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RECUO TÁTICO
O dirigente chegou a suspender a visita ao Brasil por
conta da repercussão negativa de suas declarações

Um chute mal dado embolou o meio de campo dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 nos últimos dias. A disputa entre a Fifa, a entidade que comanda o futebol no mundo, e o governo brasileiro se acirrou na sexta-feira 2. Em um evento na Inglaterra, o francês Jérôme Valcke, secretário-geral da entidade, afirmou que o Brasil deveria levar “um chute no traseiro” para apressar as obras prometidas para o Mundial e a aprovação da Lei-Geral da Copa, espécie de cartilha de regras da Fifa para o evento. De imediato, o País partiu para o contra-ataque. O articulador da jogada foi o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, que no dia seguinte disse – em público e por carta enviada à Fifa – que o governo não aceitava mais o francês, número dois na hierarquia da entidade, como interlocutor. Isso sem contar as reações de repúdio dos presidentes da Câmara dos Deputados, Marco Maia, e do Senado, José Sarney, além de outros políticos da base governista e da oposição.

A Fifa acusou o golpe ao ver seu homem forte, responsável pelo evento que faz lucrar bilhões de dólares, jogado para escanteio no país-sede do Mundial. E pediu desculpas. A começar pelo próprio Valcke, 51 anos, que encaminhou uma carta ao ministro. Joseph Blatter, presidente da entidade, repetiu o gesto e o reforçou com uma ligação a Rebelo. Mais do que o mundo ter visto a poderosa Fifa perder uma queda de braço – o jornal espanhol “Marca” publicou que o Brasil “baixou a bola” da organização –, o episódio se revelou como mais uma trapalhada no currículo do controverso dirigente francês. “Ele é boquirroto, fala mais do que deve”, diz um ex-ministro que conhece de perto o secretário-geral. Segundo essa pessoa, que prefere não se identificar, Valcke queimou uma ponte que tinha com a presidenta Dilma Rousseff, construída em Bruxelas, na Bélgica. Na ocasião, Dilma recusou uma reunião com Blatter para tratar do Mundial com o número dois da entidade. “Se bem a conheço, acho impossível a presidenta voltar a recebê-lo.”

O dirigente francês é, sem dúvida, o craque da Fifa em dar bola fora. No ano passado, um e-mail escrito por ele colocou a entidade em um escândalo sobre compra de votos para a Copa de 2022, que será realizada no Catar. Na ocasião, ao ser afastado do cargo de vice de Blatter, Jack Warner divulgou uma correspondência eletrônica trocada com Valcke na qual falavam sobre a desistência de Mohammed Bin Hamman, presidente da Confederação Asiática de Futebol, de concorrer à presidência da Fifa por acusações de corrupção. Escreveu Valcke: “Nunca entendi por que ele estava concorrendo. Se era por achar que realmente tinha chance ou se estava tentando mostrar de forma radical como ele não gosta mais de JSB (Joseph Sepp Blatter). Ou ele pensou que poderia comprar a Fifa como eles (Catar) compraram a Copa do Mundo.”

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PREOCUPAÇÃO
Blatter, presidente da Fifa, pediu desculpas ao
Brasil “pela honra e orgulho feridos” por Valcke

O dirigente francês confirmou a autoria do texto, mas argumentou que foi mal interpretado. “O que eu quis dizer foi que o Catar usou o seu poder financeiro para fazer lobby”, afirmou. Curioso é que, no episódio do “chute no traseiro” do Brasil, Valcke também tentou dizer que não disse lançando mão do mesmo artifício, um erro de interpretação. Na carta de desculpas enviada ao ministro do Esporte na segunda-feira 5, explicou que a expressão em francês “se donner um coup de pied aux fesses” significa apenas “acelerar o ritmo”. Dois episódios jogam contra essa desculpa. Primeiro: antes de se apoiar no erro da tradução – o que, ressalte-se, tradutores País afora discordaram –, ele classificou como “infantil” a exigência de afastamento do cargo de interlocutor feito por Rebelo. Só após perceber que o governo brasileiro não estava para brincadeira é que resolveu pedir desculpas. Segundo: Valcke parece ter se esquecido de que a entrevista coletiva na Inglaterra, onde dera um pontapé na diplomacia e na educação exigidos por seu cargo, foi acompanhada por muitos jornalistas, que vieram a público afirmar que o dirigente se pronunciou em inglês e não em francês.

Não é de hoje que Valcke pisa no calo dos brasileiros. Em 2010, ao fim do Mundial, a pressão que o secretário-geral da Fifa exercera sobre a África do Sul se virou para o próximo anfitrião do evento, o Brasil. “Há muita coisa a ser feita em todos os setores: estádios, estradas, aeroportos e também na capacidade hoteleira. Tudo está atrasado”, disse ele. Um dia depois, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva respondeu: “Não somos um bando de idiotas. Sabemos fazer as coisas e definir as nossas prioridades.” De acordo com um presidente de uma federação de futebol brasileira que esteve com Valcke na África do Sul, o que o suíço Blatter tem de tímido o francês tem de arrogante. “Ele é meio chucrão, bobalhão”, diz. “Mas tem razão em estar irritado com o atraso das obras por aqui.”

Na opinião do ex-ministro brasileiro, o dirigente francês e a Fifa têm uma visão eurocêntrica e veem países como o Brasil e a África do Sul tais quais periferias com menos capacidade de realização. “Dessa forma, cobram muito mais da gente”, diz. O destempero verbal de Valcke foi rechaçado por Rebelo em carta enviada à Fifa no mesmo dia em que o francês se desculpou. “A forma e o conteúdo das declarações escapam aos padrões aceitáveis de convivência harmônica entre um país soberano como o Brasil e uma organização internacional centenária como a Fifa”, escreveu. Infelizmente, a polidez do ministro não foi regra entre seus colegas. Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, deu ares de briga de botequim ao episódio. “Esse cara é um vagabundo! Já está riscado”, disse. Na Câmara, o presidente da Casa, Marco Maia, afirmou que Valcke merecia um chute de volta.

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REAÇÃO
Rebelo visita obra da Copa na semana passada:

“Declarações escapam aos padrões aceitáveis”

Chute pra cá, chute pra lá, Blatter, o mandatário da Fifa, resolveu entrar em campo. Além de enviar uma carta ao governo brasileiro pedindo desculpas a todos que tiveram a “honra e orgulho feridos”, ele insiste em se reunir nesta semana com a presidenta Dilma, no Brasil, para aparar as arestas. Valcke deveria desembarcar no País na segunda-feira 12 para cumprir o cronograma de visitas bimestrais às cidades-sede e se reunir com o ministro Rebelo. Assustado com a repercussão do caso, chegou a suspender a viagem num primeiro momento. Na quinta-feira 8, porém, o governo baixou um pouco a guarda. O ministro Rebelo enviou duas cartas, uma a Valcke e outra a Blatter. Ao primeiro, dispensou apenas uma frase, aceitando as desculpas. Já Blatter ganhou três parágrafos: disse que o governo aceita as desculpas, informou que Dilma o receberá um uma audiência a ser marcada e insistiu para que episódios como esse não se repitam.

Mesmo sabendo que seu subordinado é o vilão da história, o presidente da Fifa não deve abrir mão de seu braço direito. Em 2006, outra trapalhada de Valcke custou à entidade uma multa de cerca de R$ 100 milhões. Na época, fora decretado por um juiz de Nova York que o dirigente francês, então diretor de marketing e tevê da entidade, mentiu no tribunal que apurava a má conduta da Fifa para substituir a Mastercard pela Visa como patrocinadora da Copa. Por violar princípios empresariais, Valcke foi afastado do posto, mas, surpreendentemente, seis meses depois foi elevado por Blatter à condição de secretário-geral da organização.

“Valcke não se constrangeu em oferecer a
cabeça do amigo Ricardo Teixeira a Dilma”

ex-ministro do governo petista, que prefere não ser identificado

No Brasil, o francês é muito benquisto pelo presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, que se licenciou do cargo na semana passada. Valcke e a família estiveram hospedados na casa do dirigente brasileiro em Angra dos Reis no Réveillon de 2010. “Ele adora praia e, especialmente, Angra”, diz um assessor da CBF. “De fato, ele é afável, brincalhão, mas não se constrangeu em oferecer a cabeça do amigo Ricardo Teixeira numa reunião com Dilma em Bruxelas, em outubro passado”, conta o ex-ministro. Segundo ele, ao perceber que Teixeira não mantinha boas relações com a presidenta – e, portanto, era uma peça inconveniente na ligação entre a Fifa e o governo –, Valcke pediu que Dilma indicasse um substituto ao posto de chefe do Comitê Organizador Local do Mundial de 2014 (COL) no lugar de Teixeira. “A presidenta disse que respondia pelas questões ligadas ao governo, não por Teixeira.”

O presidente licenciado da CBF permaneceu afastado da polêmica entre a Fifa e o governo. Foi o ex-jogador Ronaldo Fenômeno, membro do conselho de administração do COL, quem se manifestou, minimizando as declarações de Valcke, num claro sinal de que o País está em dívida com seus compromissos. “O Brasil se comprometeu a entregar essa Lei-Geral da Copa há muito tempo, há atrasos em obras de infraestrutura. Ainda tem muita coisa atrasada.” Uma comissão especial aprovou a Lei-Geral na semana passada, em meio à confusão criada por Valcke. Agora, ela irá, com urgência, à votação na Câmara e no Senado.

“O Brasil se Comprometeu a entregar a Lei Geral
da Copa há tempos. Tem muita coisa atrasada”

Ronaldo Fenômeno, membro do comitê organizador do Mundial

Nesta semana, quando o time da Fifa chegar ao Brasil, a arquibancada política vai aguardar ansiosamente para ver quem vai entrar em campo com a faixa de capitão da entidade. Alguns políticos sugeriram até que Valcke não venha desta vez. “Ele (Valcke) recebeu um cartão vermelho, vai cumprir uma suspensão automática e depois retornar à disputa”, diz o presidente da Câmara Marco Maia. “O importante é realizarmos uma grande Copa.”

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Colaborou Juliana Dal Piva