A única boa notícia que os argentinos receberam de uma instituição internacional nos últimos meses chegou no começo da semana e não ameniza o drama que tornou o escambo em pleno centro financeiro da capital um retrato da mais profunda crise enfrentada pelo país. A seleção de futebol poderá ir à Copa do Mundo sem a camisa 10, que pertenceu – e sempre pertencerá, pela vontade popular – a Maradona. Depois de uma queda-de-braço com a Fifa, a Associação de Futebol da Argentina (AFA, a CBF deles) teria conseguido autorização para homenagear o maior jogador da história do país, um dos melhores do mundo. Aposenta-se a 10 e, para cumprir a regra das 23 camisas, coloca-se a número 24 em seu lugar na seleção. Enquanto perdurar – porque nada no país tem perdurado, do emprego ao comando político –, a decisão servirá de afago ao orgulho combalido de uma população que, movida pelo desespero do empobrecimento, começou a atirar bombas caseiras em agências de banco. O primeiro atingido, terça-feira 7, foi o banco espanhol Santander Central Hispano, na província de Córdoba, a 800 quilômetros de Buenos Aires. No dia seguinte, outro artefato de baixa potência explodiu o vidro da frente da filial do espanhol Bilbao Vizcaya Argentaria, em Buenos Aires.

Não é o que se espera de um povo civilizado como o argentino, mas é o que se pode prever quando a realidade econômica conduz à pobreza 17.500 pessoas por dia, como mostrou, na quinta-feira 9, um estudo da empresa de consultoria privada Equis – Equipes de Investigação Social. “No período de outubro de 2001 a abril de 2002 foram somados ao universo da pobreza 3,2 milhões de pessoas, de acordo com o relatório da Equis. Quem tem emprego (a taxa de desemprego é de 23%) enfrentou uma queda no poder de compra de 40% no primeiro quadrimestre de 2002. É o pior resultado desde 1989. No mesmo período, entre janeiro e abril, a inflação acumulada foi de 21,1% e a desvalorização do peso atingiu 65%.

Enquanto as autoridades do Fundo Monetário Internacional (FMI) fazem de conta que não têm nada a ver com isso e teimam como jegue que não saem de sua posição, o governo argentino admite que andou pedindo ajuda aos países do Cone Sul (Brasil e Chile, particularmente) para evitar uma moratória com os organismos internacionais, especialmente Banco Mundial e FMI. O Chile se mostrou disposto a uma ajuda multilateral. Seria um empréstimo-ponte, de desembolso rápido. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), deverá liberar imediatamente cerca de US$ 700 milhões para o governo financiar programas de emergência na área de saúde e nutrição (metade da população do país não está consumindo o mínimo de calorias diárias necessárias).

Esta será uma semana em que o novo ministro da Economia, Roberto Lavagna, vai conhecer o inferno ao vivo. O país precisará de US$ 800 milhões para cumprir um vencimento com o Banco Mundial. No próximo dia 23, o país tem de honrar um compromisso de US$ 135 milhões com o FMI. Em meio a esse caldeirão de pressões, os bancos estrangeiros, que aparentemente haviam concordado com a eliminação do corralito – como é chamado o bloqueio dos depósitos que começou em dezembro para garantir a liquidez dos bancos à custa de seus clientes –, mudaram de idéia e ameaçam abandonar o país se o presidente Duhalde seguir adiante com o plano de Lavagna.

Duhalde, que não pode ser considerado referência de altivez, foi buscar aconchego no Conselho Justicialista de Buenos Aires. Recebeu uma injeção de apoio, respirou com certo alívio, mas não conseguiu segurar a fantasia e anunciou um iminente acordo com o FMI que “abrirá as portas para empréstimos destinados à assistência social no distrito” – acordo que não tem data para sair, segundo o chefe de gabinete de ministros, Alfredo Atanasof, e sairá em 45 dias, segundo o ministro Lavagna. “Há que dar tempo ao tempo, apesar da ansiedade”, disse Atanasof.

Ninguém se entende. O presidente Duhalde, que acaba de tirar da cartola a sugestão de um plebiscito para definir se o país segue o regime presidencialista ou adota o parlamentarismo, é de uma subserviência vergonhosa ao FMI e, pior, contagiante: na madrugada da quinta-feira 9, o Senado revogou uma lei que pune os delitos contra a economia, uma das muitas exigências do FMI para fornecer ajuda financeira ao país. A lei, que data de 1974, é uma pedra no sapato dos banqueiros, internacionais e nacionais, por ser utilizada por juízes para investigar banqueiros pela suposta fuga de capitais.

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Não parece, mas pode piorar. “Carlos Menem irá voltar”: essa é a pichação da hora em La Rioja, o berço do ex-presidente Menem, que deverá se propagar para outras partes do país. A ameaça não seria tão insólita se o vinhedo da família não estivesse produzindo um vinho tinto para ser aberto quando ele retornar à Casa Rosada. No rótulo do vinho Ao Retorno lê-se o seguinte: “Você poderá abrir esta garrafa em dezembro de 2003 ou bebê-la agora e ainda brindar os feitos do presidente durante seu mandato.” Alguns feitos do presidente estão no outro lado do rótulo, como o combate à inflação, o atrelamento do peso ao dólar, e o delírio segue por aí. Não é piada, não. Saiu até no Financial Times. Com um vasto prontuário de safadezas, Menem, “o presidente pizza com champanhe”, como debocham seus opositores, acha que não há outra opção fora de sua própria pessoa.


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