ter ajudado a conduzir o ingresso do país no Tratado de Livre Comércio da América do Norte, que reúne México, Estados Unidos e Canadá (Nafta). A criação da área livre originou um fenômeno de exportações no México. Em uma década, o país quadruplicou o volume de seu comércio exterior. Cresceu durante cinco anos a taxas superiores a 5%, logo após o colapso de 1994. E, pela primeira vez em décadas, a economia mexicana, em 2001, superou a brasileira em tamanho (muito, é verdade, graças à desvalorização do real).

Ex-negociador da dívida mexicana entre 1982 e 1990, Gurría acredita que o Brasil vai seguir o mesmo caminho do México no médio prazo e, ao contrário de alguns bancos estrangeiros, recomenda o investimento brasileiro. “Não há razões para tirar o dinheiro do Brasil para colocar no México, como estão sugerindo”, afirma. Seguindo como um aluno dedicadíssimo a cartilha neoliberal, o país enche os olhos dos investidores. As três principais classificadoras de risco do mundo hoje dão sinal verde aos dólares que rumam para território mexicano. Em termos sociais, no entanto, o país nada evoluiu. Em entrevista a ISTOÉ por telefone, de sua casa na Cidade do México, Gurría dá sua (simples) receita para reverter o quadro: “Basta de crises.” No mês que vem, o economista estará no Brasil para participar como destaque de um evento do setor bancário. Em suas palestras, atividade que combina com a rotina de consultor de organismos internacionais, Gurría dirá mais ou menos o que segue:

ISTOÉ – O PIB do México superou recentemente o do Brasil. O que levou a isso?
Gurría

Foi uma combinação de diversos fatores. O primeiro e mais importante é uma questão puramente aritmética. O peso mexicano está muito forte em relação ao dólar nos últimos dois anos. Enquanto isso, o real caiu de uma cotação de um para um no início de 1999 para R$ 2,40 hoje. A expressão dos valores em dólares, naturalmente, causa uma distorção que não reflete a capacidade produtiva do País. Para mim, pessoalmente, e acredito que esta é a opinião dos economistas sérios da América Latina, a economia brasileira, do ponto de vista da capacidade de produção, é a maior do continente. Outro fator é o que México passou por um ciclo de crescimento forte entre 1996 e 2000. Em média, o país cresceu mais de 5% ao ano. E o último fator são as exportações, um fenômeno dos últimos dez anos. O México exporta cerca de US$ 180 bilhões ao ano, ou 2,5 a 3 vezes o valor das vendas externas brasileiras. As nossas exportações quadruplicaram com o Nafta e com todas as outras ligações comerciais que o México tem – União Européia, Israel e todos os países da América Latina, com exceção do Brasil.

ISTOÉ – Quais foram os efeitos reais dos acordos comerciais assinados pelo México?
Gurría

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Houve uma explosão de exportações. Eu posso dizer que nosso problema econômico de 1994, que chamam de efeito tequila, não teria sido superado tão rapidamente sem os acordos de livre comércio. As exportações foram absolutamente fundamentais para a recuperação da economia mexicana.

ISTOÉ – Por que o peso mexicano se mantém forte e o real não?
Gurría

Com a crise, o México ajustou seu câmbio, coisa que o Brasil fez mais tarde, em 1999. Eu acredito que todos os países têm a convicção de que o câmbio livre é muito mais flexível para economias com grande capacidade de exportação. Hoje vivemos uma situação mais lógica e há mais facilidade, nos dois países, de reação a acontecimentos do Exterior. Acredito que os dois países estão melhores com o novo sistema de flutuação livre. Mas o peso está mais forte, pois o nosso mercado está recebendo muitos fluxos de capital. O mercado não se fechou para o México quando veio a crise argentina, como ocorreu em muitos países. Hoje, o México tem “investment grade” (uma espécie de sinal de confiança plena do mercado financeiro internacional no país) das três agências classificadoras de risco, Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch. Isso ajuda muito. Há algum tempo, acreditava-se que a fortaleza do peso era garantida pelos juros na casa dos 20%. Hoje a situação é diversa. Os juros estão abaixo de 6%, com uma projeção de inflação anual de 4,5%.

ISTOÉ – Qual é o segredo?
Gurría

Nós fizemos a mesma coisa que o Armínio Fraga (presidente do Banco Central do Brasil) está fazendo. O México, com inflação de um dígito, manteve juros reais altíssimos durante dois anos. Os juros começaram a cair assim que o mercado se convenceu de que a queda da inflação era estrutural, que o governo estava comprometido com a disciplina fiscal e a mudança de presidente aconteceu de forma ordenada, mesmo com a mudança de partido. Havia o medo, pois a cada seis anos, em todas as eleições, tínhamos uma crise econômica. Foi assim durante 30 anos. Agora se viu que a passagem de poder foi institucional. E hoje o México não tem problemas de dívida, nem interna nem externa. O governo de Zedillo fez muitos refinanciamentos. Pagou US$ 3 bilhões antes de encerrar o mandato. A dívida externa do México representa menos que 50% da exportação total do país.

ISTOÉ – O que falta para o Brasil trilhar o mesmo caminho?
Gurría

O Brasil vive hoje nossa agenda de dois anos atrás. São fatores muito objetivos. No México, o mercado desejava ver o que aconteceria com o processo eleitoral. E foi tudo bem. Os indicadores eram muito positivos. Tudo o que faltava era a confiança de que não haveria uma crise com a mudança no governo. Como não houve, os juros começaram a cair, mesmo com uma política monetária dura. Eu acredito que o Brasil está no mesmo processo, o País tem uma estrutura de gerenciamento financeiro e fiscal magnífica. Com Pedro Malan e Armínio Fraga. Pouco a pouco, Fraga poderá relaxar a política monetária. Se a inflação tiver uma queda expressiva, os juros seguirão o mesmo caminho.

ISTOÉ – As eleições no Brasil já estão causando intranquilidade no mercado financeiro, principalmente com a perspectiva da eleição do oposicionista Lula. O sr. acredita em algum tipo de ruptura no relacionamento do País com a comunidade financeira internacional?
Gurría

Não, não acredito nunca numa ruptura. Sempre acredito que o Brasil vai ser um grande sucesso. O Brasil faz suas coisas bem. A flutuação do câmbio em 1999 foi o movimento de desvalorização mais brilhante, mais sem traumas da história. Foi quase mágico. Sem inflação, sem repercussão nos preços, nos salários. Estamos no período justamente posterior à adoção desse câmbio, que é fundamental. Ainda há um processo de assimilação desse novo regime cambial. E eleições causam turbulências em todos os países, sempre. Principalmente quando a figura a ser substituída é tão predominante como a de Fernando Henrique Cardoso. O processo eleitoral, tenho certeza, vai terminar bem. As instituições brasileiras são fortes.

ISTOÉ – Dentro do processo de avaliação dos bancos de investimentos com relação às eleições brasileiras, o Goldman Sachs sugeriu que os investidores em telecomunicações saíssem do Brasil para aplicar no México. O sr. concorda com essa postura?
Gurría

Eu acredito que investir nos dois países é muito bom. Não acredito que haja razão para alguém sugerir que se saia de um para investir no outro. Os setores de telecomunicações são muito dinâmicos, os mercados são muito grandes. Tenho sempre muita confiança e muita fé no futuro do Brasil. As recomendações dos bancos variam de acordo com a conjuntura. Cada dia são de um jeito. No México, a Standard & Poor’s e a Fitch esperaram dois anos para dar seu aval, o “investment grade”. Havia dúvidas sobre o processo de transição política. O mesmo vai acontecer por aí.


ISTOÉ – O México tem uma história de sucesso com o Nafta. Já o Brasil padece com o Mercosul, desestruturado pela crise argentina. O sr. ainda acredita no Mercosul?
Gurría

Sim. O livre comércio é um conceito que, no México, funciona bem, com grande sucesso. Na América Latina, temos de nos unir para enfrentar negociações com a Alca, com a Europa, com o Japão. Temos de estar juntos. Eu sempre digo em público que o que nos falta na América Latina é um grande acordo comercial entre Mercosul e México. Ainda não foi possível. Agora, com todos os problemas da Argentina, é muito mais evidente a necessidade de diálogo, de fazer uma frente comum entre as duas maiores economias da América Latina. Precisamos criar mercados maiores para nós e negociar com o mundo de maneira conjunta. Ficaríamos mais fortes.

ISTOÉ – Quanto tempo o sr. acredita que a Argentina levará para se recuperar?
Gurría

Como economista, amigo da Argentina e observador dos problemas da dívida, a situação da argentina é de uma enorme complexidade. Agora há um problema institucional, político, que complica muito as coisas. O consenso torna-se difícil. O México também teve um problema de dívida, um problema fiscal, de inflação. São problemas econômico-financeiros com um ângulo político, mas que não enfrentaram a debilidade institucional. Eu acredito que as instituições brasileiras e mexicanas estão mais preparadas do que as da Argentina. A recuperação é muito difícil. Se ocorrer uma coordenação no terreno político, o processo pode andar mais rápido. Senão, teremos uma situação em que o menor problema argentino será o da dívida.

ISTOÉ – Hoje, o sr. faz oposição ao governo Fox, sendo membro do PRI. Como o sr. avalia a conduta econômica do atual presidente?
Gurría

O meu partido faz oposição. Eu, pessoalmente, não tenho uma participação ativa na vida política do país. Sou membro do PRI, mas avalio que os resultados do governo Fox são uma continuação de um processo que tem um desenvolvimento positivo. Temos hoje um grande desafio de crescimento. Como em todos os países do mundo, 2001 foi muito ruim. Temos de recuperar o crescimento para podermos retomar as medidas de mudança estrutural do país, como as legislações trabalhista, fiscal, do setor elétrico, entre outras. Tudo isso depende de muita negociação, pois, hoje, nenhum partido tem maioria no Parlamento.

ISTOÉ – O México vai crescer este ano?
Gurría

Há previsões de crescimento de até 1,8%. É pouco, pois é uma elevação equivalente ao crescimento da população. Todos dizem que 2003 será melhor no mundo todo. Mas antes temos de fazer as coisas em 2002 para assegurar um ano que vem melhor.

ISTOÉ – Apesar do bom momento mexicano nos últimos anos, a condição social do país continua precária. O que falta para os acertos econômicos resultarem em melhoras sociais?
Gurría

Não são cinco anos de crescimento que resolvem a situação. Precisamos de 20, 30 anos crescendo acima da evolução populacional. Para que ocorra uma recuperação gradual dos salários reais e da renda real das famílias, precisamos de 20 anos. Não digo que chegaríamos ao nível de uma Suíça, mas empataríamos com alguns países de desenvolvimento médio na Europa. Quando ocorrem cinco anos de crescimento, a situação social pára de se deteriorar. Nada afeta mais a condição das pessoas do que as crises. A lição é muito simples: precisamos não ter mais crises. Temos uma história de momentos de crescimento muito dinâmico e, na sequência, crises que acabam com todos os progressos. Aí temos mais crescimento, mais crise, mais crescimento, mais crise… São ciclos muito perversos do ponto de vista dos resultados sociais. E qual é o segredo para resolver isso? Não precisa ser economista para saber que é o crescimento sustentado por 20 ou 30 anos, e não apenas por três ou quatro anos.

ISTOÉ – A Argentina vive um colapso financeiro, a Colômbia, sob domínio da guerrilha, a Venezuela passou por uma crise institucional recentemente. Esses fatos isolados significam alguma coisa para o futuro da América do Sul quando analisados conjuntamente?
Gurría

As raízes dos problemas são diversas. Mas há uma mensagem única que todos devemos tomar como lição: a construção das instituições econômicas, políticas, sociais e a formação de consenso em partidos políticos são a principal sustentação do desenvolvimento. A queda das instituições é o que provoca turbulências. Há um subdesenvolvimento institucional, que é mais importante que todas as considerações econômicas.


ISTOÉ – Como o sr. avalia a atuação do FMI na América Latina?
Gurría

A responsabilidade direta pelo rumo econômico é dos próprios países. O FMI é um instrumento, do qual somos parceiros e temos o direito de usar. O México utilizou o Fundo quando teve muitos problemas, mas também o usou como blindagem. Temos um acordo que não vamos utilizar, mas que nos serve de garantia. Se há um problema no FMI é a pequena influência dos países em desenvolvimento na tomada de decisões, que não é proporcional à importância dos países na
economia mundial.


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