"Passo o dia a examinar doentes e cadáveres. Todos os dias entram de 20 a 30 doentes e morrem de dois a três. É a malária, moléstia evitável, único terror sério dessa região.” O lamento saiu da pena de Oswaldo Cruz (1872-1917), sanitarista nascido em São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo, que foi convidado pela companhia americana Port of Pará para combater a malária, ou empaludismo, na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em Rondônia, em plena floresta amazônica. Ele viajou a bordo da fama conquistada ao erradicar a febre amarela do Rio de Janeiro, em 1908. A exemplo da experiência que culminou na revolta da vacina, retratada no filme Sonhos tropicais, de André Sturm, que mostra a reação da população à vacinação compulsória contra a varíola, o cientista não hesitou em tomar medidas policialescas. Chegou a recomendar “o uso da força” para obrigar a ingestão de quinino como prevenção à malária.

O documentário Oswaldo Cruz na Amazônia, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio até quinta-feira 16, mostra a epopéia do sanitarista nas selvas e ressalta que a malária permanece o maior problema de saúde da região. O filme de 55 minutos foi rodado pela bisneta de Cruz, a socióloga carioca Stela Oswaldo Cruz Penido, 48 anos, e pelo historiador Eduardo Thielen, 44, ambos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Entre 1999 e 2002, em três ocasiões a dupla embrenhou-se pela floresta. Foram 45 dias para obter 60 horas de gravação. Entre outras curiosidades, Stela revela que seu bisavô recebeu a metade do valor tratado com a Port of Pará para duas viagens à floresta.

A primeira expedição, em 1905, durou quase um mês. Cruz era diretor de Saúde Pública, cargo com status de ministro de Estado, e percorreu o Brasil para avaliar os mecanismos de defesa dos portos tropicais contra o desembarque de doenças. Começou pelo Norte, onde os males circulantes eram a malária, a febre amarela, a varíola, a peste bubônica e a cólera.

Hipertenso e com deficiência renal, um sinal de diabetes, Cruz também sofria de esclerose (má irrigação do corpo pelas artérias) e resistira a dois ataques de edema pulmonar. Suas condições exigiram levar o médico particular Belizário Penna a tiracolo. “Morrerei mais depressa se ficar inativo”, justifica-se o cientista em cena do documentário com narração do ator Paulo José. Nem sempre a saga correspondia às expectativas: “A viagem continua monótona e sem incidentes. Levanto-me o mais tarde possível. Leio, jogo xadrez, bocejo, vou inúmeras vezes à mesa”, reclama. Pouco a pouco, o cientista colhe impressões aterradoras, no mínimo contrastantes para um homem de hábitos refinados, formado pelo Instituto Pasteur, de Paris. “Há aqui cidades que são um verdadeiro horror sanitário. Creio que no inferno não há situação análoga. (…) Matam o boi na rua, abandonam as vísceras e deixam apodrecer. Estou horrorizado com tanta porcaria.”

Na segunda viagem de 28 dias, em 1910, o desafio foi ainda maior. Em 1903, pelo Tratado de Petrópolis, a Bolívia transferia o território do Acre ao Brasil. A contrapartida seria a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, para escoar a borracha boliviana até o oceano Atlântico. Na ocasião, a malária estava espalhada por todo o País, mas a Amazônia era a região mais atingida. Mesmo depois de vários planos de erradicação, a doença faz estragos. No mês passado, surgiram cinco casos no litoral fluminense. O remédio e a vacina estão a caminho e hoje a cura é possível através dos derivados do quinino. Segundo o infectologista Mauro Tada, do Centro de Pesquisas de Medicina Tropical de Porto Velho, em Rondônia, há três formas da enfermidade no Brasil. A mais letal responde por menos 1% dos casos. Em 2000 foram 615 mil registros de malária na Amazônia, foco de 99,9% das ocorrências. No ano passado, houve um decréscimo de incidência, num total de 389 mil. A despeito de iniciativas esporádicas, continua profética a previsão de Oswaldo Cruz, feita há quase 100 anos: “O saneamento da Amazônia se fará quando o governo determinar.”

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