O governo esperava apenas um discurso irado do pai da governadora do Maranhão, Roseana Sarney (PFL), cuja candidatura à Presidência foi massacrada pelo envolvimento em fraudes na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Mas o senador José Sarney (PMDB-AP) não fez nada disso. Ao subir à tribuna do Senado às 15h55 da quarta-feira 20, com cabelo e bigode impecavelmente alinhados, foi logo anunciando: “Venho cumprir meu dever de homem de Estado, responsável pela transição democrática. Falo como ex-presidente.” Dito e feito. Ao terminar
o pronunciamento, 80 minutos depois, Sarney produzira história. Pela primeira vez o Senado assistiu a um ex-presidente desancar solenemente um presidente da República. Exibindo a edição de ISTOÉ 1693 – que revelou os bastidores da guerra suja e os grampos da sucessão de Fernando Henrique Cardoso –, Sarney, na introdução, já antecipava o tom duro que viria a seguir: “Defendo o direito de cada um de nós não ser espionado, escutado, seguido, perseguido, tocaiado pelo aparato do Estado.” Os livros do futuro talvez apontem o discurso também como um dos marcos do rompimento do pacto entre as elites brasileiras – representadas no Congresso pelo PSDB, PFL e PMDB – para elegerem o próximo presidente. Sarney explodiu as pontes para qualquer aliança em torno do candidato de FHC, o senador tucano José Serra (SP). Silenciou o plenário lotado acusando o governo de montar uma operação “suja” de espionagem, envolvendo a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Informações (Abin), o Ministério Público e o Executivo, para torpedear a candidatura de sua filha, Roseana Sarney (PFL), governadora do Maranhão. Revirou denúncias contra Fernando Henrique, disse que Serra orquestrou a espionagem e responsabilizou o ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, e sua PF pela conspiração.

Aliança – O governo tentou, em vão, neutralizar os estragos do discurso. Na manhã do mesmo dia, o PSDB fez o convite formal para o PMDB de José Sarney indicar o nome do vice de José Serra. Mas entre os peemedebistas também reina a suspeita do envolvimento dos tucanos na arapongagem. Temem que, com isso, a candidatura Serra também vá para o espaço e, precavidos, pretendem empurrar os tucanos com a barriga. O próprio FHC, na semana passada, chamou às pressas os líderes do partido. “Eu quero apressar a aliança, vamos fazer um cronograma”, intimou. O acordo estaria facilitado com a saída do governador Itamar Franco (PMDB-MG) da disputa pelo Palácio do Planalto. Mas a cúpula do PMDB agora não tem pressa, apesar das juras trocadas entre os presidentes do PSDB, José Aníbal, e do PMDB, Michel Temer.

O governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcellos (PMDB), o preferido de FHC e Serra, se apressou em aceitar ser vice. Só que os chefões do PMDB não querem abdicar do comando do partido e passá-lo de mãos beijadas ao pernambucano. Querem que o escolhido seja alguém do grupo que comanda a legenda. Além disso, o interesse imediato do grupo é apenas ocupar espaços maiores no atual governo. Anteciparam ao presidente que gostariam de manter o ministro Ney Suassuna (PB) na Integração Nacional, nomear o deputado João Henrique (PI) para a pasta dos Transportes e retomar a Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Já com o convite público para ocupar o posto de vice, a idéia da cúpula peemedebista é administrar o tempo. “Precisamos fazer uma ampla consulta ao partido antes de escolher o nome”, afirma o presidente do PMDB, deputado Michel Temer (SP). No dia 2 de abril o partido vai apresentar um longo calendário de consultas internas que empurrará a decisão para o final de maio. Desta forma, os capos do PMDB descartam sutilmente o nome de Jarbas, que precisa se desincompatibilizar em abril para ser vice, e podem avaliar melhor o desempenho de Serra nas pesquisas. O último levantamento do Ibope, divulgado na quinta-feira 21, apontou uma queda de três pontos do tucano, em consequência do desgaste da crise da arapongagem.

Os alvos – Recorrendo a adjetivos contundentes, Sarney concentrou sua fúria em três alvos. Lembrou do processo de impeachment que o presidente tem parado na Câmara por acusação de compra de votos na reeleição e das denúncias de irregularidades na Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) envolvendo o então senador Fernando Henrique. Contra Aloysio Nunes e o diretor da PF, Agílio Monteiro Filho, filiado ao PSDB, Sarney assegurou que está havendo uso político da polícia e comparou a ação ao funcionamento da Gestapo. Fez questão de sublinhar as conexões entre Serra e o superintendente da PF no Rio, Marcelo Itagiba, e o subprocurador José Roberto Santoro.

As acusações mais veementes foram contra Serra. Depois de registrar que o tucano responde a dois processos por improbidade e danos ao erário, o ex-presidente apontou a paralisia das investigações sobre o lobista Alexandre Paes dos Santos, que denunciou a cobrança de propinas no Ministério da Saúde na gestão de Serra em prol de uma possível caixinha de campanha. Sarney acusou o deputado Márcio Fortes (PSDB-RJ) e o próprio Serra de estarem por trás de um processo de fujimorização do Brasil. “Há um fato cuja recorrência impressiona e intriga. É que toda referência a esse estilo característico de espionagem e dossiês nasce no Ministério da Saúde e envolve o ex-ministro José Serra. O Ministério, em vez de tratar das epidemias, dá prioridade às coisas de inteligência e espionagem”, cutucou o ex-presidente, mencionando o contrato milionário entre a Saúde e a Fence Consultoria, empresa de espionagem. Serra ouviu tudo pela tevê em São Paulo. A defesa que ele ditou por telefone ao líder do governo, senador Artur da Távola (PSDB-RJ), provocou um novo bate-boca. “É uma tentativa de jogar lama no Serra para desviar a atenção. Vejo que é a agonia das oligarquias”, contra-atacava Távola, quando foi interrompido pelos gritos de “Isso é baixaria!” do senador João Alberto (PMDB-MA). “Vocês estavam atrás de Roseana para apoiar Serra e oferecendo a vice. Ali não era oligarquia”, protestou o aliado de Sarney. “Politicamente, o discurso de Sarney foi muito bom, mas ele não explicou o dinheiro na empresa da filha”, avaliou o líder do PT, João Paulo (SP). “Foram acusações muito fortes. O Serra tem obrigação de responder no plenário”, disse o senador Roberto Freire (PPS-PE). Mas a estratégia tucana é outra. Tirar Serra do fogo cruzado. Para o senador, as insinuações são “alopradas.”

Lula impõe o ritmo

No país do futebol, vice-campeão é sinônimo de perdedor. Este é um dos estigmas que Luiz Inácio Lula da Silva tentará driblar na sua quarta tentativa de conquistar o Planalto. Sagrado pré-candidato do PT depois de vencer o senador Eduardo Suplicy nas prévias, Lula deu o pontapé inicial na campanha, apresentando-se como jogador experiente. Exatos 13 anos – o número do PT na cédula eleitoral – separam o Lula quarentão e radical, que disputou pela primeira vez a Presidência, do pragmático senhor de 56 anos, barba grisalha, que agora corteja empresários e legendas de centro, como o Partido Liberal com suas estreitas ligações com a Igreja Universal do Reino de Deus. Há várias pedras no caminho de Lula. Uma delas, apontam pesquisas qualitativas, são os preconceitos, alimentados pelo fato de ele nunca ter governado ou por não ter curso superior. Caberá ao publicitário Duda Mendonça a tarefa espinhosa de tentar dissipar essa nuvem de imagens negativas.

“Estou muito mais maduro, preparado e consciente para governar o País. Esta é a hora do PT. Muita gente que tinha um pouquinho de medo do PT certamente vai perder esse medo”, assegurou na quarta-feira 20, diante das câmeras de tevê um Lula no estilo estadista, de paletó e gravata, sentado numa mesa de trabalho com estante repleta de livros atrás. O Lula 2002 também será mais emocional e seu PT, mais requintado, como ficou claro na festa de aniversário da prefeita Marta Suplicy, 57 anos, e do presidente nacional do partido, José Dirceu, 56 anos, na segunda-feira 18, realizada num bar típico da elite paulistana, o Morro de São Paulo. O depoimento de Lula sobre os aniversariantes, gravado em vídeo e apresentado na festança, não poderia ter tido fundo sonoro mais apropriado à nova fase: a música Emoções, de Roberto Carlos. Ciente de que esta poderá ser sua última chance, sensação corrente dentro do partido, Lula está disposto a comprar brigas feias com os petistas para fazer a campanha a seu gosto. Encastelado em seu “bunker” no bairro do Ipiranga, onde funciona a ONG Instituto Cidadania, que produz projetos de políticas públicas, Lula está cada vez mais distante do PT, cuja sede nacional fica no centro.

Pelos últimos lances do jogo sucessório, Lula não vai concretizar o sonho de atrair outros partidos para seu time no primeiro tempo da partida. Certo mesmo está apenas o PCdoB. O governador de Minas, Itamar Franco (PMDB), dá sinais de que vai cair nos braços do tucano José Serra. Com o PSB de Anthony Garotinho, a perspectiva de aliança também está se esvaindo, diante do crescimento do governador do Rio nas pesquisas de opinião. A aproximação com o PL e a tentativa de dar a Lula um vice empresário, o senador José Alencar (MG), atropelando as famosas instâncias partidárias, foi desgastante. Tentou-se criar um fato consumado, com factóides como um jantar, à luz dos flashes dos fotógrafos, de Lula com o deputado federal Bispo Rodrigues (PL-RJ), coordenador político da Igreja Universal.

“A operação política foi um desastre”, reconheceu um cacique petista. Lula sentiu isso ao enfrentar um protesto inédito, de seu próprio rebanho, no domingo 17, em Poços de Caldas (MG), pouco antes de submeter-se à prévia. Venceu folgado, com quase 85% dos votos, mas Suplicy não fez feio, ao conquistar mais de 15% dos votos no País e até mesmo ganhar em algumas cidades, como Campinas. “Uma aliança com o PL vai provocar um cisma no PT e comprometer a dignidade partidária. Se o PT continuar nessa direção, o eleitor vai se perguntar por que votar no Lula, e não no Ciro Gomes (PPS) ou no Garotinho (PSB)”, protestou o deputado federal Miltom Temer (PT-RJ). Se não fosse pela chiadeira da esquerda, a cúpula petista talvez pudesse dar ouvidos à voz do povo. Um motorista de táxi petista de São Paulo, ao saber que seu passageiro era um deputado do PT, questionou-o sobre os motivos do namoro com os liberais. “O PT ganha 46 segundos de tempo na tevê”, explicou o parlamentar. A conclusão do motorista: “É um bom tempo para o Lula explicar ao eleitor a aliança com o PL.”