Na terra árida da estrada que leva a La Paz, 1.340 quilômetros à frente, o agricultor acreano José Paiva de Figueiredo acaba de destruir mais um par de botinas, rachadas ao meio. Três malárias dão a ele a aparência de ter mais que seus 41 anos. Habitante da zona rural do povoado de Montevidéu, no território do Pando, José é um dos 15 mil brasileiros adultos que vivem dentro da Bolívia, na faixa de 50 quilômetros de distância da fronteira com o Brasil. Como seus compatriotas, ele está ameaçado de ser expulso do país pelo governo do presidente Evo Morales. E, ao lado de compatriotas, promete resistir à bala. “Não vamos deixar nossas terras para trás”, garantiu à reportagem de ISTOÉ. “Todos nós temos armas e estamos dispostos a usá-las”, prossegue, olhando para sua velha espingarda calibre 16 milímetros, útil para caçar pequenos animais silvestres. Morales avisou em rede nacional, brandindo a Constituição de 1967, que vai expropriar pelo menos 3,5 mil famílias brasileiras que vivem na região.

Uma gente humilde, sem benefícios sociais e com precários documentos de
posse de terra. A ameaça do presidente espraiou pela região uma onda de hostilidades contra os brasileiros. Da última vez que esteve no povoado de Montevidéu, distante uma hora e meia de barco, José foi insultado, quase
enxotado. “Me chamaram de clandestino e disseram que vamos ter que sair
do país deles.” Um panfleto oficial indica que os agricultores brasileiros terão
de pagar, cada um, o equivalente a R$ 886 para regularizar sua situação. “Ao
tentar explorar brasileiros pobres, Morales cria uma situação de guerra”, diz o prefeito da cidade brasileira de Plácido de Castro, Paulo César da Silva. “Uma guerra que pode começar a qualquer momento.”

A tensão na fronteira está deixando em estado de alerta o coordenador de Operações Especiais e de Fronteiras da Polícia Federal, delegado Mauro Sposito. “O espírito nacionalista transformou os brasileiros que moram lá em bandidos”, alerta o delegado. “Há um risco real de retaliação.” A primeira providência do governo brasileiro foi vigiar mais a fronteira. A região recebeu um contingente da Agência Brasileira de Inteligência, do Exército e da PF, cerca de 30 homens. Para um oficial do Exército no Acre, que acompanha o clima tenso, o projeto de Evo Morales é a expulsão dos brasileiros e o assentamento de sem-terra bolivianos. Eles, então, estariam livres para plantar folha de coca. Desde já, a fronteira tem alta incidência de tráfico da pasta base da cocaína. Há uma superoferta de folhas de coca, que os bolivianos tradicionalmente mascam. A folha é vendida em grandes sacos de lixo, nas feiras do Pando. Para evitar a guerra, o Exército adiou para depois da Copa do Mundo operações ostensivas na fronteira com a Bolívia.

O certo é que a expulsão dos brasileiros já está decidida.“Das sete mil famílias de brasileiros que vivem aqui, a metade está na faixa dos 50 quilômetros da fronteira”, contabiliza a boliviana Ruth Caymi, diretora distrital do Serviço Nacional de Imigração do Pando. “Vamos notificar estas famílias. Elas não podem ter terras aqui.” A funcionária do governo não descarta a ocorrência de choques entre brasileiros e bolivianos: “O risco de conflito social é grande”, admite. Uma primeira relação com os “nombres” de 32 brasileiros, empregados de uma madeireira em processo de desapropriação, já chegou às mãos da Polícia Federal. Eles são os primeiros que terão de sair. Certo de que a expropriação chegará até ele, um agricultor já tem até munição preparada para resistir. Ele se diz ameaçado de morte pelos sem-terra da Bolívia e pede para ser identificado apenas como João da Silva, nome fictício. Há duas semanas, foi à sede da Polícia Federal de Epitaciolândia, no Acre, para avisar que o conflito é iminente. “Temos 400 famílias armadas no seringal. Vamos morrer lá dentro. O tiro vai comer”, frisou a ISTOÉ.

Enquanto o primeiro tiro não é disparado, os brasileiros sofrem insultos no lado boliviano. Representante de uma multinacional, Francisco Nobre Júnior foi expulso da loja Motorespuestos Santa Rosa, em Cobija, ao tentar comprar peças, no fim de semana. A reportagem acompanhou Francisco à loja e registrou os maus-tratos. “Patrício, fora!”, reagiu o comerciante boliviano, numa feroz ironia. Ele sabe que Francisco não é seu “patrício”. O brasileiro apenas lamentou. “Os bolivianos estão aderindo à onda de repulsa aos brasileiros que o Evo prega”, disse. Há ainda casos de extorsão de pretensas autoridades bolivianas. Em Montevidéu, os agentes públicos bolivianos cruzam o rio Abunã e cobram em território brasileiro, no Acre, dentro do município de Plácido de Castro, impostos de quem tem terras na Bolívia e colhe castanhas. A PF já identificou esse cobrador de impostos alienígena. É Willian Gutierrez Deramedis, fiscal boliviano que carrega o carimbo de guarda florestal de Montevidéu. Deramedis pouco se preocupa com a extorsão praticada. Quando apanha o dinheiro, passa recibos em português mesmo, preenchendo pequenos pedaços de papel não oficial. “Ele disse que ia mandar a polícia da Bolívia me prender, se eu não pagasse o imposto”, denuncia o agricultor Miguel Vieira de Paiva, que tem um pedaço de terra na Bolívia. A PF tenta identificar outro boliviano que vem extorquindo brasileiros, de nome Marcelo. O preço da extorsão é negociado. O imposto varia entre R$ 1 e R$ 1,10 por lata de castanha retirada.

Os bolivianos da cidadezinha de Cobija apóiam a política inspirada pelo presidente Morales. O comerciante Pedro Douglas justifica que o presidente não toma terras só de brasileiros. “Ele também está retomando as terras ilegais que os bolivianos alugaram para gente de fora.” No fundo, é o mesmo sentimento expressado pelo próprio Morales, quando disse que o Brasil comprou o Acre da Bolívia em troca de um cavalo. Com três dentes de ouro na boca, a comerciante Maria Dorka sorri quando relembra a história contada por seu presidente. “O contrato da troca pelo cavalo estava de cabeça para baixo”, diz Maria. “E o boliviano que assinou o contrato estava bêbado. Fomos enganados.”

Esta semana, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, foi a La Paz conversar com Evo Morales. Uma tentativa de reabrir os canais diplomáticos. Na vida real, a presença do Itamaraty no Pando é tímida e totalmente desprezada pelo governo boliviano. O vice-cônsul em Cobija, Júlio Miguel da Silva, não é mais recebido pelas autoridades de imigração da Bolívia. Em recente encontro com uma autoridade brasileira, Júlio criticou o desrespeito do governo de Evo Morales com os brasileiros: “Para a diplomacia, é difícil entender um radical”, cravou o vice-cônsul. “O Evo embaralhou a diplomacia.”