Foram exatamente 2.083 dias o tempo entre os dois disparos pelas costas que mataram a jornalista Sandra Gomide, 32 anos, e o momento em que seu algoz, o também jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, ex-namorado, foi condenado a 19 anos, dois meses e 12 dias de prisão, na sexta-feira 5. A decisão, porém, frustrou a família da vítima, que esperava ver o jornalista sair do fórum direto para a cadeia. “No Brasil, matar não é mais crime. O sujeito pode ficar com raiva, assassinar a mulher, confessar o crime, ser condenado e mesmo assim ficar em liberdade. É uma vergonha”, esbravejou João Gomide, pai de Sandra. Réu confesso, Pimenta foi condenado por homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e sem permitir defesa à vítima). Mas, como sua defesa já havia entrado com recurso no STF, o juiz de Ibiúna lhe concedeu o direito de aguardar em liberdade a decisão do Tribunal Superior. Até a última semana, Pimenta fazia parte de uma perversa estimativa da ONU: 98% dos assassinos de mulheres no Brasil não são condenados. Durante os quase seis últimos anos o réu protelou seu julgamento e agora, mais uma vez, consegue manter-se em liberdade graças a manobras jurídicas traçadas por seus advogados. O julgamento da sexta-feira, portanto, não foi o último capítulo da trágica história de Pimenta e Sandra. Mesmo assim, a pequena Ibiúna, cidade com cerca de 80 mil habitantes no interior paulista, parou para acompanhar o desfecho da sessão.

Tamanha movimentação no município só fora vista, segundo os mais antigos moradores, em 1968, quando 250 estudantes foram presos durante o famoso Congresso da UNE. Naquela ocasião, milhares de pessoas tomaram de assalto
as ruas para ver de perto “os comunistas” detidos. “Foi um alvoroço igual a
este”, lembrava Miguel Soares, 72 anos, enquanto observava o jornalista chegar
ao fórum, uma antiga delegacia do final do século XIX, na quarta-feira 3. Ele caminhou cerca de 15 metros entre o carro e a porta de entrada sob os gritos de “assassino”, “covarde” e “sem-vergonha”. Poderia ter evitado o constrangimento caso optasse por sair do carro já no interior do fórum. Na noite anterior, porém, em conversas particulares, revelou que iria entrar pela porta da frente. “Não sou um criminoso para entrar pela porta dos fundos do fórum. Cometi um ato de estupidez, matei por amor”, teria dito.

Já no interior do fórum, Pimenta deu de cara com João Gomide, pai de sua ex-namorada. “Ao contrário da coragem que ele teve para matar minha irmã, ele nem sequer mirou os olhos de meu pai”, disse a ISTOÉ Nilton Gomide, irmão de Sandra. Pimenta passou incólume, subiu a escadaria do prédio e ficou com os seus 13 aliados – sete testemunhas e seis familiares – à espera da decisão. O julgamento modificou o cotidiano da cidade. A economia local ganhou uma injeção de milhares de reais. Durante as 33 horas de sessão foram consumidos 150 litros de água mineral, 216 latas de refrigerantes, 20 quilos de pó de café, 60 pacotes de biscoitos recheados e 194 marmitex. Os hotéis e pousadas não comportaram as quase 150 pessoas que acompanharam o desenrolar do caso e muitos tiveram que se hospedar nas cidades vizinhas. “Só vi dinheiro assim na época do Natal”, comemorou Cláudio Garcia, proprietário de uma lanchonete em frente ao fórum.

No início do julgamento, a defesa de Pimenta tentou por seis vezes anular a sessão, mas os pedidos não foram aceitos pelo juiz Diego Ferreira Mendes. “Nós sabemos desde os tempos de estudante dessas artimanhas”, respondeu o magistrado de 29 anos à advogada Ilana Muller. As provocações por parte da defesa de Pimenta não pararam por aí. A advogada tentou até vencer pelo cansaço, solicitando a leitura de dezenas de páginas do calhamaço de 2.400 folhas do processo. “Se qualquer jurado cochilasse, eles poderiam pedir para anular o julgamento”, lembrou Nilton, irmão de Sandra. A estratégia não deu certo.

A atitude da defesa deixou os jurados com cara de poucos amigos. A toda hora eles demonstravam expressões de irritação e falta de paciência com os advogados do jornalista. De terno, com uma barba branca, um ar professoral e uma caneta vermelha nas mãos, Pimenta, que também é advogado, não se descuidava das falas e possíveis falhas das testemunhas. Anotava tudo compulsivamente. Como se fosse um instrutor da defesa, o réu conferia as páginas do processo e passava bilhetes à sua advogada com os questionamentos a serem feitos às testemunhas.

Antes da leitura de seu destino, Pimenta tinha a expectativa de sofrer uma pequena condenação, na pior das hipóteses uma pena que poderia ser cumprida no sofisticado bairro da zona sul paulistana onde mora. Conseguiu, em parte. A pena do jornalista foi definida por quatro jovens professores e três comerciários, membros do Tribunal do Júri. Nos próximos dias, um novo processo deverá atormentar a vida de Pimenta. A família de Sandra pedirá uma indenização na Justiça Civil.

Aos 69 anos, Pimenta saiu do fórum e encontrou uma multidão revoltada com o desfecho do caso. A família da vítima, com os narizes pintados de vermelho, protestava contra o que chamou de palhaçada jurídica. Marlene Setti, dona do haras onde Sandra foi assassinada, e testemunha de acusação, deixou o tribunal chorando e engrossou o coro dos inconformados: “Se soubesse que isso seria um circo, não teria me exposto e vindo até aqui”, afirmava. Até os policiais, que estavam preparados para levar Pimenta à cadeia, ficaram surpresos. No início da noite da sexta-feira 5, acabaram tendo a missão de conter a multidão inconformada com a liberdade de Pimenta Neves.