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Ao ser lançado na França, há dois anos, o romance “O Mapa e o Território” (Record), de Michel Houellebecq, causou furor. Não foi pelo excesso de sexo, tiradas racistas ou críticas ao islamismo comuns ao autor: ele reproduziu textos publicados anteriormente em publicidade e na internet. Descontada a provocação, o livro retrata com vigor o cotidiano de um artista plástico afundado no cinismo do mercado de arte, entre outras reflexões sobre o mundo atual. O autor recebeu pela obra o Prêmio Goncourt, o mais importante da França no campo da literatura.

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Leia um trecho do livro:

 

"Je! Koons acabava de se erguer do assento, os braços ati-

rados para a frente num arroubo de entusiasmo. Sentado 

diante dele num sofá de couro branco parcialmente co-

berto por  sedarias, um pouco encolhido, Damien Hirst 

parecia prestes  a emitir uma objeção;  tinha  o  semblan-

te congestionado,  taciturno. Ambos vestiam ternos pre-

tos — o de Koons, com riscas finas —, camisas brancas 

e gravatas pretas. Entre os dois homens, sobre a mesa de 

centro, achava-se uma  travessa com frutas cristalizadas, 

à  qual nem um nem  outro prestava  a mínima  atenção; 

Hirst bebia uma Budweiser Light.

 

Atrás deles, uma sacada envidraçada dava para uma 

paisagem de arranha-céus que formavam um emaranha-

do babilônico de polígonos gigantescos até os con$ns do 

horizonte; a noite estava clara, o ar, completamente lim-

po. Poderiam estar no Qatar, ou em Dubai; na realidade, 

a decoração do quarto se inspirava numa fotografa pu-

blicitária, recortada de uma publicação de luxo alemã, do 

hotel Emirates, de Abu Dhabi.

 

A testa de Je! Koons reluzia um pouco; Jed secou-a 

rapidamente e recuou três passos. Havia de fato um pro-

blema com Koons. Hirst, ao fundo, era fácil de captar: 

dava para fazê-lo brutal, cínico, tipo “estou cagando para 

você do alto da minha grana”; dava também para fazê-lo 

como o artista revoltado (porém rico) às voltas com uma obra

angustiada  sobre a morte;  enfim,  seu  rosto  tinha 

algo de sanguíneo e carregado,  tipicamente  inglês, que 

o aproximava de um  torcedor comum do Arsenal. Em 

suma, havia diferentes aspectos, mas passíveis de serem 

combinados  no  retrato  coerente,  representável,  de  um 

artista britânico típico de sua geração. Já Koons, parecia 

carregar  certa  dubiedade,  uma  espécie  de  contradição 

insuperável entre a indefectível malícia do administra-

dor  de  empresas  e  a  exaltação  do  asceta.  Já  fazia  três 

semanas que Jed retocava a expressão de Koons levan-

tando-se de seu assento, os braços atirados para a frente 

num arroubo de entusiasmo, como se tentasse conven-

cer Hirst — algo que se revelava tão difícil quanto pintar 

um pornógrafo mórmon.

 

Jed possuía fotografias de Koons sozinho e na com-

panhia de Roman Abramovitch, Madonna, Barack Oba-

ma, Bono, Warren Bu!et, Bill Gates… Nenhuma delas 

era  capaz  de  exprimir  um  grão  de  sua  personalidade, 

superar  aquela  aparência  de  vendedor  de  Chevrolets 

conversíveis que ele optara por ostentar, o que, por  si-

nal, era  irritante, não era de hoje que os  fotógrafos  ir-

ritavam  Jed,  especialmente  os  grandes fotógrafos,  com 

sua pretensão de revelar a verdade de seus modelos; não 

revelavam  absolutamente  nada,  contentavam-se  em  se 

posicionar na frente deles e disparar o motor da câmera 

para bater centenas de fotos totalmente aleatórias, dan-

do  risadinhas,  e mais  tarde  escolhiam  as menos  ruins 

da  série,  eis  como  eles procediam,  sem  exceção,  todos 

aqueles supostos grandes fotógrafos. Jed conhecia algun deles 

pessoalmente e não lhes dedicava senão desprezo, 

considerando-os  todos,  sem exceção,  tão pouco criati-

vos quanto uma foto 3 por 4.

 

Na cozinha, alguns passos atrás dele, o boiler emitiu uma 

série de estalidos. Ele estacou, paralisado. Já era 15 de de-

zembro."