Diretor-geral da ONU para a Alimentação e a Agricultura, o brasileiro diz que 900 milhões de pessoas passam fome no mundo por falta de acesso à comida

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“A FAO é como o Titanic, um navio
grande e pesado. Estamos no processo
de girar essa embarcação”
, diz ele

José Graziano, 62 anos, sempre esteve na trincheira do combate à fome. Agrônomo de formação, foi ele o responsável pelo desenho do programa Fome Zero, em 2001, durante a campanha eleitoral presidencial. Eleito Luiz Inácio Lula da Silva, Graziano, em um movimento natural, foi para o governo comandar a implementação e o desenvolvimento do programa, no qual permaneceu até 2006. O sucesso da iniciativa gabaritou o agrônomo para voos maiores e, em 2011, ele disputou e ganhou a eleição para o cargo de diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), sagrando-se como o primeiro brasileiro a ocupar o cargo. Nem só ao combate à fome, porém, se restringem as preocupações atuais de Graziano. Um de seus maiores desafios é criar interlocução entre os problemas de segurança alimentar e questões ambientais – assunto que ele irá tratar neste mês durante a conferência Rio+20.

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"As práticas e os padrões de consumo são
insustentáveis. Hoje, usamos 15 mil litros de
água para produzir um quilo de carne"

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"Bill Gates disse que todo o sistema de governança da
agricultura e da alimentação global é obsoleto e ineficiente.
A afirmação é radical, mas concordo com ele"

ISTOÉ

Não temos tido muitos avanços nas conferências sobre as mudanças climáticas. Devemos esperar mais êxito da Rio+20?

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José Graziano

Vejo a Rio+20 não como um ponto de chegada, mas de partida para um mundo mais sustentável. Será uma oportunidade para fazer convergir as agendas da mudança climática, da sustentabilidade e da segurança alimentar. Essas agendas precisam estar interconectadas porque não vamos chegar a lugar nenhum enquanto 900 milhões de pessoas estiverem sobrevivendo com fome. 

ISTOÉ

Por que é importante discutir a fome no contexto ambiental?  

José Graziano

Mais de 70% da população extremamente pobre vive em áreas rurais e depende do uso de recursos naturais para garantir o pão de cada dia. Você não pode pedir a esses pequenos produtores que não derrubem uma árvore para produzir lenha, deixem de fazer uma queimada para preparar o solo para o plantio ou parem de pescar na época do defeso. Não sem lhes dar uma opção. 

ISTOÉ

As mudanças climáticas são realmente um ponto-chave? 

José Graziano

Sim. O mundo está contra a parede. Não há como negá-las, elas são uma realidade. Basta ver as ilhas do Pacífico, cujo nível do mar sobe perigosamente, ou as ilhas do Caribe e da América Central, onde já está instituída a temporada de furacões. Isso acontece por causa de práticas e padrões de consumo insustentáveis e que precisamos mudar. Por exemplo, hoje, usamos 1,5 mil litros de água para produzir um quilo de cereais e dez vezes mais, 15 mil litros, para produzir um quilo de carne. Não poderemos alimentar nove bilhões de pessoas com esse padrão em 2050.
 


ISTOÉ

Um dos riscos anunciados causados pelas alterações no clima nas últimas décadas é a escassez de alimentos, com posterior subida de preços. Essa é realmente uma ameaça?  

José Graziano

Não existe ameaça de escassez. Já temos, hoje, comida suficiente para alimentar toda a população do planeta. O problema que ainda afeta 900 milhões de pessoas é o acesso: as pessoas têm fome porque lhes faltam meios para obter os alimentos ou dinheiro para comprá-los. 

ISTOÉ

Se a questão não é a produção, qual é o problema? 

José Graziano

O principal desafio é garantir as condições que permitam o acesso de todos aos alimentos. Naturalmente, porém, há também a pressão pelo aumento da produção. A FAO estima que teremos de crescer a produção agrícola em 60% até 2050, quando a população mundial deverá ultrapassar a marca dos nove bilhões de pessoas. 

ISTOÉ

É possível promover esse aumento de 60% na produção até 2050 de maneira sustentável? 

José Graziano

Sim. Os sistemas de produção que causam menor impacto ao meio ambiente já existem e são acessíveis ao pequeno produtor. Exemplos são o cultivo direto, os sistemas agroflorestais, o controle biológico de pragas e a irrigação por gotas. A questão, porém, não se restringe apenas à produção: é preciso pensar o consumo e reduzir o desperdício. 


ISTOÉ

Qual o impacto do consumo descontrolado e do desperdício sobre a fome?

José Graziano

Ao mesmo tempo que há 900 milhões de pessoas subnutridas, outras centenas de milhões sofrem de sobrepeso e obesidade. Além disso, entre a produção e o consumo, perde-se anualmente cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos. 

ISTOÉ

O fundador da Microsoft, Bill Gates, defendeu num evento o uso de tecnologia para aliviar a fome no mundo e criticou a FAO por ser um órgão obsoleto. O que o sr. tem a dizer? 

José Graziano

Estive com ele nesse evento, em Roma, e o recebemos aqui na FAO – temos um trabalho conjunto com a Fundação Gates. O que ele disse é que todo o sistema de governança da agricultura e da alimentação global – e isso inclui agências, governos e doadores, não apenas a FAO – é obsoleto e ineficiente. A afirmação é um pouco radical, mas em geral eu concordo com ele e estou trabalhando para mudar a situação. Mas discordo que a solução da fome no mundo seja basicamente um problema tecnológico. 

ISTOÉ

Quais foram os principais desafios desses seis primeiros meses no cargo? 

José Graziano

A FAO é como o Titanic, um navio grande e pesado. Estamos no processo de girar essa embarcação dois graus à esquerda e estamos conseguindo. Mas, além das questões da própria FAO, temos hoje desafios no combate à fome bem diferentes daqueles do passado: já não basta apenas produzir mais, precisamos produzir – e consumir – de maneira mais sustentável; não basta entregar comida às famílias que vivem em áreas afetadas por secas e inundações, é preciso aumentar a sua resistência a choques e melhorar os meios de vida para que elas superem essas condições difíceis. São outras exigências.  

ISTOÉ

O último coordenador da FAO, o senegalês Jacques Diouf, esteve à frente do órgão por mais de uma década. Uma gestão tão longa engessou o órgão? 

José Graziano

Nos últimos 36 anos a FAO teve apenas dois diretores-gerais. Com a reforma dos estatutos, agora só é possível uma reeleição para um total de cinco anos, o que é positivo. Além dessa questão, a FAO tem uma tendência de olhar para o próprio umbigo. É ilusão, porém, achar que, sozinha, a FAO ou qualquer outro organismo ou país vá acabar com a fome. Abrir a FAO a novos parceiros e aprofundar a cooperação com outras agências tem sido uma prioridade desde o primeiro dia do meu mandato.  

ISTOÉ

Como a experiência com o Fome Zero ajuda na coordenação do órgão? 

José Graziano

Quase todos os líderes com os quais eu converso querem conhecer mais o programa e saber como ele pode ser adaptado às suas realidades. O Fome Zero é uma receita que deu certo no Brasil e mostrou que se avança mais rápido no combate à fome quando vontade política, mobilização social e políticas públicas caminham juntas. A FAO pode ser uma plataforma para compartilhar essa experiência com outros países. 

ISTOÉ

A crise nos países ricos compromete as ações da FAO? 

José Graziano

De certa forma, sim. A FAO e muitos outros organismos dependem de contribuições voluntárias para responder a emergências. Por exemplo, em 2012, existe uma brecha de financiamento de US$ 239 milhões para as atividades propostas para a região do Chifre de África, no nordeste do continente, que há décadas tem as piores taxas de fome e pobreza no mundo, e o Sahel, a zona de transição entre o Saara e as savanas sudanesas. Isso tem nos obrigado a buscar alternativas: novos doadores, mecanismos inovadores de financiamento, a cooperação Sul-Sul.  

ISTOÉ

O que pode ser feito de novo nessas regiões africanas para diminuir o problema?  

José Graziano

O Chifre de África e o Sahel são áreas com secas recorrentes e não podemos evitá-las. Há, porém, como impedir que elas se transformem em famine, quando há escassez drástica de produtos alimentares. O problema é que, hoje, muitas vezes, a comunidade internacional só reage quando as situações críticas já se tornaram emergências. Precisamos parar com isso, parar de pular de crise em crise tentando apagar o fogo.  

ISTOÉ

O que fazer então? 

José Graziano

As secas vão continuar, o que temos de fazer é mudar o modo de reagir a elas. Temos de colocar em prática estratégias de longo prazo que diminuam a vulnerabilidade das famílias rurais à estiagem. A FAO, junto do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), do Unicef e de outros parceiros, tem investido em mutirões de trabalho e programas de cupons de alimentos no Chifre da África. Dentro dessa lógica, a comunidade local ajuda a reconstruir a infraestrutura rural, construindo cisternas e canais de água, ao mesmo tempo que se cria a oportunidade para as famílias comprarem localmente a comida da qual precisam, o que estimula a produção local, dina­mizando a economia.  

ISTOÉ

O continente africano pode ser autossustentável na produção de alimentos?  

José Graziano

Sim. O continente tem um enorme potencial produtivo agrícola e todas as condições para produzir comida em quantidade suficiente para alimentar toda a sua população. 

ISTOÉ

Modificar vegetais geneticamente pode ser uma forma válida e de pouco custo para se erradicar a fome? 

José Graziano

Organismos geneticamente modificados não são uma bala de prata para acabar com a fome, mas também não devem ser descartados. Há um custo social, ambiental e econômico embutido em sua produção, que precisa ser estudado. Não podemos jogar fora o bebê junto com a água suja.  


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