O leitor interessado em música popular brasileira pode vasculhar enciclopédias, revistas e publicações acadêmicas que não vai encontrar um verbete ou referência aos chamados cantores bregas, como Waldick Soriano, Odair José, a dupla Dom & Ravel, Cláudio Fontana, Paulo Sérgio, Nelson Ned, Benito Di Paula, Agnaldo Timóteo ou até mesmo o lascivo-romântico Wando. Todos foram tragados pelo buraco negro do esquecimento oficial. Baseado no que existe para ler, também parece que só a nata da MPB se viu atingida pelo arbítrio da censura renascida com toda a força nos anos de chumbo da ditadura militar.

Aos considerados popularescos, não raro coube a pecha de colaboracionistas, o que em alguns poucos casos se mostrou verdadeiro. Eu não sou cachorro, não – música popular cafona e ditadura militar (Record, 458 págs.,
R$ 40), escrito pelo historiador e jornalista baiano Paulo Cesar de
Araújo, 40 anos – que trabalha na rede pública do Rio de Janeiro
como professor de história no ensino fundamental e médio –, tem
como principal mérito tocar nesta ferida ao tentar estabelecer alguns parâmetros e apontar mentiras tidas como verdades absolutas.
Elaborado a partir de 1995 como tese de mestrado em memória socia
l e documentação para a Universidade do Rio do Janeiro (UniRio),
o trabalho defendido em 1999 recebeu “A com louvor”. Araújo, que passou os três anos seguintes lapidando e atualizando seu texto
para a publicação, deu a seguinte entrevista a ISTOÉ.

ISTOÉ – O que o motivou a falar dos cantores ditos bregas?
Paulo Cesar de Araújo –
Cresci em Vitória da Conquista, onde ouvia muito rádio. E, durante os anos 70, cantores como Nelson Ned e Paulo Sérgio faziam muito sucesso. Mais tarde, quando comecei a estudar informalmente a música brasileira, observei que esses nomes não apareciam em nenhum livro, em nenhum fascículo em meio a montes de publicações que sobravam nas bancas. Notei que seus nomes não eram citados em debates, em polêmicas. Que diabo estava acontecendo? Foi aí que resolvi mergulhar no porquê dessa exclusão. Desde o início percebi que se tratava de uma reação das elites culturais, uma vez que esses artistas eram de muita popularidade, mas estavam excluídos da historiografia. Nem José Ramos Tinhorão, nem Ricardo Cravo Albin, nem Sérgio Cabral, ninguém tocava no nome deles.

ISTOÉ – A que se atribui essa atitude?
Araújo –
Eu abordo essa questão num dos capítulos do meu livro
Tradição & modernidade – vertentes interpretativas da música popular brasileira
, na qual aponto que os críticos, pesquisadores, musicólogos, enfim, os formadores de opinião, em sua maioria, pertencem a um segmento de classe média e formação universitária. O tipo de público
que faz seu julgamento através da defesa do “autêntico”, formulada
por nomes como Tinhorão, ou da “modernidade”, expressa pelo poeta Augusto de Campos em seu livro Balanço da bossa. O que não for tradicional ou moderno não existe. Devido ao divórcio que existe entre
a elite e o povo no Brasil, os ditos “cafonas” foram atirados no limbo
da história. O que me incomoda é pensar que, se toda essa geração
de artistas de sucesso foi excluída, quantos indivíduos que trabalhavam com literatura, cinema e outras atividades podem ter sido “desaparecidos” pela elite? É como se não houvesse uma relação entre esses artistas
e a ditadura, como se vivessem em outro planeta.

ISTOÉ – O que é uma impossibilidade, já que eram artistas públicos.
Araújo –
Esses cantores extrapolaram fronteiras. Depois de Carmen Miranda, Nelson Ned seguramente é o cantor brasileiro de maior sucesso popular fora do País. Havia aquele negócio de que tudo que é sucesso em Ipanema é sucesso nacional. Tudo que é sucesso no resto do País é sucesso regional. Ned fez sucesso nas três Américas, na Europa, na África, sendo conhecido como o pequeno gigante da canção.

ISTOÉ – Os cantores considerados cafonas também
foram censurados?
Araújo –
Sim, esses artistas tiveram canções proibidas devido ao
seu conteúdo intrínseco e não por “outros motivos” – entenda-se
ameaça comunista, como aconteceu com Caetano Veloso e Chico Buarque de Hollanda. Por isso delimitei meu livro numa década a partir
da decretação do AI-5, para desfazer de vez o contraste entre o que
era comprometido e o que era alienado. Muitos desses artistas que
cito eram mesmo alienados. Waldik Soriano, por exemplo, se lembra
dos tanques na rua no dia da decretação do AI-5, evidentemente confundindo com o dia do golpe militar de 1964. Nelson Ned chega
a comparar o impacto causado em sua vida por esse ato de exceção
com o impacto causado pela chegada de uma sonda em Marte. Sim,
eles estavam por fora da questão política, mas havia mais de um
aspecto passível de repressão, havia outras questões profundas,
como a sexualidade, a moral imposta pela Igreja, as drogas. Eles
eram cantores do cotidiano, da realidade do cotidiano, mas as
chamadas questões comportamentais eram relativizadas.

ISTOÉ – Curioso é que esse contingente cafona vendia horrores, mas não tinha tanta visibilidade na mídia.
Araújo –
O que faz de Odair José um compositor cafona e de Chico Buarque um ícone da MPB é que este é identificado com a tradição do samba e com a modernidade da bossa nova, enquanto o primeiro não se enquadra nem em uma coisa nem outra. Até 1975, Odair vendeu cerca de três milhões de discos, o que é um exagero até hoje em dia.

ISTOÉ – Como você enquadra o Odair José?
Araújo –
Se há uma dificuldade em enquadrar o Odair José é porque
ele era o cantor das prostitutas, das empregadas domésticas, o cara
que encarava a questão sexual. Como ele próprio diz, antes dele o que
se cantava era o namoro no portão sob a luz do luar. Odair veio com
a discussão sobre os anticoncepcionais com a música Uma vida só, conhecida como Pare de tomar a pílula – a canção ficou proibida
durante os governos Médici e Geisel. Ele também falava da iniciação sexual em A primeira noite de um homem, proibida pessoalmente
pelo então todo-poderoso general Golbery do Couto e Silva. Flertava
com a prostituição em Vou tirar você deste lugar, Essa noite você
vai ter que ser minha
e As noites que você passou comigo, todas devidamente mutiladas pela censura.

ISTOÉ – Já que a censura era intransigente, como eles
escapavam da vigilância?
Araújo –
Houve o célebre Julinho da Adelaide, um sambista fictício inventado por Chico Buarque. E havia o Luiz Ayrão, que é um caso à parte. Fez faculdade, formou-se advogado. Quando o golpe de 1964 completou 13 anos, Ayrão compôs o samba 13 anos, com versos do tipo “13 anos eu te aturo e não aguento mais” e “Você vem me enclausurando que nem Alcatraz”. A música foi proibida de imediato. Na maior cara-de-pau, Ayrão mudou o título para Divórcio e enviou novamente a canção para a censura sem mudar uma vírgula. Passou como se fosse nova. Na mesma leva de 13 anos havia a igualmente proibida Meu caro amigo Chico, espécie de resposta a meu Caro amigo, de Chico Buarque, que nunca foi censurada. Ayrão estava sendo intencional, enfrentando o regime, como Julinho da Adelaide. Mas, por algum motivo, as canções proibidas de Luiz Ayrão não lhe traziam o mesmo prestígio de Chico.

ISTOÉ – Como você analisa o caso de Wilson Simonal?
Araújo –
Eu compartilho do que jornalistas insuspeitos como Nelson Motta e Léa Penteado escreveram. Nada foi comprovado contra ele. Não existe ninguém que tenha sido torturado por sua causa. O SNI negou ligações com ele. Não há a menor lógica, pois, com a fama que tinha, quem se atreveria a combinar alguma ação clandestina perto dele? Mesmo assim ele teve sua carreira banida, num ato típico do macartismo. O que existe é o fato policial. Simonal entregou um funcionário seu para a polícia, alegando que ele o havia roubado. E só.

ISTOÉ – E com Dom & Ravel?
Araújo –
Eles eram dois imigrantes cearenses tentando subir na vida.
É inacreditável o que aconteceu com eles. Se formos examinar seu repertório, de ufanista mesmo só há a música Eu te amo meu Brasil,
um sucesso do grupo Os Incríveis. Os mesmos Incríveis hoje são mais associados à jovem guarda, apesar de terem gravado pérolas como
Este é o meu Brasil
, Este é um país que vai pra frente, O Brasil é feito por nós e Você precisa acreditar, além do compacto trazendo o Hino Nacional de um lado e o da Independência do outro. E que dizer do
Miguel Gustavo, o autor de Pra frente Brasil? O cara fez todos os hinos da ditadura. Foi o Ary Barroso da ditadura militar, com temas como
Brasil, eu adoro você!, Marcha do sesquicentenário da Independência, além de marchas exaltando o Exército e a Transamazônica. Falecido precocemente, aos 49 anos, o carioca entrou para a história como
autor de sucessos cantados por Jorge Veiga, Aracy de Almeida,
Eliseth Cardoso, e quem ficou com a pecha de entreguista foram
Dom & Ravel, que posavam ao lado de presidentes e afirmavam
para quem quisesse ouvir que faziam música para faturar.

ISTOÉ – Você é fã do gênero sobre o qual escreveu?
Araújo –
No meu livro, eu não uso nenhum adjetivo para qualificar ou desqualificar qualquer canção ou artista citados. A música aparece ali como um fenômeno social. Mas, evidentemente, eu tenho minhas preferências musicais e elas são bastante amplas. Gosto de ouvir desde João Gilberto até Waldik Soriano. Aliás, esse repertório cafona não me faz rir, me emociona, me faz chorar, principalmente as canções de Paulo Sérgio, que eu ouvia muito na minha infância.

ISTOÉ – O que esses artistas estão fazendo hoje em dia?
Araújo –
O Odair José não dá show no eixo Rio–São Paulo.
Mas não pára de trabalhar, do Rio Grande do Sul ao Amazonas.
Você vai ver um show desses caras e se surpreende com
o número de músicas que você conhece.

ISTOÉ – Além do próprio esquecimento, você encontrou uma série de distorções históricas?
Araújo –
Cláudio Fontana compôs uma canção que perguntava:
“Você teria por ele este mesmo amor/se Jesus fosse um homem
de cor?” Isso em 1974, quando Lecy Brandão, hoje considerada
da resistência, estava cantando Nada sei de preconceito, exaltando
uma suposta democracia racial no Brasil. Ou seja, há muita falácia,
as pessoas não pesquisam e criam mitos.

ISTOÉ – O preconceito persiste?
Araújo –
É claro que ainda existe. Veja o caso das duplas caipiras e suas baladas românticas. Atingem os novos-ricos, mas não há uma mistura com a intelectualidade. É uma doença, já dizia Caetano, ignorar os cantores ditos cafonas. O tropicalismo veio para misturar. A família Veloso prestou um grande serviço, trazendo Roberto Carlos para o público deles, para quem Maria Bethânia até gravou um disco-tributo.

ISTOÉ – Existe esta mistura no livro?
Araújo –
O nome mais citado no meu livro é Odair José, depois vem Chico Buarque, seguidos de Waldick Soriano e Caetano Veloso. Não quis cometer os mesmos erros de quem escreveu sobre a MPB e ignorou os cafonas. Ao escrever sobre Odair José, eu precisei falar de Chico Buarque porque ambos atuavam no mesmo país, na mesma ditadura e na mesma gravadora multinacional. Essa trajetória dos cafonas no período da ditadura militar daria um excelente samba-enredo. Já pensou a ala da pílula, o carro alegórico das putas, o bloco do “Eu não sou cachorro não”? Mas qual carnavalesco teria essa coragem?