Panelaço nas ruas, feriado bancário, confronto de manifestantes com a tropa de choque, o castelhano falado em toda parte, o real e o peso com valores equivalentes… Fortaleza viveu seus dias de Buenos Aires entre o domingo 10 e a quarta-feira 13, durante a Reunião Anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O ministro da Economia, Jorge Remes Lenicov, liderou a mais numerosa delegação estrangeira ao encontro. Além dele, estiveram em Fortaleza outros 40 políticos, técnicos e assessores argentinos, incluindo o presidente do Banco Central, Mario Blejer.

O ministro nem estava na cidade quando o inusitado panelaço irrompeu, em pleno domingo escaldante, na Praia do Futuro, a mais frequentada da cidade. Lenicov também não foi o responsável pelo fechamento dos bancos (que não atenderam ao público na segunda-feira por questões de segurança). Tampouco era ele o alvo da manifestação debelada com força pela polícia (que feriu de leve um fotógrafo) no momento em que Fernando Henrique Cardoso dizia ao Fundo Monetário Internacional que nós, latino-americanos, não somos “analfabetos”, na segunda-feira. Mas foi ele, sem dúvida, que mais atenção recebeu dos participantes do encontro.

Na primeira vez em que se reuniu com a comunidade financeira internacional desde que assumiu, há pouco mais de dois meses, Lenicov deixou a altivez argentina de lado e, para um auditório lotado, pediu socorro. “Precisamos de ajuda não apenas com palavras, mas com crédito e fundos.” Teoricamente seduzido pelo apelo, o BID anunciou que US$ 694 milhões vão desembarcar na Argentina nos próximos 24 meses para bancar projetos sociais. Detalhe: o dinheiro já estava liberado e foi apenas redirecionado. “A solidariedade latino-americana é a mais barata do mundo. Ninguém desembolsa US$ 1 para ajudar ninguém”, ironizou o diretor do ABN-Amro em Nova York, Arturo Pozercanski.

De fato, Lenicov e sua comitiva voltaram a Buenos Aires de mãos abanando, em busca de um acordo com o FMI. “Vamos embora tranquilos. Conquistamos um alto grau de compreensão dos participantes”, resignou-se o ministro, que, antes de embarcar para a verdadeira Buenos Aires, se reuniu a portas fechadas com FHC e, em separado, com o subsecretário do Tesouro dos EUA, John Taylor. O ministro teve tempo ainda de ouvir o presidente do BID, o uruguaio Enrique Iglesias, desvendar um cenário sombrio para a América Latina em 2002. “Crescimento, só em 2003. E ainda assim modesto”, disse o anfitrião no lançamento do relatório anual do banco.

Mea-culpa – Segundo o estudo, a série de choques vividos pela região a partir da crise da Ásia, em 1997, estanca o crescimento. “Persistem em nossas economias problemas estruturais que entravam o desenvolvimento e dificultam a redução da pobreza”, diz o relatório. “Subestimamos o tempo necessário para as reformas na América Latina.” A frase, dita pelo economista Albert Fishlow, da Universidade de Columbia, resume o tom de “mea-culpa” da alta cúpula financeira mundial pelos desastres promovidos pela guinada liberal do continente na última década. A Argentina arrasada, há quatro anos em recessão, é o exemplo máximo dos tropeços do chamado “Consenso de Washington” (espécie de cartilha liberal implantada na América Latina).

O economista colombiano Eduardo Lora, do BID, mostrou com dados o que os manifestantes de Fortaleza tentaram mostrar no grito: a distribuição de renda piorou a partir das reformas e as poucas conquistas obtidas tiveram efeito passageiro. O crescimento per capita da região, segundo Lora, foi de apenas 1,5% por ano na década de 90. No campo social, os avanços no período foram medíocres. O resultado? Um altíssimo grau de insatisfação popular e a retomada do discurso intervencionista e estatizante, em oposição ao método liberal.

Seu discurso foi rechaçado por outros economistas, mas o cheiro do fracasso liberal ficou no ar de Fortaleza. O presidente peruano, Alejandro Toledo, falou de sua luta em resistir ao populismo econômico em nome da manutenção da cartilha liberal. Um sinal claro de que a pressão por reformas está se acirrando. “Economia é uma ciência social sólida a serviço das pessoas. As pessoas não devem servir à economia”, disse. Para o Brasil, os diagnósticos sempre passaram pelas altas taxas de juros.
Para o economista Edmar Bacha, um dos formuladores do Plano Real, o alívio virá somente após o fim das “incertezas eleitorais”, com a eleição do sucessor de FHC. O país deverá crescer, em 2002, 2,5%, segundo estimativa divulgada na terça-feira pelo diretor do FMI, Claudio Loser. O crescimento é superior à média estimada para o continente, de 1%. A estimativa não inclui a Argentina, que pode levar um tombo de até 8%, de acordo com a previsão mais pessimista do FMI.

No final do encontro, Iglesias anunciou uma linha de emergência de US$ 6 bilhões para países em crise profunda, como a Argentina. Não ficou claro como e quando o dinheiro poderá desembarcar na terra de Maradona. Talvez tenha o mesmo destino dos US$ 3 bilhões prometidos ao Peru e ao Equador para desenvolver a área de fronteira dos países, cuja disputa pelo controle descambou para um breve conflito armado, em 1998. Presentes ao encontro em Fortaleza, os presidentes dos dois países aproveitaram a ocasião para cobrar a fatura. Assim como Lenicov, voltaram para casa só com as palavras.