Lá estava eu, no dolce far niente, embalada pelas águas do Lago di Como, quando tive a melhor lição prática sobre o ocaso europeu nessa minha viagem à Itália.

Passou por nós aquela lancha imponente, toda de madeira. Jeitão de gôndola, pensei eu. E foi mesmo. Uma gôndola. Até ser comprada em Veneza para ganhar motor e virar táxi para turistas em Como. Meu amigo italiano percebeu meu interesse pelo barco. E me contou a história por trás da história. O ex-dono da ex-gôndola era um conde veneziano. No certificado de propriedade da peça, que chegou com ela ao lago, constavam o nome da embarcação, o nome do proprietário e sua curiosa profissão: benestante. Ou, numa tradução livre, abastado! Poderia estar escrito ali rico, herdeiro ou conde, simplesmente. Mas benestante soa mais elegante aos ouvidos italianos. É quase como dizer que se tem dinheiro suficiente – e há muitas gerações – para nunca ter precisado de uma profissão.

Bons tempos aqueles. Ao menos para os benestantes, hoje em extinção.

Quando morei nos Estados Unidos eu era uma alien. Qualquer um que viva ou trabalhe no país e não seja americano ainda é considerado pelas autoridades um legal alien. Um alienígena mesmo. Só que parte deles construiu, dentro das regras da maior democracia do planeta, a condição de, digamos, benestante para filhos e netos. Ou ao menos conheceu uma dignidade que não existia em seu país de origem. Hoje os imigrantes são vistos com o viés do preconceito nessa nação que teme pelo bem-estar dos seus. Acabo de ver na tevê uma pesquisa que dá empate técnico nas intenções de voto entre o democrata Obama e o republicano Romney. É a economia, estúpido, como já se disse em outras campanhas presidenciais. O Ocidente rico teceu uma rede social em que famílias poderiam permanecer milionárias por centenas de anos e aliens poderiam se tornar milionários se trabalhassem muito e tivessem talento e em que todos os cidadãos poderiam usufruir dos benefícios de ter educação gratuita, saúde pública de qualidade e aposentadoria garantida, desde que seguissem as tais regras democráticas.

Hoje, para sonhar com o que benestantes sempre tiveram e o que alguns dos aliens puderam construir, há um atalho que atravessa fronteiras: o guanxi. Guanxi, em algumas culturas asiáticas, mas principalmente na China, quer dizer ter boas relações com a autoridade máxima. Relações que abrem portas. Lobby e subserviência. Em última instância, relações entre corruptores e corruptíveis. Sem culpa nem valores iluministas como freio (esses também estão em extinção, para minha profunda consternação).

A história é implacável e vê-la acontecer diante dos olhos é o sonho de qualquer jornalista como eu. Não guardo nenhum apreço especial por benestantes. Mas admiro o legado cultural presente em cada villa ao redor do Lago di Como. Tenho profundo respeito pelos aliens que fizeram fortuna nos Estados Unidos a partir da oportunidade de ascensão social pelo trabalho. Não é confortável imaginar que o guanxi prevalecerá no virar das páginas das décadas que estão por vir.

Me acusarão de pessimista. Deixo estar. Sei que não há alma nesse Brasil mais afinada com a da velhinha de Taubaté do que a minha. Sou uma crédula. Mas aqui, no Lago di Como, da varanda do meu hotel de benestante, vejo passar a lancha do passado e os chineses e russos desfilar sua riqueza recente e exagerada. Sou uma alienígena neste mundo globalizado. E, como o E.T., não entendo tudo, mas pressinto o pior.