Cova 120, quadra 70, cemitério de Vila Formosa, zona norte da cidade de São Paulo. É nesse pedaço de chão que foram enterrados os sonhos e as esperanças de Lindomar Lino da Silva, 29 anos, e mais 37 jovens vítimas de uma reação desmedida da polícia à guerra urbana comandada pelo PCC. Ceará – apelido que Lindomar carregava desde que desembarcou de um pau-de-arara na capital paulista – veio do sertão, da distante Solonópole (CE), em busca de uma vida melhor. Dez anos depois encontrou a morte. Com um tiro nas costas e dois na cabeça, Ceará tombou. Os disparos não vitimaram só o emigrante. Dilaceraram a alma da sua companheira, Maria Dinauci de Lima, 23 anos. Apaixonado pelo futebol, Ceará há 20 dias viu nascer seu primogênito, que, contrariando o gosto da mulher, batizou de Ronaldo, em homenagem ao gaúcho camisa 10 da Seleção Brasileira.

Sem casamento – Avenida Guilherme Cotching, Igreja Nossa Senhora da Candelária, zona norte. Manhã fria da quinta-feira 25, Vanessa Pereira sobe a escadaria da igreja. Lá, a jovem de 23 anos foi comunicar ao padre que o casamento anunciado para o dia 8 e já pago há sete meses não aconteceria mais. Dez dias antes, com seis tiros pelas costas, dois homens encapuzados mataram brutalmente seu noivo, Ricardo Frauzino. “Faltavam três semanas para nossa festa”, lembra. Entre o choro travado e olhares vagos, Vanessa contempla o anelar esquerdo com duas grossas alianças. Os assassinos roubaram a vida de Ricardo e o sonho de Vanessa. “Tínhamos até o nome dos filhos escolhidos”, lembra. “Distribuímos 250 convites para os parentes e amigos. Acabou tudo”, chora. A reunião dos convivas aconteceu, mas não foi no salão de festas, como previra o casal. Eles se encontraram diante de uma lápide com a inscrição: “Aqui jaz Ricardo Frauzino.”

Os relatos acima fazem parte de um roteiro trágico. Este é o único teatro que a periferia conhece. As peças lá assistidas são sempre baseadas no estilo da vida como ela é, de fato. Eles são parte da mais triste imagem de um conflito que matou 176 pessoas em apenas seis dias (de 13 a 19). São 130 mortos só por arma de fogo. Não se sabe ainda, mas calcula-se que 76 deles são pessoas inocentes. “Enterrei 39 corpos num dia só, em uma fileira”, conta Carlos, coveiro do cemitério de Vila Formosa. A linha de covas a que Carlos se refere significa mortos sem identificação. São sete palmos de terra e nada mais.

Ceará, o emigrante que deixou o filho Ronaldo, era um homem forte e determinado. Trabalhou 20 horas por dia, em dois empregos, durante seis anos para montar
sua pizzaria. E ele quase chegou lá. Às 16 h da segunda-feira 15, seu dia de folga, Ceará foi atacado a caminho de casa pelas costas. “Ele não teve tempo nem de
se explicar”, conta a irmã Lindecir. Segundo os vizinhos, seus algozes foram dois garupas de motos, que eram acompanhadas por uma viatura da PM. Não satisfeitos com o primeiro disparo, os matadores ainda deram dois tiros na testa de Ceará.
“Foi uma covardia”, lembra a mulher, Dinauci. “Estou desorientada”, emenda. Não é para menos. Além da perda do marido, ela terá de sobreviver com um
salário de R$ 400. É com essa quantia que ela terá que pagar o aluguel da casa
e cuidar de Samantha, quase dois anos, e do recém-nascido Ronaldo. “Como
se não bastasse, não consegui uma vaga para meus meninos numa creche”,
conta Dinauci.

Ricardo Frauzino, 22 anos, o jovem que não chegou a casar, era motorista, pensava em cursar educação física tão logo resolvesse um compromisso de honra: trocar alianças com Vanessa. O noivado foi selado há seis meses e durante esse período o casal dedicava sua horas vagas para comprar as peças do enxoval, móveis e procurar uma casa para morar. Eram 22 h do dia 15, data em que o terror dominou São Paulo. A poucos metros do local onde Vanessa iria descer do ônibus, como de fato o fez, mascarados metralharam cruelmente o jovem, também pelas costas. Os tiros puseram fim a um namoro pontuado por dezenas de cartas e juras de amor. “Não quero acusar ninguém, pois não sei quem matou, se foi a polícia ou esquadrão da morte. Só quero justiça”, pede Iracy Frauzino, a mãe de Ricardo. Na última semana, Vanessa e a ex-sogra alternavam caminhadas e lágrimas desmarcando o casamento no cartório, na igreja e no salão de festas.

Teatro do absurdo – Na noite da quinta-feira 25, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo entregou a um procurador do Ministério Público a lista de mortos. Sabe-se que são dezenas de cadáveres, que chegaram ao IML de São Paulo com o boletim de ocorrência pronto: “autorias desconhecidas”. Para os moradores das comunidades onde viviam Frauzino e Ceará, não existem dúvidas sobre os autores das execuções. “Foram os policiais”, dizem em coro. Representantes dos direitos humanos tentam escrever o último ato. Para que a cortina não se feche deixando na platéia a sensação de impunidade, eles pedem transparência nas investigações e punição para os culpados.

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