O economista Carlos Lessa recebe 85% dos votos para ser reitor da UFRJ, quer mudar a universidade e critica o apartheid social

O economista Carlos Lessa, 65 anos, nunca se alinhou com os tecnocratas e sempre pôs a política em plano superior à economia. Em 1988, virou assessor do presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, e acabou coordenando sua campanha à Presidência após uma rápida passagem pelo PSDB. Nunca abriu mão de uma de suas paixões: dar aulas. Nem quando dirigiu a área social do BNDES, nem quando teve de curar um câncer. Agora está diante de um novo desafio. Acaba de ser escolhido por 85% da comunidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mais de 95% dos votos dos professores, para a reitoria da instituição, a maior do País. O histórico recente da Universidade não garante que Lessa será nomeado. O atual reitor, Carlos Henrique Vilhena, foi escolhido pelo governo federal há quatro anos mesmo com uma minoria de votos e sob uma reação intensa de professores, alunos e funcionários. Não é à toa que há uma semana o professor Lessa, crítico contumaz da política econômica, evita falar de eleições. Nem sequer revela seu voto para presidente, mas deixa claro o incômodo com o atual governo por não ter conseguido implantar a social-democracia no Brasil. “Quero levar de volta à UFRJ o pluralismo inerente a uma universidade”, diz. Em sua austera, mas confortável casa no Cosme Velho, zona sul do Rio de Janeiro, ele afirma emocionado que ainda sente no campus da instituição, na Ilha do Fundão, zona norte carioca, o abalo moral causado à UFRJ pelo episódio do vestibular, em dezembro. Em função da greve, estudantes pediram o adiamento das provas. O reitor chamou a polícia. Um funcionário ficou ferido, atingido por um cassetete. “Nem na ditadura isso aconteceu na UFRJ”, protesta Lessa. Ao analisar a situação do País, ele critica as receitas estrangeiras seguidas pelo governo de Fernando Henrique, seu ex-colega de partido: “Este modelo precisa de correções para não agravar a estagnação da sociedade, com muitos excluídos sofrendo como os negros sofriam com o apartheid na África do Sul.”

ISTOÉ – Como o sr. avalia a gestão do atual reitor da UFRJ, José Henrique Vilhena?
Lessa

O nome da minha chapa explica minha decisão de enfrentar o desafio: “Dignidade e Integração.” Na indicação do atual reitor, fiz um apelo para que ele não assumisse, por não ter o respaldo
da comunidade. Eu nem imaginava que seu desgaste chegasse a tal ponto. Ao aceitar o cargo, ele adotou um estilo truculento e a rejeição aumentou. Minha candidatura nada teve de pessoal contra ele. Não aceito é a truculência num lugar em que o pluralismo deve caracterizar
o ambiente. Minha nomeação depende da escolha de uma lista com três nomes pelo Colégio Eleitoral, formado pelos conselhos da UFRJ, levada
ao ministro da Educação, que terá o prazo de 60 dias para nomear
um dos três.

ISTOÉ – O abalo moral causado pela crise do vestibular já está superado?
Lessa

O episódio do vestibular foi uma tragédia. Jamais, naquelas circunstâncias, a polícia poderia bater em estudantes no campus. Não aconteceu nem na ditadura. Em 1968, a polícia cercou as faculdades da Praia Vermelha. O reitor, Pedro Calmon, além de tentar proteger o líder estudantil Vladimir Palmeira, ainda reagiu com uma frase histórica: “Na universidade policial só entra mediante vestibular.”

ISTOÉ – Qual é a origem da crise da universidade brasileira?
Lessa

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A universidade pública, especialmente a federal, passa por tempos difíceis, causados principalmente pela crise fiscal e financeira
que se reflete nela e deixa orçamentos muito curtos, diminuição de quadros de pessoal e um processo de redução dramática de recursos.
Os compromissos com o FMI, indiretamente, influíram no orçamento das universidades. O esforço de estabilidade fiscal e financeira, que faz parte do modelo geral de política econômica preconizado pelas agências internacionais, repercute terrivelmente na educação, assim como nos projetos de estradas de rodagem, projetos energéticos e na saúde. Eles são causados pelo esforço colossal feito para manter um padrão de estabilidade da moeda e de equilíbrio cambial. As grandes universidades americanas têm mais de 80% do orçamento coberto pelo Tesouro. Afinal, a nação é gestada dentro da universidade. Sobrevive e se aperfeiçoa
em grande parte através das universidades. Uma boa universidade custa caro, mas garante resultados concretos. Por exemplo: a tecnologia de off shore, que deu a liderança mundial à Petrobras, surgiu na coordenação
de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe), da UFRJ. O sistema de sensoreamento de óleo, modelar no mundo, também.

ISTOÉ – Mas a universidade brasileira não deveria estar aberta e prestar contas à sociedade?
Lessa

. A universidade é muito introspectiva, olha muito para seu umbigo. Mas a UFRJ, com seus mais de 30 mil alunos, 11 mil servidores e 2.500 professores, teve 18 cursos de graduação avaliados. Dezesseis tiveram nota A e em um deles, o de comunicação, os alunos se recusaram a ser avaliados. Só tivemos um curso com nota B dos l8 avaliados. O de medicina é o de maior nota do Brasil. Nossa pós-graduação é de altíssima qualidade. Mas perdemos 779 professores porque vários anteciparam a aposentadoria, desmotivados. O problema da falta de pessoal é dramático e o nosso hospital se ressente da aposentadoria de funcionários administrativos. O corpo universitário trabalha com idealismo e luta para preservar a dignidade. Apesar de passar quatro anos administrada por um reitor que não foi aceito e tentou administrar com truculência, a UFRJ manteve seu padrão de qualidade. O pessoal sente orgulho da instituição.

ISTOÉ – A universidade é criticada por ter muitos cursos para poucos alunos. O sr. concorda com as críticas?
Lessa

O compromisso da Universidade com a Nação torna isso obrigatório. Para o País formar um violoncelista, são necessários mais
de 12 anos. Exige aula diária dada por professores a um aluno. A formação custa uma fortuna. Mas sem violoncelista o País não tem orquestra. Não queremos a sociedade do CD, sem orquestras, sem músicos, sem artistas.

 

ISTOÉ – Os críticos da universidade dizem que ela tem produtos supérfluos para a sociedade da concorrência. Como o sr. reage a esses ataques?
Lessa

Eles não sabem ou fingem não saber que nossa universidade é uma das coisas das quais o Brasil pode se orgulhar, responsável por uma produção científica superior à de todo o resto da América Latina. A UFRJ tem uma produção acadêmica de altíssima qualidade. A Escola Ana Néri de Enfermagem é uma referência mundial. Temos um excelente departamento de grego clássico. Coisa supérflua e cara, quando o Brasil precisa de engenheiros, especialistas em energia e médicos? Não. É uma indicação de que o Brasil é um país civilizado e cultiva o idioma que deu origem ao pensamento ocidental. Nada vale a pena se a alma for pequena. Para que ter violoncelistas e orquestra sinfônica se é mais fácil comprar CD? Alguém acha que esse raciocínio está certo?

ISTOÉ – A explosão dos conglomerados do ensino privado, grandes universidades, é o caminho?
Lessa

Não. O caminho passa pela educação, mas uma educação de qualidade. O ensino superior é caríssimo e por isso não pode ser negócio. O bom ensino particular no Brasil é feito por várias instituições e pelas pontifícias, através de instituições ligadas a igrejas.

ISTOÉ – Em seu discurso, o sr. prega uma prioridade para a elevação da auto-estima do brasileiro. Como isso pode ser feito?
Lessa


Em primeiro lugar, levando-se em conta uma coisa que considero fantástica: o brasileiro, apesar de todas as dificuldades, dá demonstrações de vitalidade e de solidariedade. As pessoas estão com salário muito baixo, vivem muito mal, mas sempre encontram uma oportunidade de reunir os amigos e até de fazer um churrasco improvisado na rua. É uma manifestação de auto-estima. O piscinão de Ramos recuperou a auto-estima de um subúrbio do Rio. Surgiu uma grife de Ramos e as meninas começaram a usar biquínis com a marca Ramos. O povo brasileiro é uma maravilha e representa a grande Nação brasileira. O problema continua sendo a elite, muito pouco voltada para o povo. Ela precisa descobrir que há uma gente maravilhosa aqui. De alguma forma, os filhos da elite vão para bailes funk nas favelas e rejeitam o apartheid. O nosso povo é tão fantástico que atrai gente da elite. Hoje crescem em todas as editoras os títulos sobre o Brasil. Os velhos clássicos brasileiros estão sendo reeditados. A juventude está cada vez mais interessada nas coisas sobre o nosso país.

ISTOÉ – É possível reduzir os juros sem a volta da inflação?
Lessa

Claro. O Brasil precisa fazer correções no seu modelo. Sem pacto social e sem orçamento de câmbio, monitoramento das operações cambiais, não dá para reduzir muito os juros. Mas os atuais são terríveis porque elevam fantasticamente o gasto com o serviço da dívida e inibem o investimento privado. Ele se torna muito difícil com juros acima de 18%. Deviam estar em 15% no máximo. Falando como economista, e não como reitor eleito e candidato à nomeação para o cargo, posso dizer com convicção que existem políticas econômicas alternativas, só que qualquer modelo alternativo passa por um novo tipo de controle das operações de câmbio e por um pacto entre empresários, sindicatos e governo para manter preços.

ISTOÉ – Este pacto já foi tentado várias vezes e nunca passou do discurso. O sr. acredita que seria viável agora?
Lessa

Sim, com lideranças políticas confiáveis. Tenho absoluta certeza de que nem as empresas nem os sindicatos vão querer trabalhar para a destruição do País ou impedir o crescimento do Brasil. A sociedade brasileira mudou e está mais participativa. Veja a reação na crise energética. Todas as pessoas economizaram energia, preocupadas consigo e com os outros. Houve um pacto social. A mesma reação consciente ocorreu no Rio de Janeiro nesta epidemia de dengue. Por que não pode haver um pacto em torno da estabilidade econômica e do crescimento contra o desemprego e a exclusão social?

ISTOÉ – O sr. não acha que a população ainda está apoiando a política econômica por temer a volta da inflação?
Lessa

Inflação é uma doença. Mas a estagnação econômica é outra, muito mais grave ainda, porque compromete o futuro dos jovens. As pessoas já percebem isso. Mas é preciso uma liderança para convencê-las a participar de um grande projeto nacional.

ISTOÉ – Qual seria essa liderança? Qual é o seu candidato a presidente da República?
Lessa

Prefiro não falar sobre a eleição presidencial. Minha preocupação é com a UFRJ, que vai exigir muito do meu esforço e minha capacidade de congregar toda a comunidade em torno de sua recuperação.

ISTOÉ – Faz sentido hoje falar em social-democracia no Brasil, a bandeira de Fernando Henrique nas duas vezes em que foi eleito, em 1994 e em 1998?
Lessa

O Brasil não tem, certamente, um governo social-democrata. A social-democracia na Europa foi o discurso que levou ao Estado do bem- estar social, que o Brasil ainda não construiu. Nossa dívida social é colossal e só vai ser superada se houver a retomada do desenvolvimento.

ISTOÉ – Muitos economistas apontam como grande perigo a possível mudança na atual política econômica. O sr. se inclui entre eles?
Lessa


Isso é uma espécie de chantagem. Na Argentina também falavam deste tal perigo durante dez anos e a Argentina está hoje nesta situação lamentável. Nenhuma sociedade aguenta ficar estagnada por duas décadas porque a estagnação nunca se mantém no mesmo ponto. Ela degrada uma juventude, que deixa de ter esperança, acaba a idéia do futuro. É terrível a estagnação de uma sociedade. O jovem passa a ficar descrente do seu próprio futuro, o que é dramático, e todos os homens, mulheres e crianças passam a ser tratados como meros números de estatísticas de indicadores sociais terríveis. O dr. Ulysses Guimarães usou a expressão “esperança e mudança” na campanha da Constituição de 1988. O Brasil, neste novo século, pode ser marcado pela esperança e pela mudança, para a recuperação dos grandes ideais do Brasil e da cidadania. Estou inteiramente convencido de que temos uma população admirável. Nós precisamos de uma liderança política que seja capaz de gerar esta idéia, de passar a crença de que nós somos capazes, porque as empresas também dependem do crescimento do País.

ISTOÉ – A crise argentina serve de exemplo para o Brasil?
Lessa

Sim. E tenho a impressão de que haverá mudanças no modelo brasileiro, até porque a Argentina mostra que a total obediência a este modelo produz um inferno. Vários países da Europa reagiram a este modelo. Na América do Sul sou favorável ao sonho de Simon Bolívar, da América do Sul integrada.

ISTOÉ – Esta integração tão tênue agora ainda é viável, depois da crise da Argentina?
Lessa

Tem de ser e será. Nós devíamos estender a mão aos argentinos. O Brasil, apesar de todas as dificuldades, devia dar um grande crédito à Argentina. Está na hora de cimentar de vez a aliança entre os sul-americanos. O Brasil devia dar absoluta prioridade à ajuda à Argentina e lançar a idéia de uma moeda própria para as transações entre os dois países.


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