A cúpula do PMDB articula, no alvorecer do governo Lula, o seu primeiro grande ato de traição. Ensaia sua união ao PT preparada para qualquer coisa – menos perder. Lançou a candidatura do líder Renan Calheiro (AL) à presidência do Senado oferecendo, em troca, o apoio ao PT para eleger o petista José Dirceu (SP) presidente da Câmara dos Deputados. Mas, se por qualquer motivo, o escolhido para presidir o Senado for outro nome fora da cúpula, como o do senador José Sarney (AP), o grupo abandonará o barco petista e fechará aliança com o PSDB e o PFL em torno da candidatura de Michel Temer (SP) para presidente da Câmara, oferecendo a tucanos e pefelistas o comando do Senado. O trio que comanda o PMDB há sete anos vem agindo com mão forte no controle do partido. Antes das eleições, Temer, Renan e Geddel Vieira Lima (BA) não aceitaram uma aliança do PMDB com o PT porque o vice da chapa seria de fora do grupo. Também rechaçaram a tese da candidatura própria do PMDB porque Itamar Franco (MG) ou Pedro Simon (RS) poderia ser o candidato e não fazem parte da cúpula. Apostaram todas as suas fichas na aliança com o PSDB de José Serra (SP) assegurando a vaga de vice para um nome de confiança: o do deputado Henrique Eduardo Alves (RN), que naufragou depois da revelação por ISTOÉ da existência de contas clandestinas em paraísos fiscais.

Esperto, o comando peemedebista manobra agora para garantir sua sobrevivência. Lançou a candidatura de Renan, com o aval do PT, para esmagar a insurreição de Sarney. Mas os novos ares na política podem oxigenar a rebeldia da base peemedebista ao velho comando. Na terça-feira 5, ao saber que José Dirceu tinha acabado de deixar o apartamento de Temer, na Asa Sul de Brasília, com um acordo já alinhavado, o presidente do PSDB, José Aníbal (SP), telefonou, assustado com o virtual bloco PMDB-PT: “Michel, que história é essa?” Temer minimizou o encontro e deixou insinuado que o acerto dependia da vitória de Renan no Senado. Na mes ma terça-feira, dois dias antes da reunião inicial de trabalhadores e empresários em São Paulo, as principais lideranças do PT em Brasília costuraram com o comando do PMDB um entendimento que pode garantir a governabilidade e a suave decolagem da nova administração, a partir de janeiro. “Não temos nenhum compromisso com José Sarney para a presidência do Senado”, reconheceu José Dirceu a Temer, na sala do apartamento do presidente do PMDB. A frase era o fecho de uma série de atos combinados para selar um namoro que, ainda longe de um casamento, deve ser decisivo para uma relação estável no plano doméstico do Legislativo: um bloco majoritário de 294 cadeiras na Câmara e 49 no Senado num Congresso de 513 deputados e 81 senadores.

A maior bancada do Senado garante a presidência ao PMDB, e, da mesma forma, a onda vermelha na Câmara assegura o seu comando ao PT, como reza a tradição do Legislativo. O que ameaçava este flerte era a desinibição incomum do ex-presidente José Sarney, que subiu no palanque de Lula ainda no primeiro turno e se declarou candidato àdireção do Senado sem se dar ao trabalho de consultar o comando do partido. Enquanto Sarney desfilava na imprensa, a cúpula do PMDB operava, como de hábito, nos bastidores. Na manhã de quinta-feira 31, o senador Roberto Requião, governador eleito do Paraná, ocupava mais
uma vez a tribuna para desancar os caciques peemedebistas, embora tenha conversado antes com um dos alvos do discurso, prometendo diminuir o tom dali para a frente.

No mesmo dia, dando o primeiro sinal público de conversão, o líder do Senado, Renan Calheiros, falou à imprensa sobre a importância da “governabilidade”. Era uma resposta clara aos sinais fortes do QG petista de que o PMDB era o “sócio preferencial” para um bloco majoritário de centro-esquerda no Congresso. Renan foi ao gabinete do senador Sérgio Machado (PMDB-CE) – aliado do PT na eleição que perdeu no Ceará para o tucano Lúcio Alcântara – e lá ganhou o apoio da influente base pernambucana: o senador eleito Sérgio Guerra e Jarbas Vasconcelos, o governador que preferiu a reeleição ao sacrifício como vice na chapa de José Serra.

Na sexta 31, Machado esteve em São Paulo para uma decisiva conversa com José Dirceu e afinar o discurso. No domingo 3, o senador dos dez milhões de votos, Aloizio Mercadante, passou a limpo a biografia do líder do PMDB no Senado no programa de Boris Casoy: “Renan Calheiros é uma liderança que impõe respeito.” Na segunda 4, o próprio líder do PT na Câmara, João Paulo Cunha, rasgava a fantasia: “E quem disse que o Lula quer o Sarney na presidência do Senado?”, desafiava.

Na manhã seguinte, quatro horas antes da reunião da executiva nacional do PMDB com os governadores eleitos, o triunvirato que lidera o PT – Dirceu, João Paulo e o secretário-executivo Luiz Dulci – deu o passo decisivo: visitou o comando peemedebista na residência particular de Temer, sempre escoltado pelos líderes Geddel e Renan. Diante da imprensa, Dirceu fez sua opção pela negociação com os “canais institucionais” do PMDB, ignorando publicamente a candidatura de Sarney. O ex-presidente acusou o golpe. No início da tarde, no cafezinho do Senado, enquanto o comando do PMDB se reunia no hotel Bonaparte, Sarney avisava a um senador amigo: “Não estou mais em idade de disputar nada.” A hipótese de sagração por consenso estava sendo descartada, naquele mesmo instante, pela voz do governador de Pernambuco: “Quem escolhe o presidente do Senado é a bancada do PMDB. Pode ser qualquer um, menos o Sarney, porque ele não é do PMDB”, disse Jarbas, sem ser contestado.

Político experiente, Sarney jogou sua última cartada na véspera, ao ter uma áspera reunião à noite com Temer. “Perdemos a eleição e precisamos ouvir as bases do partido, Temer. Convoque uma convenção extraordinária.” “É, vamos ver”, desconversou o presidente do PMDB. “É melhor você convocar a convenção do que ser intimado por 1/3 dos diretórios”, ameaçou Sarney. O reconhecimento do comando do PT de que a direção correta é o PMDB e não Sarney, pode ter desequilibrado, por enquanto, a luta interna no partido. Mas o jogo de aparências, de um lado e outro, mostra que as questões domésticas não admitem nenhum tipo de ingerência. Nem mesmo o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, caiu na armadilha. Na quarta-feira, num encontro com o governador eleito de Santa Catarina, Luís Henrique (PMDB), apoiado pelo PT, Lula deu sua palavra final sobre a luta pelo comando do Senado: “Nunca aceitamos interferência do Executivo. O problema do Senado não deve ser tratado com o presidente da República, mas com o PT. É um problema do Zé Dirceu, não do Lula.” O respeito de Lula e seus líderes às formalidades do jogo parlamentar é a melhor garantia contra as turbulências na decolagem do governo. “Nossa idéia é estabelecer
uma base comum para dar sustentação mais sólida no Congresso”, assegurou Dirceu a Temer.

Assim que a comitiva petista deixou seu apartamento, Temer chamou os governadores Jarbas Vasconcelos (PE) e Joaquim Roriz (DF) e o deputado Moreira Franco (RJ) para uma última conversa, antes do encontro no hotel. Na executiva, o sentimento geral era reconhecer a derrota nas urnas, sem rejeitar o apoio às reformas que o PMDB pediu no governo FHC e agora pretende reafirmar no governo Lula. A reunião de três horas do PMDB produziu uma magra nota de dez linhas cuidadosamente produzidas para não abrigar as palavras “oposição” ou “apoio ao governo”. Nem mesmo a sacrossanta “governabilidade”, que poderia sugerir algum sentimento fisiológico, foi admitida na nota. “Alguém aqui recebeu algum convite para cargos no governo Lula? Então, tirem isso da pauta”, defendeu Moreira Franco. A intervenção mais xiita na reunião foi do deputado gaúcho Darcísio Perondi, que pedia a oposição simples e
radical ao PT: “Eles usaram métodos quase nazi-fascistas, nos trataram como bandidos e facínoras.” Até a doce Rita Camata, candidata derrotada a vice na chapa de Serra, apareceu na reunião, depois de muita insistência, para se queixar da imprensa: “As redações hoje vivem uma relação de paixão arrebatadora por Lula.” E, num desabafo fora de hora, Rita traiu sua mágoa com as urnas: “O Serra é o único comprometido com as mudanças, não este que está aí.”

O PMDB saiu da reunião prometendo ouvir as bancadas no Congresso e nos Estados, num processo que pode se prolongar até dezembro. O PMDB velho de guerra ganha tempo e espaço para fazer o que sempre faz: juntar os pedaços, dar a volta por cima e continuar colado ao poder.