Há exatos 30 anos não se via nada parecido no Irã. Como se tivessem arrancado o véu que encobria sua insatisfação, multidões passaram a ocupar as ruas de Teerã em protesto contra a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad. "Cadê o meu voto?", perguntavam manifestantes em cartazes grafados em inglês. "Ahmadinejad não é nosso presidente", escreveram outros. A chamada geração K, que nasceu sob o regime implantado pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica do Irã, foi a primeira a revelar seu desejo de mudança. Devido à explosão demográfica das últimas décadas, essa geração representa dois terços da população. Com os movimentos tolhidos desde 1979, quando a revolução islâmica mudou os códigos de conduta no país, jovens iranianas lotaram os atos de protesto, muitas vezes com os cabelos totalmente à mostra – o que deveria ser combatido pelo fundamentalismo xiita do país.

Num crescendo que surpreendeu a própria oposição, mulheres cobertas pelo chador negro e até clérigos com turbantes incorporaram-se aos manifestantes, que chegaram a somar um milhão de pessoas em Teerã, na terçafeira 16. Da capital, a onda de protestos se espalhou pelas principais cidades do país. Batizada de maré verde, alcançou Seul, onde jogadores da seleção iraniana de futebol usaram munhequeiras da cor da oposição no jogo contra a Coreia do Sul. Três dias depois, o verde foi trocado pelo preto, em sinal de luto por pelo menos sete mortes provocadas pela milícia religiosa Basij.

A revolução dos filhos da revolução islâmica explodiu nas ruas com o anúncio, apenas duas horas depois do fechamento das urnas, da reeleição do presidente ultraconservador Ahmadinejad, com 62,6% dos votos. Nesse período, seria impossível contabilizar o resultado, já que eram quase 40 milhões de votos e a apuração foi ma nual.

LUTO Mousavi (ao centro) participa de ato em memória das vítimas da milícia islâmica

Além disso, outras 646 queixas de irregularidades foram registradas no Conselho dos Guardiões, a mais alta instância jurídica do país.

"As pessoas sentem que sua sabedoria foi insultada", tratou de capitalizar o principal oponente de Ahmadinejad, o reformista Mir Hossein Mousavi.

A convicção de que houve fraude eleitoral foi manifestada por líderes mundiais como o francês Nicolas Sarkozy e o britânico Gordon Brown, mas rejeitada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "É impossível manipular 30% dos votos", declarou Lula. Ele reiterou o convite a Ahmadinejad para vir ao Brasil e afirmou que pretende visitar o Irã no próximo ano.

Por trás da explosão popular está o desejo de mudança. Aliada às restrições impostas pelo regime dos aiatolás no estilo de vida de um povo que tem a democracia entre seus pilares, há uma severa crise econômica. Quarto maior produtor de petróleo do mundo, o Irã registra inflação acima de 20% e desemprego de 26%. Como agravante à instabilidade do país, ainda existem as ameaças atômicas de Ahmadinejad e suas provocações a Israel, como a negação do Holocausto, o extermínio de seis milhões de judeus pelos nazistas.

Na geopolítica do Oriente Médio, o Irã é um país estratégico. Seus atritos não se limitam aos Estados Unidos, que combatem o programa nuclear iraniano e seu suposto apoio ao terrorismo.

A chegada de Khomeini ao poder em 1979 contagiou toda a região com o islamismo radical. Depois da sua morte em 1989, seu sucessor, o aiatolá Ali Khamenei, manteve o fervor xiita e o apoio a grupos rebeldes em vários países. O Irã passou oito anos em guerra com o vizinho Iraque, um conflito que devastou os dois países. Em relação a Israel, a república islâmica defende pura e simplesmente a destruição do país. Assim, uma mudança interna no Irã alteraria também esta estrutura de radicalismo religioso, ditaduras, guerras e terrorismo que o Oriente Médio, a maior região produtora de petróleo do mundo, vive há mais de três décadas.

MARÉ VERDE A cor da oposição nos protestos, nos quais muitos usam máscaras para evitar identificação

Empenhado em promover um "novo começo" nas negociações com o Irã, o presidente americano Barack Obama optou pela cautela ao comentar a maré verde. Disse não acreditar que haja grande discrepância entre Ahmadinejad e Mousavi. "A diferença pode não ser tão grande como tem sido propagado", declarou Obama. "De qualquer forma, vamos lidar com um regime iraniano que tem sido historicamente hostil aos Estados Unidos." É um distanciamento estratégico porque qualquer palavra mais contundente seria entendida como agressão e serviria para unir imediatamente os iranianos contra um inimigo externo histórico.

Nos bastidores, porém, a Casa Branca tem atuado para garantir o fluxo de informações, cada vez mais cerceado pelo regime. O serviço de notícias Voice of America, mantido pelo governo americano, acaba de aumentar a equipe que transmite notícias em farsi, a língua do Irã. Washington também recorreu aos donos do Twitter, o meio eletrônico baseado na Califórnia que permite a postagem de mensagens curtas. Pediu que eles adiassem uma manutenção já programada do serviço, que tiraria temporariamente do ar os sites usados pelos reformistas iranianos. Mousavi e seus simpatizantes têm usado o Twitter para transmitir informações e convocar protestos – uma edição renovada da velha guerrilha de informação feita pelo aiatolá Khomeini, que há 30 anos usava fitas cassetes gravadas em Paris e contrabandeadas para Teerã para divulgar suas mensagens contra o regime do xá Reza Pahlevi.

As manifestações dos filhos da revolução islâmica balançaram a rígida estrutura do poder no Irã. O homem mais poderoso do país, o aiatolá Ali Khamenei, apareceu em público na sexta-feira 19 para dizer que a oposição será responsabilizada, se ocorrer um banho de sangue. "Os resultados têm que vir das urnas, e não das ruas", disse, no que pode ser a senha para que a milícia religiosa comece a perseguição aos opositores. Intitulado líder supremo, Khamenei está diante de um impasse. Esse eventual banho de sangue permitirá a retomada do controle total do país. Mas ao massacrar sua própria população, incluindo fervorosos xiitas, deixará claro que a propalada unidade religiosa do país terá se desfeito numa briga de clãs.

No entanto, se os líderes religiosos evitarem o radicalismo, esse Irã que começou a renascer das ruas deverá ter políticas externas e internas menos agressivas, independentemente de quem for seu presidente. "O povo terá mais força, clamará por mudanças. E eles não vão poder ignorar novas manifestações da rua por mais abertura", afirma a historiadora iraniana Guity Nashat, da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. "Acredito também que o governo será forçado a se relacionar com os Estados Unidos", diz Guity, que na semana passada participou de um seminário em São Paulo.

O obstáculo do radicalismo

A atual crise no Irã ocorre num contexto de enrijecimento de posições no Oriente Médio. Para Günter Rudzit, coordenador do curso de relações internacionais da Faap, a região está passando por um período de rápidas mudanças, com o crescimento dos movimentos políticos e religiosos xiitas após décadas de dominação sunita. Ele destaca o fortalecimento do Hezbollah no Líbano, do Hamas na Palestina, do Taliban no Afeganistão. Até a Al-Qaeda encontrou refúgio no Iêmen. "São governos, grupos e movimentos políticos de perfil radical antiamericano", afirma Rudzit.

Os países pró-Ocidente tendem a se sentir acuados e a reagir de maneira conservadora, segundo o historiador José Flávio Sombra Saraiva, do Instituto de Relações Internacionais da UnB. Ele destaca a eleição do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, um linha dura. Seu governo decidiu não reconhecer os acordos de paz anteriores e resiste como pode às pressões da administração Barack Obama. "Não vejo qualquer sinalização de desarmamento filosófico e político na região, nem condições que possam demover Netanyahu. As condições impostas por ele praticamente inviabilizam a criação de um Estado Palestino soberano", afirma.

Claudio Dantas Sequeira