Antônio Palocci entende de Lula. E Lula ouve Palocci. Bastariam essas duas razões para ler o livro Sobre formigas e cigarras (Objetiva, 256 páginas, R$ 29,90), que foi escrito pelo ex-ministro da Fazenda e chega agora às livrarias. Nele, Palocci dá sua versão para a avalanche de denúncias que enfrentou, faz inconfidências e revela bastidores do governo que ajudou a construir. O mérito maior do livro, porém, é outro. No texto, Palocci traz à superfície um Lula pouco conhecido. É o presidente ortodoxo em matéria de economia, que jamais troca o certo pelo duvidoso, e que, se estivesse na fábula de La Fontaine, que dá título ao livro, seria uma operosa formiga – nunca uma cigarra. Num dos trechos mais interessantes, Palocci conta como Lula definiu metas estreitas de inflação, mesmo quando alertado para as conseqüências que isso traria na política de juros. “Inflação baixa sempre foi questão de honra para ele”, disse Palocci em entrevista exclusiva a ISTOÉ, na noite da quarta-feira 14. “Isso revela que nunca houve uma era Palocci; o que existe, desde o primeiro dia de governo, é a era Lula.”

Palocci narra episódios curiosos da formação de governo, como a sua escolha, que deixou de lado Aloizio Mercadante, e o momento em que Lula quase convidou Armínio Fraga para permanecer no Banco Central. O livro também contém algumas gafes. Numa delas, o ex-ministro admite que leu em primeira mão a Carta ao Povo Brasileiro para o empresário João Roberto Marinho, das Organizações Globo.

Tais escorregões, porém, não tiram o valor da obra, que também aborda o inferno pessoal do ex-ministro. Palocci atribui os ataques que sofreu a duas razões: a necessidade de atingi-lo, quando se ventilou a hipótese de que ele poderia concorrer à Presidência, e a oportunidade de enfraquecer o próprio presidente Lula. No episódio Francenildo Costa, que determinou sua queda, Palocci assume apenas um “erro político”, uma vez que a quebra de sigilo, da qual ele garante não ter tomado conhecimento, ocorreu numa área sob sua responsabilidade.

Eleito deputado com mais de 152 mil votos, ele pretende atuar nos bastidores do Congresso, aproximando os presidentes de comissões e os líderes de bancadas do Palácio do Planalto. A seguir, sua entrevista.

ISTOÉ – O que definiu sua escolha para ministro da Fazenda?
ANTÔNIO PALOCCI
–  Essa é uma pergunta que só pode ser respondida pelo presidente. Primeiro, ele queria que o Aloizio Mercadante ou o José Dirceu, um dos dois, permanecesse no Congresso. O Aloizio poderia ter sido ministro e teria tido meu apoio para isso. Mas ele teve uma votação histórica para o Senado e se sentia pouco à vontade para deixar o posto antes de assumi-lo.

ISTOÉ – Cogitou-se manter Armínio Fraga à frente do Banco Central. Por que isso não aconteceu?
PALOCCI
– A hipótese de permanência de Armínio por alguns meses foi cogitada. Analisei a alternativa com o presidente e com o próprio Armínio, no caso de não termos um nome de envergadura para o posto logo no início do governo. Quando surgiu Meirelles, pensamos que o melhor seria já fazer a substituição.

ISTOÉ – O sr. antecipou ao empresário João Roberto Marinho, da Globo, que a Carta ao Povo Brasileiro traria um forte compromisso com o aumento do superávit primário. Isso não revela uma submissão do candidato Lula a um outro pólo de poder?
PALOCCI
– De forma alguma. Naquele período, eu e os demais membros da coordenação da campanha dialogávamos muito com lideranças da sociedade. Constituímos um amplo conselho de consultas do qual participaram empresários, como o João Roberto, mas também sindicalistas e lideranças populares. Lula participou pessoalmente, dialogando e consultando essas pessoas sobre as questões mais importantes da agenda nacional.

ISTOÉ – Lula discordou de uma meta de inflação de 5%, por considerá-la muito elevada. É o mais ortodoxo do time?
PALOCCI
– Não, Lula não é um ortodoxo. É racional. Mostrou que daria total prioridade ao combate à inflação. Sempre lembrava de sua experiência sindical. Ele sabia que inflação alta desorganizava a economia e humilhava a família do trabalhador.

ISTOÉ – Isso não freou a economia?
PALOCCI
– Os dados reais de hoje, do aumento do consumo das famílias, da recuperação de renda, do maior acesso aos bens de alimentação e moradia dos mais pobres, lhe dão total razão. Lula sabia aonde queria chegar. E chegou.

ISTOÉ – O sr. narra divergências que enfrentou com os ministros José Dirceu, Dilma Rousseff e Luiz Antônio Furlan. Como lidava com o fogo amigo?
PALOCCI
– Não houve episódios graves. A política econômica era debatida com freqüência pelos ministros. Em geral os ministros eram muito solidários. Sabiam que o que estava sendo feito era necessário. O País vivia uma gravíssima crise de endividamento, fuga de capitais, inflação alta e moeda desvalorizada. José Dirceu, por mais que tivesse divergências em aspectos da política econômica, foi a público dezenas de vezes para defendê-la. Dilma, igualmente. Furlan vivia muito pressionado com a questão cambial e sempre nos cobrava atitudes nesse campo. Mas nunca foi desleal ou descortês com a equipe econômica. Mas debate de idéias, havia sim. Felizmente.

ISTOÉ – Quando Lula cogitou sobre a reeleição, no auge da crise política, seu nome foi apontado como uma possibilidade real para a disputa de 2006. Era para valer?
PALOCCI
– A possibilidade da minha candidatura nunca foi real. Foi uma hipótese levantada pelo chefe de gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, em caráter puramente pessoal. Em alguns momentos, muita gente pensou que Lula poderia de fato não querer concorrer. Em pelo menos uma ocasião, ele mesmo me falou isso.

ISTOÉ – E o que o sr. dizia?
PALOCCI
– Sempre insisti que não haveria hipótese razoável de ele não concorrer. Mas o fato é que essa história foi para os jornais. O Datafolha chegou a fazer uma pesquisa incluindo meu nome. Isso colaborou para que minha vida virasse um inferno, pois vivíamos o pior momento da crise e a oposição atirava pesado.

ISTOÉ – Embora o sr. não diga com todas as letras, pode-se concluir que o caseiro Francenildo Costa é cria do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT). Na sua visão, qual é a real ligação entre os dois personagens?
PALOCCI
– Não sei dizer. Conheço apenas os fatos narrados pela imprensa e pelo próprio senador, que afirmou ter se reunido com ele antes da entrevista dada ao jornal O Estado de S.Paulo e de seu depoimento na CPI.

ISTOÉ – Como a sua família lidou com a crise?
PALOCCI
– Minha esposa Margareth, foi fundamental nesse período. Ela teve uma atitude de extrema firmeza, o que protegeu muito meus filhos. Todos os órgãos de imprensa nacionais investigaram toda a minha família: minha mãe, meus irmãos, minhas cunhadas, todos. Foi enlouquecedor. Mas no fundo não tinha medo, pois não havia nada a temer em relação a bens e a procedimentos meus ou da família. O pior é que, após semanas de investigação e não encontrando nada de errado, ninguém publicou nada. Uma vez perguntei a um jornalista de um órgão da grande imprensa se ele acreditava realmente que eu tivesse bens ocultos. Ele disse que não, pois se houvesse eles teriam encontrado naquelas semanas de intensa investigação.

ISTOÉ – Isso o tranqüilizou?
PALOCCI
– Perguntei a esse jornalista por que não publicavam isso. Ele me respondeu que não venderia jornal. É por isso que digo, no livro, que a política é uma senhora caprichosa e matreira, que vez ou outra cobra um preço alto demais. Mas não digo isso para lamentar. Afinal, é preferível uma imprensa atuante e investigativa, polêmica e livre, do que uma imprensa amordaçada. A democracia é um valor que deve estar acima das dores de cabeça de cada um de nós.

ISTOÉ – O sr. levanta a hipótese de que o vazamento do sigilo bancário do caseiro tenha ocorrido para prejudicá-lo de forma intencional. Explique melhor.
PALOCCI
– Essa foi uma hipótese levantada por amigos, não por mim. De fato, não acredito nisso. Acho que quem o fez pensava em ajudar-me e acabou me colocando numa situação insustentável.

ISTOÉ – A Polícia Federal fez um relatório que o considerou responsável pelo vazamento. Como avalia essa postura da PF?
PALOCCI
– A PF agiu pressionada pelas circunstâncias. Não há no depoimento ninguém que me acuse de ser responsável pelo vazamento.

ISTOÉ – O Brasil cresceu muito pouco no ano passado, bem abaixo da média dos emergentes. Não há nada de errado com a política econômica?
PALOCCI
– O problema não é haver algo errado com o governo Lula. O problema é que há algumas coisas muito erradas na estrutura econômica do Brasil. Precisamos nos lembrar que as gerações anteriores nos deixaram uma dívida de mais de um trilhão de reais. É certo que, no governo Lula, a relação dívida/PIB só baixou e o País trocou a posição de grande devedor para credor externo. Mas a dívida ainda é bastante alta.

ISTOÉ – É isso que trava o crescimento?
PALOCCI
– A evolução da dívida na última década forçou o aumento de nossa carga tributária para níveis constrangedores para a atividade econômica. Além da alta carga de impostos o sistema tributário é extremamente complexo. É caro para o Fisco cobrar e é caro para a empresa pagar. Temos uma previdência pública altamente deficitária. As regras da previdência privada não acompanham a melhora da expectativa de vida. Temos ainda muita burocracia e um ambiente de negócios muito rígido. Se queremos crescer mais, há muito a fazer.

ISTOÉ – O PAC aponta na direção correta?
PALOCCI
– O PAC é um grande acerto do governo, pois ele foca na questão do investimento. É preciso melhorar o nível e a qualidade do investimento público. Mas é preciso principalmente estimular o investimento privado. Nós estamos no caminho certo e eu sou muito otimista com a evolução da economia brasileira, mas a questão do crescimento é um problema complexo.

ISTOÉ – Em que sentido?
PALOCCI
– Exige muito esforço. As mudanças que foram feitas no primeiro governo Lula já estão mostrando resultados, inclusive na área microeconômica: a reforma da legislação da construção civil, a nova lei de recuperação de empresas, a abertura do mercado de resseguros, o novo estatuto da micro e pequena empresa, além da estabilidade vão produzir ganhos crescentes por muitos anos. Mas não podemos esperar o crescimento cair do céu, temos que trabalhar muito por ele.

ISTOÉ – Dá para ser otimista quando o assunto é imposto?
PALOCCI
– A instituição da Receita Federal do Brasil é uma importante medida de reforma de gestão e simplificação de procedimentos, com benefícios para o Estado e para o contribuinte. Mas é preciso simplificar os impostos.

ISTOÉ – No livro, o sr. também aponta méritos dos governos que vieram antes de Lula. O que cada um teve de bom?
PALOCCI
– Não devemos tirar o mérito de muitos outros governos que, a seu tempo e a seu modo, plantaram sementes importantes para a estabilidade que temos hoje. O presidente José Sarney acabou com a famigerada conta-movimento, que transformava nosso orçamento em peça de ficção, e instituiu o Tesouro Nacional. O governo de Fernando Collor iniciou o processo de abertura da economia. O presidente Itamar Franco instituiu o Plano Real e o presidente Fernando Henrique fez a Lei de Responsabilidade Fiscal. Lula deixará um legado ainda maior.

ISTOÉ – O que lhe dá essa certeza?
PALOCCI
– Ele já tem seu nome inscrito na história por seu primeiro governo. Mas o segundo pode ser ainda melhor.

ISTOÉ – O livro ajuda a entender como Lula decide. O que o diferencia?
PALOCCI
– Eu procuro explicar que as conquistas atuais da economia têm muito a ver com a racionalidade e o esforço político do presidente Lula em fazer as coisas indicadas pelo bom senso. O primeiro governo do presidente Lula mudou muito o Brasil. Reduzimos nossa dívida em relação ao PIB, tivemos uma grande melhoria nas contas externas, a geração de empregos formais foi multiplicada, a situação das empresas melhorou muito e a renda das famílias foi elevada pela inflação baixa e pelos programas sociais.

ISTOÉ – Mas, na transição, falava-se em “enterrar a era Palocci”.
PALOCCI
– Isso é um contra-senso. Até porque jamais existiu uma era ou uma política econômica do ministro Palocci. Aliás, eu termino o livro dizendo que estão plantadas as sementes para que a era Lula siga em frente.