Durante oito anos, o governo Fernando Henrique Cardoso assistiu inerte às demonstrações de poder do Estado paralelo comandado pelo narcotráfico no Rio de Janeiro. O próprio FHC reconheceu a timidez ao fazer
os balanços das façanhas e frustrações de seus dois mandatos. Na semana passada,
o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, que assumiu repetindo
a promessa de transformar a segurança em prioridade nacional, aceitou
a declaração de guerra do tráfico. Na quarta-feira 26, terceiro dia da onda de terrorismo desencadeada pelo tráfico, o governo anunciou medidas objetivas de combate ao Estado paralelo, reconhecendo finalmente que o drama deixou de ser carioca e se configura em um desafio para o Estado nacional.

A medida de maior impacto foi a transferência do traficante Fernandinho Beira-Mar, que em dez meses de prisão no Rio comandou ações espetaculares, entre rebeliões, chacinas e atentados. Na quarta-feira 26, logo após a reunião entre a governadora Rosinha Matheus (PSB) e os ministros da Casa Civil, José Dirceu, e da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, no Palácio Guanabara, Fernandinho foi transferido do presídio Bangu I para Presidente Bernardes, em São Paulo, onde ficaria por 30 dias. O presídio, de segurança máxima, é considerado o mais moderno do País.
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), aceitou
a transferência atendendo a um apelo de Lula, mas deixou claro
que se trata de uma ação emergencial de solidariedade com o Rio
e a permanência de Beira-Mar em território paulista não deve
ultrapassar o prazo acordado.

De Bangu I, Beira-Mar infernizou a vida dos cariocas. Comandou motins, assassinou adversários, ameaçou comerciantes da cidade inteira e continuou chefiando seus negócios. Ele é apontado como o maior traficante do Brasil e um dos maiores fornecedores de armas à guerrilha colombiana. Uma vistoria realizada por policiais militares e soldados do Exército em Bangu I no dia seguinte mostrou que a transferência faz sentido. Em Bangu 3 e 4, foram encontrados 111 telefones celulares, carregadores, munição e até um laptop, tudo escondido dentro de paredes ou enterrado. Na cela de Beira-Mar havia um papel com os nomes de um desembargador, um juiz e um promotor, presumivelmente alvos de alguma ação do marginal.

Reforço – O governo também cedeu três mil homens das Forças Armadas para o Carnaval, anunciou a construção de cinco presídios federais, o primeiro deles em Brasília, montou uma força-tarefa com o Ministério Público e a Justiça e admitiu antecipar recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Os tiros e rajadas da bandidagem, desta vez, podem ter saído pela culatra. “O crime subiu o tom, passou para uma dimensão mais qualificada. Nossas medidas são emergenciais, sem prejuízo das reformas profundas para chegarmos a um sistema único de segurança. O governo Lula não vai aceitar conviver com o crime organizado”, declarou o ministro da Justiça.

O Rio sucumbiu novamente ao narcotráfico às vésperas de realizar a maior festa popular do mundo. Na segunda-feira, comerciantes de 23 bairros fecharam as portas. Bandidos jogaram bombas em vários pontos, incluindo a suntuosa avenida Vieira Souto, em Ipanema, queimaram 24 ônibus, depredaram outros 13, saquearam supermercados, atiraram a esmo, metralharam cabines da PM e explodiram uma granada num quartel. Num ônibus incendiado em Botafogo, 13 pessoas ficaram feridas. A aposentada Aury do Canto, 70 anos, teve 60% do corpo queimado e morreu no fim da tarde de quinta-feira 27. Outro idoso, o taxista Sílvio Manoel Fernandes, 73 anos, passou sem querer por uma barreira de traficantes, foi arrancado do carro, torturado e executado com tiro de fuzil na cabeça. O Aterro de Gramacho, para onde vão cerca de 80% do lixo do Rio, foi interditado pelo tráfico. Em três dias, 52 ônibus foram incendiados. A ação foi mais ampla do que a de 30 de setembro, quando moleques descamisados mandaram a segunda maior cidade do País fechar seu comércio.

Ocupação – Na quarta-feira 26, a governadora Rosinha anunciou
a operação Rio Seguro. A polícia ocupou 15 favelas, com mandado
de busca e apreensão itinerante para vistoriar qualquer casa das comunidades. Em um dia, prendeu muita gente e matou cinco
acusados de tráfico. Numa das favelas, a polícia foi recebida a
tiros. A ação inclui 23 mil homens da PM, cinco mil da Polícia Civil
e 4.500 da Guarda Municipal, abrangendo, na primeira semana, 15 comunidades, onde ocorreram mais saques e incêndios de ônibus na segunda-feira. O governo ainda pôs um PM encapuzado com uma escopeta apontada para cada uma das 20 celas dos líderes do Comando Vermelho em Bangu I, uma imagem de arrepiar defensores de direitos humanos, mas festejada nas ruas.

O prefeito Cesar Maia (PFL), que pôs à disposição do Estado os
homens da Guarda Municipal, entrou na polêmica. Disse que os líderes
do Comando Vermelho deveriam ter sido mortos no motim de 11 de setembro do ano passado, em Bangu I, quando adversários de Fernandinho Beira-Mar foram assassinados. A polícia, segundo ele, deveria matar “quantos bandidos fosse preciso para restabelecer a ordem”. O secretário estadual de Segurança, coronel Josias Quintal,
não ficou atrás ao anunciar o Rio Seguro. Ele disse que a polícia seria orientada para evitar mortes de inocentes, mas que não deixaria de cumprir sua missão “por causa de uma extrema preocupação com os inocentes”. E mais: “Nosso bloco está na rua. Se tiver que ter conflito armado, que tenha. E se alguém tiver que morrer por isso, que morra.
Nós vamos partir para dentro, não tem conversa.”

Num país onde um senador consegue grampear 232 telefones, usando a máquina pública para bisbilhotar até parentes da amante, é de se supor que não faltem equipamentos para detectar e abortar ações de terrorismo, como as da semana passada. O orçamento da Secretaria de Segurança Pública do Rio este ano é de 1,4 bilhão, sem contar o sistema penitenciário. São 39 mil homens da PM e 11 mil da Polícia Civil. “Podemos apreender quantas armas forem, mas o abastecimento dos bandidos é de uma regularidade impressionante. Não adianta ficar enxugando gelo”, desabafou o presidente do Instituto de Segurança Pública, coronel Jorge da Silva. Para o secretário nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, “o controle do Exército sobre as armas deve realmente ser aprimorado”. Segundo ele, a União deve atuar no Rio porque o crime se aproxima do terror e apresenta características de politização selvagem.

A bandidagem ensaiou um discurso ideológico na carta distribuída aos comerciantes determinando que fechassem suas portas, cuja autoria foi assumida pelo traficante Marquinhos Niterói, também preso em Bangu I. Ele acusa o Estado legal de maltratar os pobres, exige tratamento melhor para os presos e ameaça tornar permanentes as ações terroristas: “(…) não mais deixaremos de causar o caos nesta cidade.” Os prejuízos dos comerciantes foram calculados em R$ 280 milhões pelo
Sindicato dos Lojistas da capital e em R$ 50 milhões pela
Federação do Comércio do Estado.

Ódio que saiu dos gramados

Briga, tiroteio e morte marcaram a abertura do Carnaval paulistano, na noite de sábado, no Anhembi. O primeiro confronto aconteceu dentro do sambódromo, às 21h50. Cerca de 700 integrantes do bloco Independente – ligado à torcida do São Paulo – se preparavam para desfilar. Na concentração, componentes do bloco Pavilhão 9 – uma das torcidas do Corinthians – faziam reparos no seu carro abre-alas. Os dois grupos passaram a trocar insultos. Os são-paulinos cercaram o carro da torcida rival e começaram a destruí-lo. O carnavalesco do Pavilhão 9, Ruy Luciano Nogueira, tentou impedir a destruição das alegorias e recebeu um tiro na cabeça. Morreu a caminho do hospital. Mais sete pessoas foram baleadas. “Eles deram tiro e pauladas para todo lado”, lembrou Alex Batista Salmazo, diretor do Pavilhão 9, que levou um tiro de raspão na cabeça. Depois da briga, os integrantes do Independente desfilaram. Saíram do sambódromo às 23h30, em 18 ônibus, escoltados pela PM.

Fora do Anhembi, dois ônibus, com 60 são-paulinos, seguiram em direção à avenida Marquês de São Vicente, onde travaram o segundo confronto, desta vez com dez palmeirenses, que estavam indo para uma festa na quadra da Mancha Verde. Com pedaços de madeira
com pregos na ponta, os marginais desceram dos ônibus e massacraram o auxiliar de almoxarifado Mauro Roberto Costa, 23 anos. Em revide, um grupo palmeirense fez o mesmo com o estudante Diógenes Fernandes Ventura, 20. Os dois rapazes morreram. No local, a PM prendeu dezenas de torcedores, entre eles Carlos André Amorozine Júnior, o Sukita, diretor da torcida Independente. Sukita
foi indiciado pelas mortes de Mauro e de Rui Nogueira. O promotor Fernando Capez exigiu a expulsão do bloco Independente do Carnaval. Por unanimidade, 55 conselheiros da União das Escolas de Samba Paulistanas (Uesp) acataram o pedido. “Expulsamos a entidade jurídica que é o bloco, agora as pessoas que fazem parte dele não temos como controlar”, admitiu Edléia dos Santos, presidente da Uesp. “Vamos investigar os antecedentes criminais de quem atua nos blocos”, prometeu Capez, que em 1997 conseguiu afastar dos
estádios de futebol as torcidas organizadas.

Madi Rodrigues