Há pouco mais de uma hora soube da morte de Vitor Negrete, a 8.300 metros de altitude, no Everest, mas ainda não consegui chorar. Primeiro porque todas as lembranças que tenho dele são de momentos engraçados e felizes (ele era divertidíssimo, com um senso de humor único) e quando penso nele o sorriso me vem antes do choro. Segundo pelo choque. A possibilidade dele perder a vida na montanha não existia para mim, mesmo sabendo que mais da metade dos alpinistas que tentam escalar o Everest sem oxigênio morrem nessa tentativa. Vitor Negrete era uma espécie de Super-Homem para mim e todos que o conheciam, e poucos de nós tinham dúvidas de que ele seria o primeiro brasileiro no cume do Everest sem auxílio de oxigênio suplementar. E foi. Na terça-feira 16, ele chegou ao topo da maior montanha do mundo do jeito que achava certo: sem oxigênio suplementar e sem a ajuda de sherpas – povo do Nepal que auxilia os alpinistas. O primeiro brasileiro a fazer tal feito. Na descida, ele parou no segundo escalão e chamou pelo rádio o Dawa Sherpa, que o esperava no acampamento 3, a 8.300 metros de altitude – o último acampamento antes do cume, onde Vitor havia passado algumas horas na madrugada de terça, descansando e derretendo gelo para o ataque final. Dawa subiu ao encontro de Vitor e o localizou no segundo escalão, a 8.600 metros. Vitor estava extremamente fraco, mas Dawa conseguiu ajudá-lo a chegar ao acampamento 3. Infelizmente, ele não resistiu à exaustão extrema e faleceu às 2 horas da quarta-feira 17, dentro de uma barraca na face norte do Everest.

Ele e seu parceiro de escalada, Rodrigo Raineri, haviam escolhido a face norte por ela ser mais difícil que a sul. “As dificuldades técnicas acima dos 8 mil metros, onde a falta de oxigênio é extrema, também são maiores”, havia me dito Vitor antes de sua primeira ida ao Everest, em 2005. No ano passado, ele alcançou o cume usando os cilindros de oxigênio e Rodrigo retornou a menos de 50 metros do topo. Este ano, a dupla voltou ao Everest para terminar o que havia começado. Rodrigo estava no acampamento base, a 5.200 metros, quando soube da notícia. A aclimatação – processo de adaptação à altitude a que os alpinistas se submetem, feito através de uma seqüência de subidas e descidas na montanha para que o corpo se prepare para a ausência de oxigênio – dos dois havia se “desencontrado” e Rodrigo não estava se sentindo pronto para tentar o cume na janela de tempo que estava prevista para o dia 18, então Vitor foi sozinho. Rodrigo esperaria até dia 25, quando estava prevista outra janela.

O clima no Everest é um dos mais hostis e imprevisíveis do mundo. Ali, duas correntes climáticas colidem-se causando temperaturas de -10 a -40 graus centígrados, tempestades de neve e ventos de 200 km/h. No verão, a monção que vem do sul prevalece; no inverno, é a vez da monção do norte. Em alguns dias da primavera (março a maio) e do outono (setembro a novembro) himalaios, as massas de ar se equilibram no que se chama janela de tempo. Os alpinistas que querem chegar ao cume chegam ao acampamento base em abril e ficam se aclimatando na montanha à espera da janela. Depois do último contato telefônico do Vitor, quando disse que iria subir sozinho e deixaria o telefone no acampamento 3, já que a bateria estava acabando, Rodrigo mal dormiu, à espera de notícias. Agora ele planeja subir aos 8.300 para realizar uma cerimônia pudja e enterrar o amigo. Eles formavam uma dupla perfeita: Vitor era a força, Rodrigo era a técnica. Talvez, se eles estivessem juntos, Rodrigo conseguisse convencer Vitor a subir com um sherpa, para ajudar na descida em caso de necessidade. Talvez agora muita gente questione a decisão do Vitor de subir sozinho e não levar nem um cilindro de oxigênio para uma emergência, mas o jeito que ele resolveu subir era o seu jeito. Se fosse diferente, não seria ele: polêmico, autêntico, do contra, mas mesmo assim muito responsável e um alpinista extremamente experiente e competente.

Conheci Vitor antes de nos tornarmos parceiros de corridas de aventura, de churrascos e de risadas. Fui entrevistá-lo a respeito de uma viagem de bike que ele fez com dois amigos pela Transamazônica. Coincidentemente, acabamos integrantes da mesma equipe de corridas de aventura e encaramos juntos grandes desafios. Sempre me senti muito segura, mesmo nas maiores roubadas, por ter ele ao meu lado. Sempre acreditei que ele conseguiria conquistar a montanha que quisesse, pois além da força física tinha também uma incrível força psicológica e o discernimento que depara os aventureiros inconseqüentes dos bem sucedidos. Não sei quanto tempo ele ficou lá em cima, nos 8.850 metros, mas espero que tenha sido o suficiente para ele sentir, de verdade, a importância de sua conquista para o alpinismo brasileiro. Tenho certeza de que se ele tivesse voltado, teria me dito, rindo, que “nem tinha sido tão difícil assim”. E eu o chamaria de Ogro ou de Frito – aliás, eu nunca o chamava de Vitor. Ogro era muito mais a sua cara. Ele morreu na montanha fazendo o que gostava. Lamento um pouco o fato de ter sido no Everest – sei que a montanha que o encantava de verdade era o Annapurna, no Himalaia, que tem “apenas” 8.090 metros. Sei também que a possibilidade da morte era algo que ele encarava com calma e clareza. “A montanha é previsível. Quando ela mata alguém, já era esperado”, ele me disse.