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DESFECHO
Isabel Bierrenbach e o filho Antonio, 3 anos, desembarcaram na quinta-feira 14,
no Rio: o menino ficou cinco meses ilegalmente nos EUA com o pai

Quando botou os pés em solo brasileiro, na manhã da quinta-feira 14, logo depois de desembarcar do voo 905 da American Airlines, vindo dos Estados Unidos, a brasileira Isabel Bierrenbach, 33 anos, começava um novo caminho em sua vida. Ela trazia o filho Antonio, 3 anos, que passou os últimos cinco meses ilegalmente na Califórnia com o pai, o seu ex-marido, Márcio Sícoli, técnico de vôlei de praia, e radicado naquele país. O casal é mais um que desfez os laços amorosos e entrou em guerra pela guarda do filho, cada qual em um país. Nesse caso, ambos são brasileiros e viviam desde 2007 em Los Angeles, onde a criança nasceu. A separação aconteceu no ano passado, e Isabel decidiu voltar a morar no Rio de Janeiro para criar o filho com o apoio da família. Sícoli concordou.

Em janeiro, porém, ele levou Antonio para passar um mês de férias nos EUA e entrou com um pedido de guarda, conseguindo, assim, reter a criança no país. Foi graças à cooperação jurídica entre nações prevista na Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças que Isabel recuperou o filho. O pacto, do qual o Brasil é signatário desde 2000, tem o objetivo de coibir o deslocamento internacional ilegal de menores. Atualmente tramitam no País outros 142 processos desse tipo, com pais em nações diferentes, esperando uma solução.

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DISTÂNCIA
Eliana Marz decidiu ficar no Brasil com a filha Elena, 12 anos,
mas o pai conseguiu repatriar a menina para a Alemanha

As disputas internacionais cresceram muito. O número de crianças mandadas para o exterior subiu nove vezes entre 2002 e 2011 e o de menores devolvidos aumentou quatro vezes no mesmo período, segundo dados da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Nos últimos nove anos, 129 menores foram repatriados ao Brasil e 359 foram enviados para o exterior. O caso mais rumoroso foi o do menino Sean Goldman, devolvido ao pai americano em 2009 (leia na pág. 62). Todas as histórias envolvem dor, sofrimento e perdas, pois são famílias desfeitas de forma traumática – em geral o pai ou a mãe viaja para o Brasil ou para o exterior com o filho e decide não mais voltar –, a criança fica no centro de uma briga sangrenta e, sobretudo, privada do convívio com um dos pais.

Juristas brasileiros elogiam o pacto de Haia, mas não sua aplicação no País. “A Convenção é sábia, o problema é a forma como vem sendo empregada”, diz o coordenador da Assessoria Internacional da Defensoria Pública da União, Afonso Carlos Roberto do Prado. Exemplo disso, segundo ele, é o caso da baiana Adriana Botelho, 32 anos, que estava no trabalho, em dezembro, quando recebeu um telefonema aflito da mãe: “Venha correndo que tem dois policiais federais e um oficial de justiça dizendo que vão levar a Maria Clara.” A menina, de 6 anos, é filha de Adriana com o produtor cultural português José Eurico Rodrigues Santana. Eles se conheceram em 2003 e foram morar em Portugal. Cinco anos depois se separaram, Adriana veio de férias ao Brasil e decidiu não retornar para Portugal com Maria Clara. Santana deu queixa à Autoridade Central portuguesa, que cobrou providências à correspondente brasileira, exigindo a repatriação da criança.

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DISPUTA
A menina Maria Clara, 6 anos, retornou para Portugal a fim
de viver com o pai contra a vontade da mãe, Adriana Botelho

De seu lado, Adriana já havia entrado com ação solicitando a guarda da menina. Os representantes da lei que chegaram à casa dela, porém, estavam munidos de liminar de busca e apreensão da criança, expedida horas antes por uma juíza federal. O episódio aconteceu no fim do ano, na véspera do recesso judiciário. Enquanto a mãe se desesperava no dia seguinte sem saber a quem recorrer, a menina embarcava para Portugal. Adriana nunca mais a viu. “Minha filha agora é órfã de mãe viva”, diz, entre lágrimas. “Avisamos a um desembargador que a menina iria embarcar no dia seguinte e pedimos a liminar, mas quando ele concedeu ela já tinha embarcado”, conta o defensor Prado. “Estão despachando as crianças para o exterior a toque de caixa”, reclama o advogado Luiz Octavio Rocha Miranda, do Instituto Brasileiro de Direito de Família, experiente em processos fundamentados na Convenção de Haia. “Da maneira como está sendo tratada, a Convenção viola a soberania dos tribunais brasileiros”, afirma Rocha Miranda.

Alguns especialistas defendem que é um erro atribuir à Justiça Federal a competência para julgar esse tipo de caso, quando a Justiça Estadual tem Varas especializadas, as de Família. A jurista gaúcha Maria Berenice Dias, especialista em direito de família, é dessa opinião. “A Convenção de Haia diz que a criança tem de ir para o lugar onde ela estava quando o processo é iniciado com menos de um ano da transferência. Não se faz uma avaliação. Eles tratam a criança como se fosse um objeto”, protesta. O critério que prevalece é o da residência habitual. “Pode ser até filho de casal brasileiro, mas se a residência for, por exemplo, nos Estados Unidos, é o juiz americano quem vai decidir”, explica o juiz federal Jorge Antonio Maurique, de Santa Catarina, integrante do órgão da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos encarregado da aplicação da Convenção no Brasil. “Porque é onde estão a escola, os amigos, a família, o ambiente da criança.”

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ÚLTIMO MOMENTO
O menino João Lucas, 7, já estava no aeroporto para embarcar com o pai
para a Alemanha quando sua mãe conseguiu barrar a viagem na Justiça

É para que a filha retome sua rotina no Canadá que luta o paulistano César Pimenta Caetano, 44 anos, radicado no país há 23. Ele se casou em 2003 com a mineira Luciana Drumond Pires Caetano, 33, e da união nasceu Alice, hoje com 9 anos. Todos moraram juntos em Toronto até 2007, quando aconteceu o divórcio. A custódia foi dada para a mãe, sob consentimento de Caetano, desde que respeitados os direitos de visita do pai e com a proibição de a criança deixar o Canadá sem autorização por escrito. Em outubro de 2009 a Justiça canadense deu a Luciana 45 dias para que ela viajasse ao Brasil com a menina. Ela nunca mais voltou e se fixou em Goiânia. Caetano deu queixa à Autoridade Central do Canadá em fevereiro de 2010, mas ainda não conseguiu reaver Alice. “Estou nessa espera há três anos. O Brasil podia cumprir rápido a Convenção”, afirma ele. “Eu e a Alice temos o direito de conviver”, diz. “Esse tempo não se recupera. Ela trocou os dentes e eu não vi. No telefone, quando falamos, ela chora e diz que está com saudade. Isso dói muito.”

O Coordenador de Cooperação Jurídica Internacional da Advocacia Geral da União (AGU), Sérgio Brito, esclarece que a Convenção de Haia não discute guarda de criança e, sim, uma questão a ser resolvida entre nações. Mas, claro, é algo muito complexo e envolve casos que podem modificar a norma básica. “A própria Convenção veta o retorno de uma criança, em caso de risco grave para o menor de ordem física ou psíquica”, argumenta a advogada Gisele Martorelli. Ela cuida do processo do menino João Lucas, 7 anos, no Recife, onde mora a mãe, Camila Pinheiro, 31, que disputa a guarda com o ex-marido, o advogado alemão Mathias Kubel, 34, residente em Fulda. O ex-casal iniciou um relacionamento em 2001, na Alemanha, e João Lucas nasceu três anos depois. Em junho de 2007 Camila trouxe a criança ao Brasil com autorização do pai para passear e resolveu não voltar, alegando maus-tratos e desgaste no casamento.

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LUTA
César Caetano faz campanha para que sua filha Alice, 9 anos, volte
para o Canadá. Ela viajou com a mãe ao Brasil e nunca mais retornou

A história pela disputa desse menino parece filme, tantos são os lances espetaculares. Camila obteve a guarda provisória em 2007 na Justiça estadual. Kubel acionou a Convenção de Haia e conseguiu que a União desse tutela antecipada para repatriar João Lucas. A Polícia Federal pegou a criança e a entregou ao cônsul alemão, que a repassou imediatamente para o pai, no Recife. “Enquanto isso, entrei com recurso e o Tribunal Regional Federal (TRF) cassou essa liminar do juiz de primeiro grau”, conta a advogada Gisele. A criança foi tirada do pai e entregue à mãe novamente. Entretanto, em 2009, a Justiça Federal determinou novamente a apreensão e restituição do garoto ao governo alemão, e o pai, que estava no Brasil, pegou o garoto mais uma vez. “Meu filho dizia: ‘Mamãe, mamãe, não me deixa ir’, e eu não podia fazer nada. É como se arrancassem um pedaço da gente”, recorda Camila. Novas e rápidas ações levaram a um desfecho apoteótico. A advogada recorreu outra vez ao TRF, que anulou a sentença do juiz, mas o alemão já estava no aeroporto do Recife para embarcar com o filho. O procurador da República passou um fax para o superintendente da Polícia Federal e agentes policiais arrancaram, literalmente, o menino dos braços do pai momentos antes de ele entrar no avião para a Alemanha.

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Ser protagonista de tamanho drama deixa marcas na criança. “Ela fica com isso guardado. Pode até não ter lembrança, mas tem o registro de uma ocasião em que experimentou uma angústia muito forte”, afirma a psicanalista Ana Maria Iencarelli, especialista em infância e adolescência. “Essas coisas ficam fotografadas como um flash na cabeça da criança. Fica o registro da emoção, do medo, do mal-estar. Isso vai retornar diante de situação parecida”, diz. A menina Elena, 12 anos, que tem síndrome de Down, foi levada da casa da mãe em Brasília por policiais munidos de um mandado de busca e apreensão. “Ela entrou em choque, chorava e gritava”, lembra, aos prantos, a professora Eliana Marz, 47. A disputa pela adolescente começou no ano passado, quando a professora veio para o Brasil e decidiu se separar do marido alemão, Johannes Josef März, 56 anos, que é diretor-veterinário do Estado da Bavária. Ela resolveu não mais voltar para Munique, alegando violência doméstica contra ela e abuso sexual contra a filha. Em solo brasileiro conseguiu a tutela da menina, mas o ex-marido acionou a Convenção de Haia. Na véspera do Natal, a garota foi levada. Mãe e filha se agarraram, mas não resistiram. Eliana nunca mais viu a menina e passou o Dia das Mães acampada na porta da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, em Brasília, segurando um cartaz com a foto de Elena.

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Alguns pais optam por cair na clandestinidade para não ter de entregar o filho às autoridades. É o caso de uma mãe brasileira que hoje é procurada pela polícia internacional e pediu para ter sua identidade preservada. Seu filho deveria ter sido repatriado para a Suécia, onde vive o pai do garoto, mas ela fugiu. Em função disso, foi expedida uma ordem internacional de prisão contra ela. Localizada por ISTOÉ, aceitou contar sua história por e-mail. Identificou-se como R.B. “Estamos vivendo dias e meses de completo terror. Meu filho tem apenas 7 anos e está em pânico, com medo de ser levado e nunca mais me ver”, escreveu ela. R.B. chegou a obter a guarda provisória do filho na Justiça brasileira, alegando que deixou a Suécia seguindo orientação da Embaixada, onde o pai da criança teria assinado a autorização para retorno do filho ao Brasil. O Itamaraty respondeu à ISTOÉ que não comenta este caso ou outros relacionados à Convenção e que os consulados e embaixadas apenas apoiam a Secretaria Nacional dos Direito Humanos comparecendo a audiências judiciais e juntando informações sobre os casos.

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São 87 as nações signatárias do pacto de Haia – o Japão e os países islâmicos estão entre os que não assinaram –, mas a interpretação de cada uma diverge bastante. “A Alemanha, por exemplo, raramente devolve as crianças”, afirma o desembargador catarinense Jorge Antonio Maurique. A advogada paulista Jacy Raduan, 32 anos, sentiu isso na pele. Ela tem dupla nacionalidade e foi fazer uma pós-graduação na Alemanha, onde conheceu o ex-marido. O casal teve dois meninos, hoje com 3 e 5 anos. Em 2008, a família se mudou para o Brasil. “Mas meu marido não se adaptou e voltou sozinho para a Alemanha”, conta. Ela obteve o divórcio e a guarda das crianças. No ano passado, porém, quando levou os filhos para visitar o pai na Alemanha, recebeu o que chama de “golpe baixo”: o ex-marido entrou com uma ação e ganhou imediatamente a guarda dos garotos. Jacy acionou a Convenção no Brasil, mas não tem esperança de recuperá-los. Ela explica que na Alemanha existe um órgão burocrático chamado Jugendamt, uma espécie de juizado de menores. “Esse órgão toma todas as decisões e a Justiça alemã homologa. É uma coisa horrorosa”, diz ela.

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Jacy se viu obrigada a voltar a morar em Baden-Baden para ter um mínimo contato com as crianças. “Não posso dormir uma noite com meus filhos. Só posso vê-los sob a vigilância do pai ou um segurança do governo alemão”, relata. “O fato é que a Alemanha precisa de crianças. Nos próximos 50 anos, a população do país terá uma redução de 15 milhões de habitantes”, esclarece a advogada, que se especializou em direito internacional. “Na prática, o Jugendamt rouba os filhos de estrangeiros”, acusa Jacy. Procurados por ISTOÉ, a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos preferiu não se pronunciar sob a alegação de segredo de Justiça dos casos. No Congresso Nacional está parada uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que transfere da Justiça Federal para as estaduais os casos envolvendo a Convenção de Haia. Enquanto isso, a professora Eliana Marz tenta organizar a associação “As mães de braços vazios” que lutará para que elas consigam ter seus filhos de volta.

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