O austríaco Ferdinand Piëch, um dos mais poderosos executivos europeus, presidente mundial da alemã Volkswagen, saiu à francesa da última conferência de imprensa, dia 13 de março em Wolfsburg, no norte da Alemanha. Foi sua derradeira participação no encontro anual da empresa. Em 17 de abril, quando faz 65 anos, ele se aposenta
e passa seu reinado de nove anos para
o alemão Bernd Pischetsrieder, 54, ex-chefão da BMW.

Piëch, o “kaiser” da indústria automobilística, não fez discursos autolaudatórios nem disse adeus. Ele detesta discursos e detesta despedidas. Assim como detesta dar entrevistas (quando dá, muito raramente, se vinga respondendo com monossílabos), posar para fotos (até para o relatório anual da companhia ele já se recusou a posar), escrever e ler memorandos, enviar e responder e-mails. O homem que acordou a Volkswagen de um profundo cochilo, num setor em que a concorrência é tão feroz que não permite sequer piscar, passa o trono com mais um recorde: a VW vendeu mais de cinco milhões de veículos em 2001 e faturou 88,5 bilhões de euros, um aumento de 6,5% em relação ao ano anterior, além de ter obtido um lucro líquido 12% maior, de 2,9 bilhões de euros. E mais uma invenção: um carro popular que consome menos de um litro de combustível a cada 100 quilômetros, que terá a função de segundo ou terceiro carro da família e custará em torno de 20 mil euros.

Não vai ser fácil para Pischetsrieder suceder alguém tão genial como Piëch. Ele tem uma penca de defeitos: é turrão, taciturno, mal-humorado, autoritário, tem um estranho olhar gelado e, não por acaso, foi “premiado” no setor com uma reputação de “rottweiler”. Mas é quase tão genial quanto seu avô, o legendário engenheiro Ferdinand Porsche, de quem o célebre neto até hoje lamenta não ter herdado o sobrenome (porque é filho da irmã de Porsche, Louise). “Entre todos os netos, ele é o mais parecido com o avô”, escreveu Richard von Frankenberg no livro Porsche: the man and his cars.

Já deu para o alemão sentir na pele que a cadeira que ocupará – e que muitos acham grande demais para ele – é um desafio do tamanho do prestígio de seu antecessor, que em menos de dois anos, a partir de 1993, quando assumiu a VW, impregnou sua marca na empresa fundada por seu avô, que em 1929 desenhou a primeira versão do fusca (aquela que, em 1933, o ditador Hitler tirou do papel e financiou como o carro do povo, literalmente “volks wagen”) e, no ano seguinte, criou a Porsche com o filho Ferry. Como o avô, Piëch é um inventor. Ele inventou o
Audi 4 e o New Beetle em homenagem ao avô. Como diretor de pesquisa e desenvolvimento na Porsche, inventou o legendário “racecar” 917,
que ganhou Le Mans em 1970. Inventou também um jeito novo de administrar. Ao contrário da maioria dos administradores das grandes corporações, Piëch nunca se preocupou com analistas, investidores institucionais, balanços e acionistas para tomar decisões. Tem mão
de ferro – reduziu a cúpula da empresa de nove para cinco pessoas –
e instinto de ditador – colocou sob seu domínio direto áreas cruciais, como pesquisa e desenvolvimento, produção e compras. Também
obrigou os altos executivos da empresa a participar de todos os test drives que ocorrem uma ou duas vezes ao mês em qualquer lugar
secreto do mundo. Seus principais alvos são diminuir custos e melhorar a qualidade – e, se der, preservar os empregos na Alemanha. Fora, é claro, massacrar a concorrência.

Woodstock – Ele é louco por carrões de luxo – gastou US$ 1 bilhão comprando a Bentley, a Bugatti e a Lamborghini e mais US$ 600 milhões na compra da Rolls-Royce, disputada com a BMW. Mas só rasgou a fantasia – e venceu a timidez – na milionária festa de lançamento do New Beetle. Durante quatro dias, a um custo de US$ 3,6 milhões, ele promoveu uma espécie de Woodstock em Wolfsburg. Foram convidados 1.200 jornalistas do mundo todo e ele, o anfitrião orgulhoso, pela primeira vez mostrou em público que não é tão durão assim. Quem esteve lá disse que Piëch parecia uma criança. Tão inacreditavelmente dócil que até respondeu perguntas de jornalistas. “Como explicar o sucesso da VW?”, alguém perguntou. “É muito fácil quando se tem um engenheiro no comando”, disse.

Piëch estudou engenharia em Zurique, mas isso não foi o mais importante em sua formação. Desde menino tinha uma relação muito estreita com o avô e com seu tio Ferry, que desenvolveu o primeiro Porsche 356 e de quem aprendeu tudo o que podia. Conta-se que numas férias de Natal, ele teria modificado o motor do Porsche à custa de tirar o aquecimento do carro. Andou sobre a neve 500 quilômetros, de Viena, na Áustria, a Zurique, onde estava sua família. Chegou congelado, mas feliz. Numa outra ocasião, em 1990, quando participou dos testes da divisão Audi na Finlândia, com 35 graus abaixo de zero, ouviu um pequeno zumbido na borracha da porta. Imediatamente ordenou que a fábrica fizesse o custoso reparo para silenciar o carro.

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Ele não é fácil. Nunca aceita a possibilidade de haver limitações a seus desejos. Seus muitos inimigos o definem como elitista, arrogante, obsessivo, paranóico (isso é o que dá para publicar) e dizem que ele é capaz de sentir mais afeto por uma correia de transmissão do que por seus funcionários.

Piëch não deve ser tão gelado assim. Está casado pela quarta vez e tem 13 filhos. Ele usa e abusa de seu poder, insuflado pelo profundo conhecimento de engenharia, pela paixão por carros e por um enorme poder financeiro. Ele é rico de muitas e muitas gerações. Sua família tem um império avaliado em US$ 3 bilhões, sediado na belíssima Salzburgo, a cidade de Mozart. Com essa retaguarda, Piëch acaba sendo imbatível no confronto com os simples mortais que têm medo de perder o emprego. Aí é fácil praticar verbos como ousar, arriscar, mandar, fazer e acontecer. E ele praticou todos eles na VW, desde quando assumiu a posição de presidente da maior indústria automobilística da Europa com mudanças tumultuosas, muitas controvérsias e uma dose cavalar de inovação, da contratação de Arriortua Lopez, da GM, acusado de trazer segredos da fabricante americana, à introdução da semana com quatro dias de trabalho. Fechou a boca de seus críticos com os resultados financeiros que conseguiu. Ele assumiu a direção da empresa com um prejuízo de mais de US$ 1 bilhão e não demorou muito para colocá-la no calcanhar da Toyota, a terceira maior do mundo, e colecionar recordes.

É ele quem Bernd Pischetsrieder começa a substituir. Com um rojão nas mãos: as vendas no primeiro trimestre de 2002 caíram 6,5% por conta
da crise no mercado. Pischetsrieder garante que não pretende reduzir
as previsões de lucro. “Continua sendo nossa meta pelo menos repetir
o resultado recorde de 2001.” Enquanto isso, Piëch, que tem uma
fortuna pessoal estimada em US$ 300 milhões, poderá estar fazendo
um cruzeiro com Ursula e suas três filhas mais novas. Quem sabe
fazendo mais um filho, seu segundo grande talento. O primeiro, ele diz, herdou do avô e da mãe, que assumiu a direção da holding da Porsche quando seu pai morreu, em 1952, e hoje, aos 90 anos, anda a 200 por hora com uma BMW.


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