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Coerência é um caso sério. Dá trabalho, cansa, põe à prova, tenta e judia. Mas premia a quem persiste. Esse é o caso de Marcos Prado, um carioca de 51 anos que, há pelo menos 30, faz exatamente a mesma coisa: emociona através de imagens.

Lembro da primeira vez em que o vi. Ele havia chegado dos Estados Unidos, onde foi estudar fotografia. Trazia uma pasta de porta-slides de plástico transparente com os cromos de um ensaio que havia feito na faculdade. Era uma espécie de fotonovela com roteiro simples. Duas amigas se encontram, passeiam juntas por lugares interessantes, insinuam carícias nada explícitas e se olham da maneira que faz o mundo parar. Não foi preciso olhar aquelas imagens uma segunda vez para decidir publicá-las. E o faria de novo hoje.

Elas são absolutamente atuais e resistiram aos 25 anos que separam o dia de hoje daquele lá atrás.

Depois vieram as fotos dos surfistas de trem. Marcão, já àquela altura interessado na documentação da realidade sem abrir mão da poesia, topou subir no teto de um trem de subúrbio do Rio acelerado, ao lado do então repórter da Trip Fernando Costa Netto, para registrar o que até então era pouquíssimo conhecido por aqui, um misto de esporte canhestro, manifestação de revolta e overdose de adrenalina. As imagens, que incluíram o registro de um acidente fatal, correram o mundo e, através de um sistema tosco de comunicação proto internet via agências de notícias, foram publicadas em jornais e revistas de dezenas de países.

O próximo capítulo também foi pouquíssimo convencional. Cobrir o surfe em El Salvador. Nada de mais, não fosse o singelo fato de que a viagem rolaria em meio a um dos mais sangrentos conflitos da história da América Latina. Marcão foi lá com sua teleobjetiva e, ao lado do jornalista Fred D’Orey, trouxe imagens e histórias tão inéditas quanto inacreditáveis.

Lembro ainda de outro trabalho muito menos perigoso, mas não menos emocionante e belo. Um ensaio com Pepê Lopes, o cara que melhor personificou a cultura de praia carioca e brasileira.

As imagens de Pedro Paulo vendo sua filhota correr para abraçá-lo na praia são daquelas coisas que fazem todas as outras ganhar sentido.

Os carvoeiros e suas existências desgraçadas vieram depois. Livro, fotografias dignas de ocupar paredes em galerias sérias, um filme… serviço completo. Denúncia, arte, poesia, revolta, tudo junto e bem-acabado.

Amigo, produtor, aliado, sócio… seja qual for a melhor maneira de descrever o papel de Marcos na seminal obra de José Padilha, fato é que o cara foi peça fundamental para a existência de nada menos que os filmes “Ônibus 174”, “Tropa de Elite” e “Tropa de Elite 2”.

Seu primeiro longa como diretor foi “Estamira”. Difícil dizer se se trata de um documentário, ficção ou filme de arte. Fácil é ver a emoção transbordando como sempre.

No centro do programa “Roda Viva” da semana passada, o fotógrafo brasileiro André Liohn, que acaba de ganhar o prêmio Robert Capa Gold Medal por sua cobertura dos conflitos sangrentos na Líbia, declarou em bom som que há no Brasil profissionais da fotografia como Marcos Prado que poderiam estar no panteão reservado aos maiores artistas do planeta pela qualidade de suas imagens documentais. Mas como por aqui é dificílimo viver dignamente apenas desse trabalho, que paira entre o jornalismo e a arte, eles têm que partir para o cinema e outros campos, concluiu Liohn.

É verdade. Mas, a julgar por “Estamira”, talvez no final tenha sido bom negócio para todos.

Marcos está lançando agora seu segundo longa. “Paraísos Artificiais” fala sobre drogas sintéticas, psicodelia 2.0 e amor. A julgar pela coerência e pela qualidade do seu olhar, a aposta é certa.

A coluna de Paulo Lima, fundador da editora Trip, é publicada quinzenalmente