Ano: 1985. Mãos dadas, sentados na última fileira de uma igreja, o engenheiro mecânico equatoriano Luis Henrique Herrera e a professora Olga Maria Mathilde rezam baixinho pedindo a bênção para sua união. Recém-casados no civil, oficializando uma relação iniciada nove anos antes, não ousam entrar pela nave central da igreja. Eles não estão apenas impedidos de se casar na igreja. Segregados pela condição de divorciados, não têm acesso ao padre, não podem participar de nehuma atividade com outros casais católicos e seu trabalho cristão não é aceito sequer nas obras de caridade. “A gente fica marcado, estigmatizado e rejeitado”, diz Olga Maria. Desde a década de 70, Olga e Luis Henrique faziam parte da “paróquia dos excluídos”, como muitos se referiam ao destino desses católicos por batismo proibidos de exercer sua fé porque, para sua igreja, eram pecadores. O pecado: falharam no sacramento do matrimônio, indissolúvel para a Igreja Católica. “Fecharam a porta pra mim e eu para eles”, conta Olga, que deixou de frequentar a igreja. Os filhos seguiram o mesmo caminho. As portas ficaram fechadas por mais de 20 anos.

Ano: 2002. Luis Henrique, hoje com 60 anos, e Olga Maria, 56, entram pela porta da frente da catedral de Nossa Senhora do Desterro, em Jundiaí, interior de São Paulo, que costumam frequentar com os quatro filhos e seis netos. Em agosto passado, no meio de um grupo de casais com mais
de 25 anos de matrimônio, tiveram
sua segunda união abençoada por dom Amaury Castanho, bispo de Jundiaí. Um “casamento” sem sacramento abençoado depois
de 25 anos. “Foi mesmo como se estivéssemos casando novamente”, emociona-se Olga Maria, com os olhos cheios de lágrimas. Acolhido pela igreja, o casal participa de quase
todos os ministérios na hierarquia da Igreja relacionados à crisma,
à liturgia, aos cânticos e à catequese, além de coordenar grupos
e participar de obras sociais das quais antes eram banidos.

Rebanho – Ainda não dá para subir no altar pela segunda vez, mas
uma revolução cada vez menos silenciosa anda sacudindo a Igreja Católica. Atenta à sangria de fiéis para denominações evangélicas
e a uma perturbadora mudança no perfil dos casamentos no País
– onde as pessoas se casam cada vez menos e a maioria termina
se separando –, a Igreja Católica decidiu trazer de volta para casa
um rebanho que andava desgarrado. Não é pouca gente. Existem
mais de cinco milhões de brasileiros desquitados ou divorciados que
vivem com suas novas famílias dentro de lares “reconstruídos”. E o número não pára de crescer. As separações judiciais aumentaram
quase 20% na última década. Para cada dez uniões legais realizadas
hoje, pelo menos três terminam em dissolução. O pesadelo para a
Igreja é ainda maior: a forma de união que mais cresce aqui é a consensual, em que os parceiros não se casam no religioso. Hoje,
este tipo de união é a opção de um terço do total dos casais.

Com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Igreja escancarou suas portas para os “recasados”. Abriu a católicos divorciados quase todos os ministérios dentro de sua estrutura formal, transformou a “segunda união” em um dos temas prioritários da Pastoral Família e Vida e já aprovou a criação de “Pastorais de Descasados” em 150 das 280 dioceses do País, um fenômeno de adesão que soma 40 mil casais em 1.500 paróquias. “É uma abertura. Outros passos podem vir no futuro”, aponta dom Dadeus Grings, arcebispo de Porto Alegre. Ele é um dos maiores incentivadores das pastorais formadas por homens e mulheres que vieram de “lares desfeitos”, antes excluídos da vida religiosa. “Esses casais não podem ser excluídos nem excomungados”, diz.

“A Igreja tem de responder às necessidades do seu tempo”, afirma
o padre Jesus Hortal Sánches, reitor da PUC no Rio de Janeiro. “O fracasso de muitos casamentos é um fato social inegável. A Igreja
hoje reconhece a segunda união como um fato”, diz. Especialista
em direito canônico, o padre participou em setembro passado, do
10º Congresso Nacional da Pastoral Familiar da CNBB, no Recife, de
um painel sobre os descasados. Na prática, casais separados continuam não podendo casar de novo nem receber os outros sacramentos, como penitência, confissão ou comunhão. Também não podem exercer as funções de diáconos ou ministros da eucaristia. Mas, mesmo sem dar
o sacramento em cerimônias tradicionais, a Igreja tem abençoado
casais de segunda união por meio de suas coordenações diocesanas, comandadas por um colegiado de leigos e padres. Embora a ousadia
não tenha acolhimento unânime, alguns padres já dão informalmente
o sacramento da eucaristia a casais de segunda união em ocasiões especiais, como o aniversário de um dos cônjuges ou missas de Natal.

Conservadores – Esse avanço sem precedentes na história recente da Igreja Católica
parece uma conquista de
liberais contra ortodoxos,
mas não foi capitaneado por bispos progressistas ou fiéis identificados com a Teologia
da Libertação. As pastorais
de segunda união surgiram e
se multiplicaram em cidades
mais conservadoras, nas quais ainda prevalecem os casamentos formais. O berço é o Estado de
São Paulo, onde mais de 80% dos casamentos são na Igreja. Em
cidades como Jundiaí, São José do Rio Preto, São José dos Campos, Bauru e Taubaté, esses grupos crescem em progressão geométrica.
A experiência pioneira partiu de Jundiaí, com 320 mil habitantes, onde
um promotor público aposentado, João Bosco Oliveira, 65 anos, e sua segunda mulher, Aparecida de Fátima Fonseca Oliveira, 45, decidiram
há menos de dez anos iniciar uma espécie de levante santo. A pedra fundamental para a volta dos descasados foi uma exortação apostólica do papa João Paulo II em novembro de 1981, que tinha tudo para cair
no vazio. Nela, o papa pedia uma Igreja mais misericordiosa com
os “divorciados que contraem nova união”.

“A Igreja tinha decidido acolher esses casais, mas não sabia como.
Nós demos um empurrãozinho”, conta João Bosco. Ao lado do bispo
de Jundiaí, dom Roberto Pinarello de Almeida, já falecido, ele criou
em 1993 a primeira pastoral de descasados do País – e do mundo.
Hoje existem 40 grupos paroquiais só em Jundiaí, com mais de 300 pessoas, e pastorais espalhadas por cidades como Uberlândia,
Maceió, Natal, Vitória, Niterói, Porto Alegre e Florianópolis. O Brasil
está exportando a novidade para países latino-americanos. Casado
s no civil desde 1987, João Bosco e Aparecida viveram durante 12
anos em segunda união, até que a primeira mulher do promotor morreu
e ele casou-se novamente na Igreja. Acabam de lançar, pela editora Loyola, ligada aos padres jesuítas, o livro Casais em segunda união
– uma experiência pioneira, o primeiro a abordar o tema.

Não poder receber os outros sacramentos
não parece incomodar a maioria dos
“segundo-casamentistas”. Unidos há 16 anos,
o representante comercial Vilson Almeida
de Moraes, 51 anos, e Ana Maria de Andrade, 37, andavam afastados do catolicismo. Filho
de evangélicos, Vilson frequentou a Igreja Batista e até o budismo, enquanto Ana experimentou o espiritismo. Há dois anos passaram a frequentar o movimento de casais
de segunda união da Paróquia de São Sebastião de Itaipu, em Niterói (RJ). Dizem conviver bem com os limites ainda existentes, como a impossibilidade de confessar e comungar. “Podemos fazer quase tudo”, explica Vilson,
que faz parte do grupo de liturgia da igreja, coordena cursos de orientação religiosa e encontros de jovens.

Posso não ter o sacramento do matrimônio, mas meu casamento
foi abençoado”, acredita Ana Maria. Outro casal de segunda união,
o representante comercial Márcio Barreto, 51 anos, e a professora
Rita de Cássia, 45, decidiram catequizar os filhos. “Em vez de falar
mal do casamento, ensinamos os valores dessa união. Eles vão te
r menos chances de errar”, avalia Rita. Em Niterói, três grupos
somando 15 casais já participam da paróquia.

O novo posicionamento da Igreja sobre separações se refletiu em
um fórum especial, o Tribunal Eclesiástico do Matrimônio. Única Corte capaz de tornar sem efeito esse sacramento, o Tribunal Eclesiástico
está sofrendo um boom de processos. Esses tribunais, com várias instâncias e a palavra final do papa, têm o poder, depois de uma investigação, de considerar nulo um casamento feito na Igreja,
abrindo caminho para uma nova união. Ancorados no vastíssimo
conceito de “vícios de consentimento matrimonial”, os tribunais eclesiásticos têm tornado nulos um número cada vez maior de casamentos feitos no Brasil. Não há estatística oficial na CNBB, mas
o bispo Aloísio José Leal Penna, responsável pela Pastoral da Família,
diz que são “muitas centenas” de processos por ano. “Cada vez mais
as pessoas se casam de forma imatura, impensada. É o ‘eterno
enquanto dure’ de Vinícius de Moraes, que é lindo como poesia, mas
ruim para a Igreja”, diz o bispo Aloísio Penna, que tem uma máxima
sobre o casamento nos tempos modernos: “Um bom curso de preparação para o casamento, desses feitos aos montes no Brasil, deve ser aquele que leve muita gente a desistir de casar”, surpreende. “Não se deve casar pela cerimônia, pelo bolo ou pelo vestido de noiva. Quem quer
só fazer festa não deve fazer na Igreja”, diz. Santas palavras.