Sinval, baiano do Senhor do Bonfim, 20 anos, apareceu no fim do ano passado no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro (CPRJ), unidade da Secretaria Estadual de Saúde, procurando um “hotel público”. Pele clara, olhos azuis e lábios carnudos, tinha passado três dias vagando pela cidade em pleno surto psicótico. Lembrava-se apenas do nome do hospital em que havia sido internado, em Salvador. Por sorte, o baiano bateu na porta certa. Depois de 12 dias de investigações dignas de Sherlock Holmes, os médicos do centro descobriram sua mãe, uma costureira separada e mãe de mais oito filhos, morando na mesma Senhor do Bonfim de onde ele havia saído. Fizeram contato com a família – a ponte foi um dono de uma loja encontrada na lista telefônica da cidade – e o mandaram de volta. A mãe vai encaminhá-lo a uma tia que mora em Salvador, onde Sinval receberá acompanhamento médico, apesar de continuar a ser monitorado, de longe, pela equipe carioca. Além disso, na capital baiana ele quer realizar o que planeja há anos. “Quero fazer um curso de teatro e virar artista da Globo”, conta.

O final feliz da aventura de Sinval pelo Rio só foi possível graças a um trabalho pioneiro realizado pelas psiquiatras Maria Teodora Rufino, da Secretaria Estadual de Saúde, e Maria Tavares Cavalcanti, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trata-se do Programa de Atenção Psicossocial à População de Rua com Transtornos Mentais Maiores, destinado a enviar de volta para casa doentes que perambulam pelas ruas e necessitam de assistência. De julho de 2000 a outubro de 2001, o programa devolveu às famílias um terço de seus 64 pacientes. O sucesso do programa rendeu às especialistas o prêmio David Capistrano, concedido pelo Ministério da Saúde. “O critério da premiação foi o ineditismo e a inclusão social desenvolvida pelo programa”, esclareceu Sônia Barros, assessora do Ministério.

O programa foi criado em 1998 por Pedro Gabriel Delgado, então coordenador estadual de Saúde Mental. A teoria passou à prática com três parcerias. A Secretaria Estadual de Saúde paga bolsas a residentes de psiquiatria da UFRJ para acompanhar os pacientes durante o dia. A Fundação Leão XIII – entidade carioca que trabalha com assistência a moradores de rua – oferece 20 vagas em seu centro de triagem, em Bonsucesso, e a Secretaria de Ação Social transporta os pacientes entre Bonsucesso e o Centro Psiquiátrico. Lá, os doentes são acompanhados pelos residentes e frequentam oficinas de música, pintura e culinária, entre outras. Os casos que necessitam de internação mais longa vão para o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, acompanhados pelo mesmo residente que iniciou o tratamento. Mas o esforço é mandar os pacientes de volta a seus lares. “Nosso objetivo é devolvê-los aos familiares ou entes queridos, desde que tenhamos certeza de seu recolhimento e da manutenção do tratamento pela rede pública”, explica Maria Teodora.

A iniciativa está longe de atender à demanda de doentes mentais que habitam as ruas da cidade. Mostra, no entanto, que um atendimento personalizado alcança resultados efetivos para problemas que o simples isolamento dos doentes nos manicômios não resolve. Com o programa, não só os doentes têm atendimento como podem reencontrar a estrutura e o carinho da família, embora há casos em que os parentes não se sentem preparados para abrigar o doente. Apesar desses benefícios, muitas vezes os integrantes do projeto se vêem às voltas com dificuldades básicas. Sinval, por exemplo, só retornou à Bahia porque uma estagiária tirou dinheiro do próprio bolso para pagar a passagem de ônibus. “É uma das falhas do projeto, que deveria ter verba para assegurar o retorno dos pacientes”, lamenta Maria Teodora. Na verdade, a liberação do dinheiro deveria ter sido feita pela Secretaria Estadual de Apoio Social.

Felizmente, apesar dos obstáculos, a equipe coleciona vitórias emocionantes. Um dos casos mais impressionantes é o de Maria, que tinha saído de casa, em Bom Jesus de Itabapoana, no Rio, havia 23 anos. Foi fazer compras e desapareceu só com a roupa do corpo. Passou os últimos anos no centro do Rio, atirando pedras em carros, até chegar ao programa. Foram meses para encontrar o fio da meada. Maria não se recordava de nenhuma pista que pudesse resgatar seu passado. Depois de muita alternância entre períodos de loucura e lucidez, concordou em receber tratamento e teve condições de fornecer pistas de sua história. Em junho de 2001, os médicos acharam sua irmã em Bom Jesus. “Foi uma de nossas experiências mais gratificantes”, emociona-se Maria Teodora.