Copas do Mundo serviram ao longo dos tempos para criar, projetar e até destruir heróis. Pelé, o rei tricampeão, e Beckenbauer, o kaiser da seleção alemã, converteram-se em deuses. Outros seguiram-se. No Mundial da Alemanha, que começa nesta sexta-feira 9 como a 16ª edição das copas, uma nova leva será ungida. Os 3,6 milhões de torcedores nos estádios e mais 3,5 bilhões de pessoas diante da tevê vão reorientar suas atenções para os 64 jogos das 32 equipes em campo. São 736 craques garimpados, mas uma atenção especial está reservada aos 23 escolhidos por Parreira para a Seleção Brasileira. Não é para menos. Nas últimas três copas disputadas, o Brasil venceu duas e foi vice-campeão na outra. A seleção escalada para a nova edição já é tida como o dream team dos gramados. No meio deles, os holofotes estarão voltados em especial para um gênio, que pode ser chamado de foco original do talento que deve marcar esse escrete canarinho. Seu nome: Ronaldo de Assis Moreira, ou simplesmente Ronaldinho Gaúcho, eleito por duas vezes o maior jogador do mundo, o garoto-propaganda preferido, o artista dos dribles, o goleador.

Ronaldinho deve certamente ser a diferença na copa alemã, fazendo história. É o
que prevêem dez entre dez especialistas que giram o mundo nesses dias que antecedem a abertura da Copa. Antes mesmo de a bola rolar, ISTOÉ resolveu investigar as raízes desse fenômeno, o começo e as primeiras glórias do menino.
O mundo e os brasileiros souberam da existência de um Ronaldinho avassalador com a bola nos pés na Copa América disputada no Paraguai em junho de 1999. A goleada de 4 a 0 do Brasil sobre a Venezuela caminhava para um final modorrento quando, aos 19 minutos do segundo tempo, o garoto dentuço e magricela, então com 19 anos, mudou o panorama do jogo com uma obra de antologia. De costas para o gol, deu um lençol desconcertante no zagueiro, girou o corpo antes do bote final e tocou com classe no canto esquerdo. Gol de placa. Foi a peça de lançamento do atleta que, hoje, aos 26 anos, no Barcelona, tem rendimentos anuais de US$ 30 milhões (R$ 71,5 milhões) e uma marca comercial avaliada em 45 milhões de
euros (R$ 138 milhões).

O primeiro episódio marcante na vida do moleque de sorriso farto traz, por capricho,
a marca da tristeza. Aos nove anos, Ronaldinho, caçula de três irmãos, perdeu o
pai, o “profeta” João Moreira. Um infarto fulminante jogou-o na piscina da segunda casa da família, no bairro do Guarujá, em Porto Alegre. Profeta porque seu João não perdia a oportunidade de brincar com jornalistas que procuravam o primogênito Assis em casa para entrevistas. “Vocês estão atrás do cara errado. Voltarão aqui. O craque da família não é esse. É aquele ali.” E apontava para o menino de oito anos e calções largos que, no quintal, entre uma manobra e outra, fazia da bola a sua submissa. Ao final da performance, com a cabeça baixa, colocava-a para “dormir”, obediente, sobre a nuca. “A morte do pai nos uniu. O Assis ocupou parte do espaço dele na vida do Ronaldo”, lembra a mãe, dona Miguelina. Ronaldinho tem ainda uma irmã, Deisi. O garoto passou dias quieto. Mas felizmente a tristeza logo deu lugar à descontração habitual.

Dos nove aos 15 anos, Ronaldinho brilhou nas divisões inferiores do Grêmio e nos infantis de futsal da companhia de processamento de dados do Rio Grande do Sul (Procergs). Cleon Ramires Espinosa, funcionário da Procergs e técnico da molecada naquela época, guarda vídeos e histórias preciosas. Numa das partidas gravadas, na cidade gaúcha de Iburibá, Ronaldinho, aos dez anos, surge dando no goleiro adversário o mesmo drible dado por Pelé no uruguaio Mazurkiewski na Copa de 1970. Sem tocar na bola, deixa-a correr para um lado, sai pelo outro e a reencontra atrás do goleiro batido. Pelé chutou para fora, mas o lance entrou para a galeria dos mais belos da história do futebol. Por outra ironia dos deuses, com Ronaldinho aconteceu o mesmo. No final do torneio, o filho de dona Miguelina foi tão aplaudido ao receber os troféus de artilheiro e craque da competição que o então prefeito da cidade, Amauri Heirinch, entrou em campo para tirar fotos com o “guri” e entregou-lhe também um pedaço de papel. É muito provável que tenha sido o primeiro autógrafo dado pelo projeto de craque.

Num outro jogo, em Pelotas, deu lençóis seguidos em dois adversários e chutou para as redes sem deixar a bola cair no chão. Meses depois, já entre os mirins, partiu de sua área de defesa, driblou todos os adversários, imobilizou o goleiro
com uma ginga de corpo e tocou para o gol. Enquanto era abraçado, o locutor
berrou várias vezes, em êxtase: “É um gol de Maracanã! Estamos vendo surgir
um novo Pelé.” O jornalista Diogo Olivier lembra de outro episódio curioso neste mesmo campeonato. “Num jogo em Passo Fundo, o moleque deu tantos dribles
que o técnico, por precaução, tirou-o da quadra.” Motivo: Ronaldinho levou tantos socos dos adversários na barriga que o treinador ficou com medo de que algo
mais grave ocorresse.

No futebol de campo, no Grêmio, a alegria e o talento não foram apresentados em doses menores. José Alzir Flores, técnico de Ronaldinho dos nove aos 14 anos nas categorias de base, lembra das apostas que ele fazia com a coordenadora da lanchonete do clube, Elisabeth Pires. A cada gol nos treinamentos, um refrigerante de presente. Dona Beth confirma a história. “Quando ele fazia muitos, eu dizia: ‘Chega!, o trato está desfeito’”, lembra, aos risos. Nas viagens de ônibus, Ronaldinho infernizava o técnico com a sua segunda paixão depois da bola: o pandeiro. Flores odeia samba. O supervisor Juarez Soares era outra vítima. “Ele e seus amigos invadiam o quarto dele no hotel, tiravam o estrado da cama e colocavam o colchão apoiado apenas nos suportes laterais. Quando Juarez sentava era aquele tombo. Escondidos no armário, eles saíam e tiravam fotos”, lembra o técnico. “Era uma briga. Todos o queriam no time”, conta Magna Souza, professora de educação física do colégio Santa Tereza de Jesus, onde o craque estudou.

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As primeiras jogadas geniais foram feitas no Periquito, campo careca e esburacado da Vila Nova, na zona sul de Porto Alegre. Bem próximo das ruas Gerôlomo Minuzzo, onde fica sua primeira casa, e Marquês de Maricá, onde ainda moram seus tios e primos maternos. Um desses primos, Joel Alves, 28 anos, ex-jogador, coordena sem receber nada a escolinha de futebol Servia, para garotos da comunidade. Efeito Ronaldinho: metade dos 120 inscritos quer jogar de meia-atacante, a posição do craque. O mais promissor é Jean Pereira, 12 anos, por coincidência morador da Marquês de Maricá. “Tenho bola para chegar lá”, diz sem modéstia.

Como toda estrela, a vida de Ronaldinho é cercada de mitos e expectativas. A aposta atual recai sobre Taylor, dois anos, neto de uma das tias maternas do camisa 10 da Seleção, dona Conceição. “Ele faz muitas dessas coisas que vocês estão vendo o Ronaldinho fazer”, garante a avó coruja. E o próprio Ronaldinho diz que um dos tios maternos, João Ademar, o tio Miquimba, tinha tudo para fazer mais sucesso do que ele porque teria sido “o verdadeiro craque da família”. Flores, o técnico das divisões de base, garante que a principal aposta daqueles tempos, no Grêmio, era Jefferson Fredo, o “Jé”, e não Ronaldinho. Após jogar o campeonato gaúcho deste ano pelo Brasil, de Pelotas, Jé está sem clube. “O futebol tem dessas coisas. Ele foi, eu fiquei. Mas torço muito por ele porque é um cara sensacional”, diz. Quando o assunto é o alegre Ronaldinho, não há lugar para mágoas.


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